O que exatamente acontece nesse texto/conferência de Derrida, localizado em seus últimos anos de atividade, Gêneses, genealogias, gêneros e o gênio? Em primeiro lugar, uma homenagem a Hélène Cixous: o texto é motivado por sua obra e seu arquivo recém-constituído na Biblioteca Nacional da França. Em nenhum momento, porém, Derrida estabelece a linha cronológica da obra da autora; em nenhum momento confronta textos entre si, momentos, fases ou ruptura em sua poética; em nenhum momento posiciona a autora em um contexto determinado, em tensão com outros textos e autorias - não é isso que Derrida faz, afinal de contas.
O que faz Derrida é separar um livro da produção de Hélène Cixous - Manhattan - e, dentro do livro, separar algumas citações e, dentro das citações, separar certos termos (alguns com a distinção do letra maiúscula no início), certas insistências linguísticas que operam tanto no significado quanto no significante (o título já indica isso: Derrida oscila nessa sonoridade/grafia que vai de j a g - com ênfase no Je, no "eu"). Derrida, em suma, gera pensamento a partir do estranhamento da linguagem, buscando investigar, rastrear como esse estranhamento se dá de forma peculiar em Hélène Cixous (embora exista sim um breve momento de contextualização, de ancoragem em eventos externos localizados no tempo e no espaço: Derrida fala da ida de Cixous aos Estados Unidos ainda na década de 1960 para estudar Joyce, ou melhor, o Ulisses que ela encontra em Joyce, Shakespeare e Homero - esse é, de resto, o mote de Manhattan).
Como Blanchot não cansou de declarar ao próprio Derrida (publicamente e também nas cartas pessoais), o que os unia no pensamento/filosofia era um modo peculiar de leitura. Esse é o método de Derrida, ler exaustivamente, ler por vezes um pequeno trecho - como faz com o Foucault da História da loucura em um dos seus primeiros ensaios (Derrida separa as pouquíssimas páginas que Foucault dedica a Descartes); é o que faz com Lévi-Strauss, separando um capítulo de Tristes trópicos ("Lição de escritura"); é o que faz com Platão e seu uso de uma única palavra, phármakon (remédio, veneno e, principalmente, o termo que indica a cicuta de Sócrates). E assim por diante.
*
"Em 22 de maio de 2003, primeiro dia do colóquio organizado em torno de Hélène Cixous por ocasião da doação dos seus arquivos à BNF, Derrida anuncia sua doença aos colegas. Ele, que tão frequentemente diz que funciona com a morte, 'como se diz que um motor funciona com gasolina', não pode senão demonstrar, à sua revelia, a que ponto isso é verdadeiro. Acaba de receber os terríveis resultados dos exames, porém, superando a emoção, pronuncia sem esmorecer uma longa conferência, Gêneses, genealogias, gêneros e o gênio" (Benoit Peeters, Derrida, trad. André Telles, Civilização Brasileira, 2013, p. 627).
Nenhum comentário:
Postar um comentário