quarta-feira, 25 de março de 2020

Berta Isla, 2

Ainda que Shakespeare e Balzac reapareçam em Berta Isla, o autor que mais decisivamente é requisitado na narrativa é T. S. Eliot. Ele aparece muito cedo na narrativa também como uma espécie de adereço cênico: o protagonista (o marido-espião) deve segurar um livro de Eliot em uma livraria para ser reconhecido por um contato...

"E como nos reconheceremos?", perguntou Tomás.
"Ah. Folheie um livro de Eliot. Ele também folheará um."
"T. S. Eliot ou George Eliot?"
"O poeta, Tomás, o poeta, seu xará"
(Javier Marías, Berta Isla, trad. Eduardo Brandão, Cia das Letras, 2020, p. 97)

Dado o uso intenso e aprofundado dos versos de Eliot ao longo do romance, essa caracterização irônica do personagem a partir do livro é mais um dos muitos elementos levantados por Marías para, ao mesmo tempo, homenagear e esvaziar o gênero-espionagem (a lei do gênero em seu contato com a lei do gênio, como quer Derrida na conferência sobre Cixous). O que interessa Marías em Berta Isla é o lado de fora da espionagem, o lado doméstico - por vezes enfadonho e moroso, como é o próprio romance em alguns momentos (a esposa só pode imaginar as atividades do marido-espião, ocupando uma posição de incerteza que é também do leitor).

Na livraria, Tomás pega um livrinho de Eliot - Little Gidding. Encontra versos que vão ecoar por todo o romance, calibrando a dinâmica entre vida e morte, verdade e mentira, representação e realidade, performance e presença:

E o que não cabia na fala dos mortos, quando vivos, eles podem contar, sendo mortos, leu, e por não entendê-lo muito bem passou a outras linhas.
O que chamamos de princípio muitas vezes é o fim, dizia outro dos versos; não quis ir adiante achou- fácil sem se dar conta de que provavelmente não o era em 1942, quando foi publicado pela primeira vez, em plena Guerra. (p. 100). 

O comentário aos versos de Eliot muitas vezes são expostos por Marías através da narrativa: diferentes situações são pesadas a partir dos versos e os versos retornam em vários momentos do romance. São os mesmos versos, mas posicionados ao lado de situações distintas - consequentemente, significam coisas diferentes ou, ao menos, recebem ênfases diversas (o exemplo mais claro disso é a morte do protagonista: ele oscila entre "vivo" e "morto" ao longo da narrativa, e cada posição/oscilação reposiciona o sentido do primeiro verso mencionado na citação acima).

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