sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Ignauré, Ignorância

Em determinado ponto de seu livro Misoginia medieval, Howard Bloch comenta um poema medieval de Renaud de Beaujeu, o "Lai d'Ignauré". Ignauré é um conquistador que tem doze amantes - esposas dos doze maiores pares da Bretanha. Ignauré é "o objeto do desejo universal apenas porque ele próprio é a corporificação da voz poética, as mulheres chamavam-no o Rouxinol, diz o poema", escreve Bloch, e continua: 

"Isto novamente sugere não só que a poesia parece menos meramente expressar do que engendrar o desejo sexual - de modo que o lai excita exatamente aquilo que sua lição de moral parece reprimir - mas também que o "Lai d'Ignauré" é uma alegoria da ignorância não sem parentesco com a alegoria da virgindade que vimos anteriormente. O conto não é simplesmente o registro inocente de um drama de revelação, denúncia e morte; a violência e o fatalismo que o assombram e são o seu tema estão em última instância ligados, na concepção medieval, a uma voz poética que revela o que finge ocultar em silêncio. O poeta não pode falar sem transgredir a discrição que ele ou ela prescreve; não pode falar sem contar o relato que ele ou ela supostamente ignora; não pode quebrar o silêncio, em outras palavras, sem quebrar um pacto implícito com a Ignorância, sem revelar o segredo. Este é o segredo do texto: o de que não pode contar sua história sem transformar algo universal e abstrato, como a Ideia da ignorância, em algo particular e concreto; que o conto não ser narrado sem sacrifício; que o texto, através da escrita, sempre silencia uma voz ou, como em numerosos exemplos medievais, mata o rouxinol"

(R. Howard Bloch, Misoginia medieval e a invenção do amor romântico ocidental, trad. Claudia Moraes, Ed. 34, 1995, p. 162)
*
O comentário de Howard Bloch da poesia medieval faz pensar em uma série de elementos da paisagem teórica do século XX. A ideia medieval do verso como uma ferramenta dupla - que tanto conta uma história como chama atenção para sua própria emergência - é análoga à estratégia modernista de ruptura da forma, de atenção maníaca aos processos da linguagem (desde Chklóvski e os formalistas russos até Nabokov, Joyce ou Pound). Borges escreve que duvida que Funes fosse capaz de pensar - uma vez que pensar é abstrair, esquecer os detalhes, generalizar. Como alcançar a medida na analogia? Talvez não seja possível - como no caso, entre tantos possíveis, das relações assimétricas entre a poesia medieval (tal como lida por Howard Bloch) e o cenário teórico do século XX. Em vários momentos, ao falar da misoginia ou da noção de verdade e virgindade, Bloch traça um cenário de aporia - o esforço medieval de dar conta de contrários, de opostos, sem resolução (a novidade do cristianismo, escreve ele, é justamente a de manter em paralelo, sem resolução, a ideia de mulher como "Esposa de Cristo" e "Portão do Diabo"). A aporia é o caminho que leva de Nietzsche a Heidegger e deste a Derrida e Giorgio Agamben.

Nenhum comentário:

Postar um comentário