segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Artista, objeto

"Abelardo escreveu ao filho Astralábio que os que morrem vivem, todavia, na obra dos poetas; outros textos estão repletos de notações sobre como eram considerados poetas e artistas. Mas as formas com que a Idade Média manifesta essa consideração atingem, frequentemente, os limites da comicidade, como no episódio dos monges da abadia de Saint-Ruf, que, numa noite, raptaram um jovenzinho muito perito na arte da pintura (guardado pelos cônegos de Notre-Dame-des-Doms, em Avignon). Nesse tipo de fato, nota-se uma implícita subestimação instrumental do trabalho artístico, um entendimento do artista como objeto de uso e de troca. Episódios como esse reafirmam, sem dúvida, a imagem do artista medieval voltado para os serviços humildes da comunidade e da fé, diferentemente do artista da renascença, que tem muito orgulho da própria individualidade" (Umberto Eco, Arte e beleza na estética medieval, trad. Mario Sabino, Record, 2010, p. 238-239).

*

1) Um trecho como esse mostra que não há fronteira histórica clara marcando a passagem do artista coletivo (respondendo a um conjunto de procedimentos compartilhados, cujo nome próprio é uma simples contingência) para o artista individual (mesmo no Renascimento os grandes artistas usavam o trabalho de outros artistas, anônimos, em seus ateliês). 
2) O rapto do pintor medieval, relatado por Eco, faz pensar, contudo, na relação entre arte e poder - poder político, poder bélico. De um lado, por exemplo, Napoleão e sua expedição ao Egito - espécie de ponto-padrão do imperialismo/orientalismo, para Edward Said -, na qual certamente se percebe um entendimento do artista como objeto de uso e de troca; de outro lado, o realismo socialista que Stálin prolonga e reforça, e os efeitos dessa outra objetificação do artista em escritores tão diversos como Isaac Bábel, Chklóvski ou Lukács. 
3) Um dos capítulos da Sinagoga dos iconoclastas, de Juan Rodolfo Wilcock, é também um comentário enviesado a essa situação ambígua do artista: conta a história de uma fábrica de romances, uma engenhoca monstruosa alimentada e manipulada por funcionários com o intuito de produzir romances em série durante o século XIX (Wilcock mistura aqui Balzac (1799-1850) e a surreal história da Patrologia Latina de Jacques Paul Migne (1800-1875)). Não é esse também o projeto, igualmente irônico e megalomaníaco, de César Aira? 

Nenhum comentário:

Postar um comentário