terça-feira, 29 de maio de 2018

A forma é o gado dos deuses

1) Em A literatura e os deuses, Roberto Calasso resgata de Aby Warburg a noção de "onda mnêmica" - pensada para as artes visuais e em Calasso transferida para a literatura. As formas literárias migram no tempo e no espaço, adaptando-se às normas do contexto, ressignificando seus procedimentos. "A métrica é o gado dos deuses", escreve Calasso, resgatando os gregos e o pensamento hinduísta - o ritmo da literatura, seus métodos de encadeamento e apresentação do conteúdo, são os traços visíveis da passagem do tempo. Esse jogo da forma é o que torna possível tanto o Atlas Mnemosyne, de Aby Warburg, quanto o Livro das Passagens, de Walter Benjamin, contemporâneos esforços tanto de exposição quanto de comentário da "onda mnêmica" (a noção de jogo da forma, aliás, é enfatizada por Huizinga poucos anos depois, em 1938, com a publicação de Homo Ludens).
2) A forma é portátil, remontável - é o que mostra também Vila-Matas na História abreviada da literatura portátil. Seu modelo é a História universal da infâmia, de Borges, cuja primeira edição é de 1935, lado a lado com Benjamin e Warburg. Um ano antes, Henri Focillon lança A vida das formas, em que diz que a arte não trabalha na sucessão cronológica, mas na articulação de intensidades; é também esse contato entre forma e intensidade no tempo que movimenta o trabalho inicial de Lukács, A alma e as formas, de 1911. Tudo isso seria intensificado e aprofundado, no campo específico da teoria literária, no amplo estudo de matriz warburguiana de Ernst Robert Curtius, Literatura Européia e Idade Média Latina, de 1953, que pensa a continuidade da literatura - "de Homero a Goethe" - através da recorrência das formas.  
3) Um exemplo: para escrever suas Vidas imaginárias (1896), Marcel Schwob foi atingido pela "onda mnêmica" que vinha em parte de Plutarco (Vidas paralelas), em parte de Vasari (Vidas dos pintores)  e em parte da hagiografia medieval. A onda segue na já citada História universal da infâmia, de Borges (1935, segunda edição revisada em 1954), na Sinagoga dos iconoclastas de J. Rodolfo Wilcock (1972), na Literatura nazi na América de Bolaño (1996), nos contos-verdade de Valêncio Xavier, Crimes à moda antiga (2004), e em Vite congetturali, de Fleur Jaeggy (2009), que encerra temporariamente o ciclo voltando o procedimento em direção ao próprio Marcel Schwob, que aqui vira personagem.

Essa forma peculiar do registro de vidas que se dá como uma lista de verbetes - um inventário, um dicionário, uma enciclopédia, sem ser nenhum inteiramente - atravessa tempo e espaço, formando um fio de eventos: por um momento, a forma captura uma intensidade (vidas infames, excêntricas, anormais, desviantes), cristalizando-a temporariamente antes que siga seu curso.    

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