domingo, 27 de maio de 2018

A linguagem é mais do que sangue

1) Li recentemente o livro de Steven Aschheim, Scholem, Arendt, Klemperer: intimate chronicles in turbulent times, uma análise cruzada e comparada das cartas e diários dos autores mencionados no título. O foco principal é o período 1933-1945 na Alemanha/Europa e o modo como Gershom Scholem, Hannah Arendt e Victor Klemperer textualizaram suas experiências na dimensão específica das "escritas íntimas" (todas elas, como o autor comenta em alguns momentos, meticulosamente preparadas e realizadas visando uma publicação futura - dentro do tópico, vale a pena relembrar a nota na qual Aschheim cita a passagem do diário de Klemperer em que ele fala de seu primo Otto Klemperer, já reconhecido regente na época: "talvez em 100 anos meu livro seja lido por 100 pessoas e Otto, como costuma acontecer aos regentes e atores, esteja esquecido", p. 128, n. 118).
2) Embora o interesse de Aschheim seja diários e cartas, no caso de Klemperer ele faz algumas referências ao seu inestimável livro sobre a "linguagem do Terceiro Reich", LTI. Trabalho de filologia e sociolinguística, um diário quase etnográfico sobre a convivência com um idioma, sua história e transformação ideológica (a linguagem é mais do que sangue, diz a epígrafe, de Franz Rosenzweig). Penso, por exemplo, no uso que faz Saussure da palavra "sistema" em suas aulas e no Curso publicado em 1916. Klemperer escreve:
Há o sistema de Copérnico, há sistemas filosóficos e sistemas políticos. Mas, quando o nacional-socialista diz "o System", ele se refere especificamente ao sistema da Constituição de Weimar. O termo, com esse uso particular na LTI, logo se tornou conhecido - na verdade, o uso ampliou-se para designar todo o período de 1918 a 1933. (...) Para os nazistas, o sistema de governo da República de Weimar era pura e simplesmente o System, contra o qual eles estavam em conflito permanente. (Victor Klemperer, LTI: a linguagem do Terceiro Reich. trad. Miriam Oelsner. RJ, Contraponto, 2009, p. 169).
3) Em determinado ponto do terceiro capítulo do livro (o último, dedicado a Klemperer), Aschheim rapidamente comenta a atenção extra de intelectuais judeus assimilados dedicada ao tema da linguagem, especialmente os pontos de ligação mais sensíveis com o poder e a coerção em seus limites e possibilidades (comenta ele foucaultianamente). Aschheim aproxima Klemperer (1881-1960) dos casos de Karl Kraus (1874-1936) e Ludwig Wittgenstein (1889-1951), tão distintos em tantos aspectos (a verborragia de Kraus, a contenção de Wittgenstein - embora os Ditos do primeiro sejam próximos das proposições filosóficas do segundo) mas certamente próximos entre si e também de Klemperer no que diz respeito à meticulosa análise crítica da linguagem e sua decomposição e recomposição no interior de uma perspectiva ensaística.   

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