terça-feira, 25 de outubro de 2016

Corpos do rei

Uma bela homenagem à literatura ocidental é o livro de outro francês, Pierre Michon, intitulado Corps du roi [Corpo do rei]. Esse pequeno grande livro é uma celebração da literatura, através de alguns Grandes Nomes (expressão que ele escreve com maiúsculas). A ideia é simples e brilhante. Michon aplica, aos grandes escritores do passado, o conceito medieval segundo o qual o rei tem dois corpos, um corpo natural e um corpo místico:
O rei, como se sabe, tem dois corpos: um corpo eterno, dinástico, que o texto entroniza e sagra, e que chamamos arbitrariamente de Shakespeare, Joyce, Beckett, Dante, mas que é o mesmo corpo imortal vestido com trapos provisórios; e ele tem outro corpo mortal, funcional, relativo, o trapo que vai para a podridão, que se chama apenas Dante e usa um gorrinho em cima do nariz adunco, somente Joyce e então tem anéis e olho míope, espantado, somente Shakespeare e é um homem de posses com uma golinha elisabetana.
Corps du roi é uma obra de gênero indefinido, misto de ensaio e ficção. As fotos que acompanham o texto são a prova de que algo mudou na modernidade: a existência da fotografia, que nos permite ver o rosto "real" dos escritores. Michon examina essas fotografias como alguém que folheia um álbum de família: "O fotógrafo clica. Os dois corpos do rei aparecem". A partir de fotografias, cartas ou dados biográficos, Michon explora as coincidências e divergências entre os "dois corpos" de escritores: Beckett, Faulkner, Flaubert e outros, igualmente reais e geralmente comuns. Beckett, numa fotografia de Lutfi Özkök, datada de 1961, é um verdadeiro milagre: a coincidência entre os dois corpos do rei, o homem e a obra. Beckett sabe que é rei.
Sabe também que essa operação mágica é mais fácil para ele do que para Dante ou Joyce, porque, diferentemente destes, ele é belo: belo como um rei, o olhar gelado, a ilusão do fogo sob o gelo, os lábios rigorosos e perfeitos, o nolli me tangere que ele ostenta de nascença; e, cúmulo do luxo, belo com estigmas, a magreza celestial, as rugas cavadas com o caco de Jó, as grandes orelhas de carne, o look rei Lear.


(Leyla Perrone-Moisés, Mutações da literatura no século XXI. São Paulo: Cia das Letras, 2016, p. 54-55)

Nenhum comentário:

Postar um comentário