sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Corpos do rei, 2

Proust no leito de morte, por Man Ray (1922)
Michon se pergunta para que servem ainda os escritores:
Servir, aceitamos. Mas onde está a guerra, onde está Deus, onde o serralho de noventa e nove esposas, onde os reinos e os apanágios? Onde está a humanidade sofredora e regenerada, onde as revoluções e as caridades apaixonadas, onde está Jean Valjean? Ora, só resta a prosa, o texto que dói e faz gozar dessa dor, o texto que mata.
Talvez Michon seja um dos últimos escritores a buscar a expressão literária como um valor inestimável, e a achar ainda, como Flaubert ou Proust, que ela merece todos os sacrifícios. Mas ele sabe, como escritor atual, que essa velha religião quase não tem mais fiéis. "A seriedade com que consideramos a literatura nos dá um aperto no coração", escreve ele em Corps du roi, citando Pasolini acerca de Gombrowicz. Sua escrita é a prática obstinada de uma forma vista como antiquada. Michon é herdeiro de uma dinastia decaída que ele continua a honrar, cuidando da língua como de uma coisa preciosa, buscando demonstrar o quanto a escrita literária pode suprir a distância entre o desejo de grandeza e a pequenez do mundo, entre a aspiração à eternidade e a condição de mortal. Um elefante, em suma. 

(Leyla Perrone-Moisés, Mutações da literatura no século XXI. São Paulo: Cia das Letras, 2016, p. 56-57)
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Diderot por Greuze, 1784
(Michon não faz referência a essa fotografia que encaixa tão bem em seu projeto - seu projeto sobre o duplo corpo do escritor, aquele que perece e aquele que permanece. Man Ray e Proust não se conheciam, mas amigos em comum arranjaram o encontro post-mortem, mais um capítulo na tradição dos retratos de famosos escritores por famosos artistas (Diderot por Greuze, Victor Hugo por Nadar). Jean Cocteau foi o primeiro a interpretar a imagem de Proust morto, dando a legenda: "Proust com barba", evidenciando, portanto, não tanto o evento da morte, mas o surpreendente desleixo do autor, sempre tão cuidadoso em escanhoar as faces e afinar as meticulosas pontas dos bigodes. A foto seria um memento restrito à família, até que meses depois surgiu na imprensa, com o crédito da imagem dado não a Man Ray, mas a um fotógrafo desconhecido (o vazamento teria sido realizado pelo próprio Cocteau, com o intuito de impulsionar semioticamente seus escritos sobre a morte de Proust). Cocteau também é aquele que relata que até os últimos momentos de vida Proust estava envolvido com sua Recherche - e que inclusive a morte do autor, ou o encaminhamento do autor em direção à morte, foi usada como modelo para a morte de Bergotte (Proust teria reescrito a morte de Bergotte na noite em que morreu). Bergotte, afinal, é o "homenzinho de barba", como Proust escreve em Le Côté de Guermantes, e além disso, no número da Nouvelle Revue Française de janeiro de 1923, um tributo a Proust, está publicado um fragmento intitulado "La Mort de Bergotte", além do texto de Cocteau, "La voix de Marcel Proust" - entre muitos outros, como Gide, Valéry e Curtius).   
Victor Hugo por Nadar

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