sábado, 29 de agosto de 2015

Submissão

Um elemento central na ficção de Michel Houellebecq: o confronto entre público e privado e, para além do confronto, a incontornável fusão desses dois espaços. O "lar" só existe na medida em que reflete modelos sociais e midiáticos mais amplos - desde as comunas alternativas de Partículas elementares até a revolução doméstica islâmica de Submissão, a dimensão subjetiva dos personagens é sempre definida a partir de seu consenso ou dissenso diante das "tendências" (justamente o tipo de palavra-chave que Houellebecq de forma tão precisa sempre incorpora em suas histórias). O jargão publicitário acentua essa indistinção entre público e privado: é importante sentir-se em casa dentro do carro, no supermercado, na primeira classe dos aviões, nos destinos turísticos (e com ele o jargão empresarial, o executivo 24/7, para o qual o trabalho é a casa e vice-versa). Em Submissão, a casa-França se torna a casa-Europa - o presidente muçulmano da França não só transforma os lares (as mulheres fora do mercado de trabalho, a poligamia, os "valores" tradicionais nas escolas) como transforma a nação, diluindo sua especificidade francesa num projeto de Império europeu (europeidade essa que também é diluída com a inclusão de Marrocos, Tunísia, Egito e Turquia). 

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Santos beberrões

     Simone Darrieux, rue des Petites Écuries, Paris, setembro de 1977. Ele nunca conseguiu nada que remotamente pudesse se assemelhar a um trabalho. A verdade é que não sei do que vivia. Chegou com dinheiro, ao que me consta, em nossos primeiros encontros era sempre ele que pagava, café com leite, aguardente de maçã, taças de vinho, mas o dinheiro dele se esgotou com rapidez e, que eu saiba, não tinha nenhuma fonte de renda.

     Ele me contou uma vez que tinha encontrado uma nota de cinco mil francos na rua. Depois desse achado, disse, sempre andava olhando para o chão.
     Passado um tempo, voltou a encontrar outra nota perdida. 
(Roberto Bolaño, Os detetives selvagens. Trad. Eduardo Brandão. Companhia das Letras, 2006, p. 240).
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Depois dessa noite, da noite em que sonhara este sonho, ele se levantou revigorado como se levantara uma semana atrás, quando lhe aconteceram os milagres, e parecia tomar o sonho por um verdadeiro milagre. Novamente sentiu vontade de se lavar no rio. Mas antes de tirar o paletó para fazê-lo, apalpou o bolso interno esquerdo, com a vaga esperança de poder ainda encontrar ali algum dinheiro do qual talvez não tivesse se dado conta. Apalpou o bolso interno esquerdo de seu paletó e sua mão de fato não encontrou ali qualquer cédula, mas sim aquela carteira que ele comprara alguns dias antes. Tirou-a do bolso. Como era de esperar, tratava-se de uma carteira muito ordinária, já usada, barganhada. Raspa de couro. Couro de boi. Esteve a contemplá-la, pois não se lembrava mais de onde e de quando a comprara. Como isso veio parar em minhas mãos? - perguntou-se. Por fim abriu-a e viu que tinha dois compartimentos. Tomado pela curiosidade, examinou o interior de ambos, e em um deles havia uma cédula. Retirou-a dali; era uma cédula de mil francos. (Joseph Roth, A lenda do santo beberrão. Trad. Mário Frungillo. Estação Liberdade, 2013, p. 37-38).

terça-feira, 18 de agosto de 2015

A centralidade das dívidas

Ginevra, Giorgio e Martin, 1966
Em um ensaio publicado na revista Critique em 1963 ("Força e significação", hoje em A escritura e a diferença), Jacques Derrida cita Artaud através de Blanchot - através de um texto de Blanchot publicado em 1948 na revista L'Arche, fundada por André Gide, intitulado "Du merveilleux" (são dois ensaios travestidos de resenhas: o ensaio de Derrida seria uma resenha do livro de Jean Rousset, Forme et signification, e o ensaio de Blanchot seria uma resenha do livro de Pierre Mabille, Le Merveilleux). A citação de Blanchot, em que fala de Artaud, usada por Derrida em seu texto, diz respeito à "ausência profunda, inveterada, endêmica, de qualquer ideia", uma ausência que ainda assim leva à escritura. Na nota de rodapé, Derrida completa: "Não é a mesma situação descrita em Introduction à la méthode de Léonard de Vinci?", ou seja, a discussão de Blanchot acerca do vazio e da ausência, a partir de Artaud, não é análoga à de Paul Valéry no seu livro sobre da Vinci de 1895?
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A centralidade de Blanchot. Foucault já dizia, sobre seus começos, "eu sonhava ser Blanchot". Ou a centralidade de Valéry, a centralidade das dívidas. Em seu ensaio sobre Valéry e o Monsieur Teste (introdução que escreveu para a reedição italiana de 1980) Agamben escreve na epígrafe: "A Roger Dragonetti, que abriu o caminho a toda leitura de Valéry". E quatro anos depois, quando dá uma conferência em Forlì intitulada La cosa stessa, Agamben escreve na epígrafe: "A Jacques Derrida e à memória de Giorgio Pasquali". No ano seguinte, 1985, Agamben publica Ideia da prosa, e vários de seus pequenos capítulos são dedicados: a ideia da justiça a Carlo Betocchi, a ideia do juízo final a Elsa Morante, a ideia do despertar a Italo Calvino (que foi quem o apresentou a Frances Yates, diretora do Instituto Warburg), a ideia do pensamento novamente a Jacques Derrida, a ideia do enigma a Philipp Ingold e, finalmente, a ideia da felicidade a "Ginevra" (Ginevra Bompiani - foi com ela que Agamben frequentou os seminários de Heidegger em Le Thor e, para fechar o raciocínio, foi com ela que traduziu, em 1967, a versão que Artaud escreveu de The Monk, o romance gótico de Matthew Lewis).

sábado, 15 de agosto de 2015

A raposa-caçador

1) A raposa já era o caçador, de Herta Müller, não é apenas a história de uma amizade, como aponta a maioria dos resumos - a amizade de Clara e Adina, que vai aos poucos sendo minada pelo relacionamento da primeira com um agente da polícia secreta. Há pouca progressão efetiva na narrativa, ela não é exatamente dramática nesse sentido. O que parece estar em jogo é a construção de um ambiente e de um conjunto de sensações - as sensações que acompanham a vida em suspensão dentro do totalitarismo, quando só se espera. Isso é significativo também no que diz respeito ao momento histórico em que Herta localiza a história: os últimos meses do regime de Ceaucescu, ou seja, quando esse tempo de suspensão está prestes a se romper e, com ele, a estrutura narrativa necessária para dar conta dele.
2) Há uma dependência profunda que liga a poética de Herta Müller e a situação totalitária, que repercute não apenas em seus temas, motivos e situações (o interrogatório, a fila do pão, os conjuntos residenciais, a escassez, os campos), mas sobretudo em sua linguagem, que tenta dar conta dos objetos cotidianos e das relações humanas em um contexto histórico e social que os recusa. É por causa dessa situação insustentável - produzida pelo totalitarismo - que a prosa de Herta Müller surge como tal, tocando o surrealismo, abandonando por vezes a progressão dos fatos e correndo em direção a um detalhe imaginado ou sonhado, a junção de uma cor com a lembrança de uma criança e em seguida a visão dos pés de um enforcado ou uma piada sobre um anão romeno no inferno.
Paul estava sentado sozinho com sua voz na cozinha e monologava para os outros dois, alto. Hoje à noite, ele disse, um homem e uma mulher deram entrada no hospital. O homem tinha uma pequena machadinha de madeira enterrada na cabeça. O cabo da machadinha parecia ter nascido no meio do cabelo. Não se via nem uma gota de sangue em sua cabeça. Os médicos se reuniram em torno do homem. A mulher disse, aconteceu há uma semana. O homem riu e disse que se sentia bem. Uma médica disse, é possível apenas cortar o cabo, não dá para extrair toda a machadinha porque o cérebro se acostumou. Depois, os médicos extraíram a machadinha. O homem morreu durante o procedimento. (Herta Müller, A raposa já era o caçador. Trad. Claudia Abeling. Biblioteca Azul, 2014, p. 88-89).
3) O que diferencia os livros de Herta Müller de outros livros sobre o totalitarismo é seu método de absorção do absurdo pela linguagem, para além das cenas, dos relatos, das anedotas - a situação totalitária, instável, com regras móveis e insegurança constante, repercute na recusa da progressão romanesca ou na recusa da composição restrita dos personagens. Mas mesmo na dimensão dos personagens essa instabilidade permanece e é reforçada: o que quer dizer, afinal, que a raposa já era o caçador? Quer dizer que o poder totalitário transforma a todos em caçadores, em vigias, informantes, traidores. Não há coesão social, comunidade ou viver-junto que se sustente sob o totalitarismo - e é por conta disso que não podemos "confiar" nos personagens de seus romances, ou seja, confiar em seus traços e em suas características, porque esse registro e essa expectativa não pertencem a esse projeto e a essa linguagem.
O caçador pôs a raposa sobre a mesa e alisou seu pelo. Ele disse, não se atira em raposas, as raposas caem em armadilhas. Seu cabelo e sua barba e os pelos de suas mãos eram vermelhos como a raposa. Seu rosto também. Naquela época a raposa já era o caçador. (p. 137).

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Nome e destino

John Lort Stokes, 1811-1885
É recorrente o atravessamento da tragédia com a literatura de viagem - ou ainda, o personagem principal da ficção de viagem que é atravessado por uma modulação de caráter e de função que responde a um procedimento trágico (de inevitabilidade do destino, por exemplo). Viajantes que alcançam não um destino, mas a depressão e desespero - como em Nove noites, de Bernardo Carvalho, ou Os papeis do inglês, de Ruy Duarte de Carvalho, ambos reflexos dos livros de Conrad. 
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Em novembro de 1819, o navio britânico Owen Glendower partiu em direção à América do Sul. Em outubro de 1820, passa na ilha de Santa Helena para averiguar as condições do cárcere de Napoleão. Nesse navio servia um oficial de nome Pringle Stokes, que alguns anos depois seria comandante do Beagle, o navio de Darwin, que estava sendo construído precisamente nesse ano de 1819. Alguns anos depois, já comandando o Beagle, Stokes passa por uma série interminável de contratempos ao longo da costa sul-americana, o que lhe custa a saúde. Em primeiro de agosto de 1828, em Puerto del Hambre, na Patagônia, Stokes dá um tiro na cabeça; a bala fica alojada no crânio mas não provoca sua morte imediatamente - ele vai morrer só em 12 de agosto, de gangrena, aos 35 anos (o comandante seguinte do Beagle, FitzRoy, responsável pela segunda viagem do Beagle, agora sim com Darwin, também vai se suicidar, cortando a própria garganta com uma navalha, mas muito mais tarde, em 1865, aos 59 anos. Outro Stokes fez parte dessa segunda viagem do Beagle, John Lort Stokes, que não era parente do suicida Pringle. John Lort era um oficial da Marinha Britânica e dividiu sua cabine com Darwin. Em 25 de abril de 1882, o Morning Post publicou o tributo de Stokes a seu companheiro de cabine, que morrera naquele mês: "talvez ninguém possa atestar melhor que eu sua intensa e dedicada laboriosidade. Trabalhamos juntos durante anos no Beagle, ele com seu microscópio, eu com meus mapas. Isso, infelizmente, não durava muito para meu pobre amigo, que sofria de enjoo de viagem. Após mais ou menos uma hora de trabalho, ele me dizia: 'Meu velho, devo agora ficar na horizontal'... e se estendia num dos lados da mesa. Podia, assim, retomar a tarefa por algum tempo, quando então tinha de se deitar de novo" - essa citação está em James Taylor, A viagem do Beagle, trad. Gilson de Sousa, Edusp, 2009, p. 29).