1) A partir de Joseph Conrad, Edward Said observa uma inflexão que vai se tornando mais pronunciada com o passar do tempo: se em Conrad, num primeiro momento, a viagem ainda é necessária para encontrar o Outro e a perversão do Outro (o Congo no Coração das trevas ou a América Latina em Nostromo), essa necessidade vai aos poucos se diluindo no aspecto reflexivo (ou autoimune, para usar um termo fundamental para a última fase de Derrida) dessa perversão do Outro, que se transforma em perversão do Mesmo (em Coração das trevas, ainda que esteja do outro lado do mundo, distante do coração do Império, Kurtz e seus excessos são partes inerentes à lógica do Império).
2) "Toda característica atribuída ao Outro já está presente no coração mesmo dos EUA", comenta Slavoj Zizek sobre o 11 de Setembro. Zizek fala dos fundamentalistas de direita que "reagiram aos acontecimentos" "vendo neles um sinal de que Deus retirava dos EUA a sua proteção por causa das vidas pecaminosas dos americanos, lançando a culpa no materialismo hedonista, no liberalismo e na sexualidade desvairada, e afirmando que a América havia recebido o que merecia". Repete-se a inflexão entre próprio e alheio constatada por Said em Conrad: "O fato de a condenação da América 'liberal' feita pelo Outro Maometano", escreve Zizek, referindo-se à justificativa "ideológica" ao ataque às Torres, "ser a mesma que se originou no coração da Amérique profonde deve nos fazer pensar"; "o verdadeiro choque é o choque no interior de cada civilização" (Bem-vindo ao deserto do Real!, tradução de Paulo Cezar Castanheira, Boitempo, 2003, p. 60-61).
3) Esse é o tema dos grandes livros de Don DeLillo, como Libra, Submundo ou Cosmópolis, que são romances que lidam mais diretamente com o 11 de Setembro do que Homem em queda, justamente pela consciência sutil de que a busca pela perversão do Outro é uma espécie de investigação diante do espelho. No caso de Libra, assim como acontece em Casei com um comunista, de Philip Roth, existe um exercício de sobreposição dos antagonistas: os dois lados - americanos e soviéticos - não são realmente opostos, eles pertencem ao mesmo campo (o drama pode ser rastreado até para além do Kurtz de Conrad, alcançando, por exemplo, a reflexão de Dostoiévski sobre o terrorismo interno em Os demônios - que é precisamente e certamente não por acaso (vide as reflexões sobre política externa em Diário de um ano ruim) o contexto resgatado por Coetzee no Mestre de Petersburgo).
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