quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Étant donnés

 A última criação de Duchamp, de divulgação póstuma, chama-se Étant donnés - uma estrutura complexa que se esconde por trás de uma porta de madeira emoldurada por tijolos (coletados ao longo de anos pelas ruas de Nova York). Olhar esse corpo feminino nu e artificial é ter acesso a uma espécie de segredo, uma impressão que é reforçada pela postura que a obra exige do observador: é preciso olhar através de dois buracos feitos na porta. Essa obra estranha joga permanentemente com os opostos, com as aporias: sua condição de artefato "aberto à visitação" é confrontado por esse método restrito de apresentação (apenas uma pessoa por vez pode olhar pelo buraco); o corpo nu está ligado tanto à morte quanto ao desejo, pulsão de vida e pulsão de morte, pois é tanto cadáver quanto escultura. Existe de forma evidente um esforço de encenação nesse espaço tão restrito - um pequeno quarto que guarda um segredo e que está, ao mesmo tempo, meticulosamente preparado para ser invadido. Nada é o que parece ser - ou melhor, nada é apenas aquilo que parece ser, pois cada elemento da instalação de Duchamp leva a uma quantidade imensa de citações, referências, empréstimos e colagens. 
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Hanns Sachs, em seu livro Freud, mestre e amigo, de 1945, fala de uma história que Freud costumava contar: pela primeira vez na vida, um caipira chega num quarto de hotel. Na hora de dormir, tenta soprar a lâmpada do abajur, pensando se tratar de um lampião. Segundo Sachs, Freud fazia o seguinte comentário: "ao lidarem com o neurótico, se vocês atacarem somente o sintoma, estarão fazendo exatamente como esse homem. É preciso encontrar o interruptor" (Sachs, Freud, mon maître et mon ami, Denöel, 1977, p. 43-44). Na cena armada por Duchamp em Étant donnés essa metáfora pedagógica de Freud ganha uma materialidade surpreendente, não apenas por conta do lampião/lâmpada que a mulher segura, mas principalmente pelo arranjo físico da cena traumática e/ou onírica. O caipira, assim como o observador de Étant donnés, está preso numa situação que não lhe oferece nada de familiar - e aquilo que parece familiar (o lampião) é um embuste, uma armadilha, uma ficção (a lâmpada), que deve levar necessariamente a um elemento que lhe dá sustentação, mas que permanece secreto, recalcado (o interruptor). É preciso reconstruir o próprio desejo de conferir sentido ao que se vê tendo como parâmetro as leis dadas pela cena, e não aquelas que o caipira/observador leva consigo.

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