
2) Em A cortina, Kundera se demora bastante na questão do prosaico na ficção - o caráter concreto, cotidiano, corporal da vida. Essa é uma conquista do romance, do olhar reiterado sobre o detalhe banal. Não ocorre a Homero perguntar-se se depois de suas inumeráveis lutas Aquiles ou Ájax conservaram todos os dentes, escreve Kundera. O romance fornece os pormenores, permite que os significados aflorem por si mesmos. O paradoxo da forma romanesca: quanto mais próximo dos fatos da vida, maior a evidência do artifício.
3) Duas passagens de Coetzee: primeiro aquela de O mestre de Petersburgo na qual Dostoiévski, sozinho e oprimido pela dor da perda do filho, arrasado pela necessidade que sente de ir atrás do anarquista que provocou a morte de Pável, senta-se na cama e, antes de dormir, retira sua dentadura e a coloca num copo com água, em cima de uma bancada. A segunda, aquela que encontramos em Elizabeth Costello, a passagem que faz referência a Robinson Crusoe e sua descoberta da função do detalhe realista na narrativa: Robinson Crusoe, naufragado na praia, procura em torno os companheiros de navio. Não há nenhum. "Nunca mais os vi", diz, "a não ser três chapéus, um boné, e dois sapatos esquerdos". Dois sapatos, não parceiros: não sendo parceiros, os sapatos deixaram de ser calçados, passaram a ser prova da morte, arrancados dos pés dos afogados pelos mares espumosos, e atirados à praia.
3) Duas passagens de Coetzee: primeiro aquela de O mestre de Petersburgo na qual Dostoiévski, sozinho e oprimido pela dor da perda do filho, arrasado pela necessidade que sente de ir atrás do anarquista que provocou a morte de Pável, senta-se na cama e, antes de dormir, retira sua dentadura e a coloca num copo com água, em cima de uma bancada. A segunda, aquela que encontramos em Elizabeth Costello, a passagem que faz referência a Robinson Crusoe e sua descoberta da função do detalhe realista na narrativa: Robinson Crusoe, naufragado na praia, procura em torno os companheiros de navio. Não há nenhum. "Nunca mais os vi", diz, "a não ser três chapéus, um boné, e dois sapatos esquerdos". Dois sapatos, não parceiros: não sendo parceiros, os sapatos deixaram de ser calçados, passaram a ser prova da morte, arrancados dos pés dos afogados pelos mares espumosos, e atirados à praia.
Li muita coisa de Milan Kundera e alguns, mais de uma vez - mas nenhum desses livros de ensaios, que coisa.
ResponderExcluirArrancados dos pés dos afogados sem lanterna. A prova do azar.
ResponderExcluirO paradoxo da forma romanesca: quanto mais próximo dos fatos da vida, maior a evidência do artifício.
ResponderExcluirAcho que o grande mestre contemporâneo da banalidade é o Oz e talvez por isso mesmo muitos de seus livros sejam pouco celebrados. 'Conhecer uma Mulher' exulta nessas cenas onde quase nada acontece e Oz fica por ali, esmiuçando as tarefas mais comezinhas do cotidiano de seu personagem...
ResponderExcluirMas quando o Coetzee lida com esse material a potência é bem diferente, não? Pela própria secura de sua prosa, esses pequenos momentos, de insignificantes passam a querer transbordar.
Marcus, vc acabou de ler o Mestre de P., não é mesmo?
ResponderExcluir"O paradoxo da forma romanesca: quanto mais próximo dos fatos da vida, maior a evidência do artifício" > essa foi a frase que mais demorou pra sair.
ResponderExcluirIsso. E é curioso que algumas profundas reflexões sobre o ato de escrever estão ali como quase nada, como um reflexo de uma dificuldade.
ResponderExcluir(se eu tivesse o costume de anotar, talvez lembrasse alguns pontos interessantes.)