sábado, 12 de fevereiro de 2011

Alegria e consolo

1) Em uma das resenhas que podemos encontrar em seus Textos recobrados, Borges retoma uma lição de Giambattista Vico: não é função da leitura nos alegrar, muito menos nos consolar prematuramente. Vico sabia do que estava falando: ele tinha uma filha que sofria ano após ano com uma doença degenerativa; um filho havia sido preso por conta das dívidas e de seu comportamento "imoral"; o próprio Vico, no fim da vida, sofreu um câncer violento que o impedia de falar. Borges menciona Jó e seu sofrimento bíblico. Em seguida, faz uma breve referência a Faulkner - cujo universo é um interminável pesadelo de aridez, amargura e loucura.
2) O homem comum, personagem desse pesadelo, é fascinado por Deus e por armas - seu maior prazer é colocar a mão na massa e não pensar em mais nada, apenas seguir trabalhando, manejando suas ferramentas cada vez com maior abandono e maestria. Seu delírio é auto-imune: seu desejo de ser casto é alimentado por seu vício em pornografia; ele aguarda ansioso o apocalipse e a vinda de seu Messias, que limpará a nódoa do pecado de todos os corações, e espera antecipar esse evento utilizando suas próprias armas.
3) Harold Bloom afirma que Cormac McCarthy é o maior herdeiro de Faulkner. McCarthy é de uma relevância absoluta - ele é o Homero de nosso épico contemporâneo de massacres e religiosidade. O delírio continua auto-imune: as estruturas que aparentemente oferecem o maior conforto são aquelas que determinam os pontos mais altos da loucura entre os homens. O que a leitura talvez possa oferecer é um corte longitudinal nesse delírio, deixando boa parte dos nervos expostos e boa parte das secreções ao relento, permitindo que o odor se espalhe, para fruição de todos nós.

2 comentários:

  1. Cheguei aqui por conta da referência de Bloom a Cormac McCarthy. Deste, li Todos os Belos Cavalos, Meridiano Sangrento e A Travessia. Todos muito bons, especialmente este último. Confesso que para mim, sobretudo um leitor, fica difícil estabelecer uma profunda ligação de McCarthy com Faulkner (de quem li somente dois livros). Devo estar enganado, pois só enxergo alguma ligação entre eles em A Estrada (o filme baseado no livro que ainda não li). Somente nessa história a narrativa de McCarthy é sombria a maior parte do tempo, enquanto Faulkner me pareceu entrevado e pessimista o tempo todo (e pouco comunicativo em termos de linguagem; falo especialmente de O Som e a Fúria). Quando o México ou a fronteira entra nos romances de McCarthy fica tudo muito luminoso. É somente isso aí, nada de muito importante.

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  2. última entrada de Franz Kafka em seus diários, 12.jun.1923:

    "Cada vez más angustiado cuando escribo. Es comprensible. Cada palabra, volteada en la mano de los espíritus -ese giro de su mano es el movimiento característico de ellos- se convierte en lanza dirigida contra el que habla. Muy especialmente una observación como esta. Y así hasta el infinito. El único consuelo sería: ocurre, quieras o no. Y lo que tú quieres solo proporciona una ayuda imperceptiblemente pequeña. Más que consuelo es esto: también tú tienes armas."

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