segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Lições de dança



1) Uma das coisas que chamam a atenção durante a leitura da breve novela de Bohumil Hrabal, Lições de dança para idosos, de 1964, é a quantidade de suicídios: muitos personagens, nos mais variados contextos, decidem pela morte pelas próprias mãos; o motivo principal, que organiza boa parte dessas ocorrências, é a desilusão amorosa - de resto, tema forte e constante de Hrabal, sempre interessado no corpo, no sexo, no toque, no orgasmo, no beijo (em Trens rigorosamente vigiados, por exemplo, novelinha do ano seguinte, 1965, o controlador de tráfego da pequena estação onde trabalha o narrador se chama "Hubička", cujo significado literal, em tcheco, é "beijoca" (é o que informa o tradutor Luís Carlos Cabral em nota)).

2) De onde Hrabal tira esse estilo convulsivo e heterogêneo? Lições de dança para idosos, por exemplo, é uma novelinha feita de uma frase só, com ideias e cenas separadas apenas por vírgulas, sem qualquer preocupação com coesão ou lógica na junção de uma história a outra - o que organiza o todo é a voz do narrador, que aparentemente está contando suas histórias para um grupo de mulheres (dançarinas?) no que parece ser um ajuntamento vestido nos fundos do terreno de uma igreja. Diante desse fluxo, e pensando na data de lançamento (e de produção de Hrabal de uma forma geral), vem à cabeça, sem dúvida, o Ulisses de Joyce - que teve o tcheco como uma de suas primeiras traduções, já em 1930 (logo depois das traduções para o alemão (1927) e francês (1929)).

3) Em um momento de Lições de dança, por exemplo, o narrador conta que estava andando pela rua e vê uma linda mulher que não parece estar usando calcinha; ele fixa o olhar exatamente ali, que, segundo o narrador, "é o ponto onde Goethe gostava de fixar o olhar antes de se sentar para escrever poemas"; em outro momento, o narrador relembra um velho conhecido, velho parceiro de noitadas, que, quando bêbado (especificamente nas festas na igreja), gostava de pegar as estátuas dos santos e despejar slivovitz pelas bocas de louça dos santos, o que gerava intensa revolta no padre, que vinha correndo, gritando: "bando de tártaros, é assim que vocês se comportam na casa de Deus?". 

sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Um rato


Um rato entrou, não sei de que buraco;

Não silencioso, como é seu hábito,

Mas presunçoso, arrogante e bombástico.

Era loquaz, rebuscado, equestre:

Empoleirou-se em cima da prateleira

E me fez um sermão

Citando Plutarco, Nietzsche e Dante:

Que eu não devo perder tempo,

Blá-blá-blá, que o tempo urge,

E que o tempo perdido não retorna,

E que tempo é dinheiro,

E que quem tem tempo que o aproveite,

Porque a vida é breve e a arte é longa,

E que sente lançar-se às minhas costas

Não sei que carro alado e falcado.

Que petulância! Quanta baboseira!

Era de me torrar a paciência.

Acaso um rato sabe o que é o tempo?

Logo ele, que está gastando o meu

Com essa lenga-lenga descarada.

É um rato? Que vá pregar aos ratos.

Pedi-lhe que saísse do recinto:

O que é o tempo, eu sei perfeitamente,

Entra em muitas equações da física,

Em vários casos até ao quadrado

Ou com um expoente negativo.

E de meus casos quem cuida sou eu,

Não necessito de governo alheio:

Prima caritas incipit ab ego.


15 de janeiro de 1983


(Primo Levi, Mil sóis: poemas escolhidos, trad. Maurício Santana Dias, Todavia, 2019, p. 94-97)

domingo, 9 de novembro de 2025

O convite



1) Lendo o livro de Alain Robbe-Grillet, Os últimos dias de Corinto, encontro uma passagem sobre Barthes (o objetivo de Robbe-Grillet é, também, o de acessar o registro autobiográfico, mesclando com ficção), que transcrevi aqui. O que me chama a atenção é, em primeiro lugar, esse dia único, irrepetível: a inauguração de Barthes do Collège de France, a primeira vez que jamais poderá ocorrer de novo; em segundo lugar, me chama a atenção o modo como Robbe-Grillet indica certa infelicidade permanente de Barthes - "uma das raras vezes em que veria Roland feliz e descontraído, livre da competição que lhe pesava como uma montanha".

2) Pesquisando sobre essa aula inaugural de Barthes, encontro, por acaso, uma foto de um dos convites - mas não é qualquer convite, aparentemente se trata do convite enviado a Julia Kristeva. A foto está em um perfil de instagram, "better_read_than_dead_bk" (uma postagem de 10 de julho de 2025; escrevem, entre outras coisas: "Proud to finally frame my very first (2017?) in this stolen Walmart frame — Julia Kristeva’s invitation to the invite-only inaugural lecture by Barthes at what would prove to be his last ever position at the Collège de France. Not for sale, although I have spent many weeks thinking someone stole it over the last many years when I couldn’t find it. (i.e. many weeks thinking, “I should have just sold that”)"), aparentemente um sebo localizado no Brooklyn, em Nova York ("ex-867 Broadway", agora "Greene Ave Garage (by appointment or chance)"), e o texto do convite diz: "Roland Barthes vous prie de lui faire l'honneur d'assister le vendredi 7 janvier 1977, à 17h30, dans la Salle 8 du Collège de France, à la leçon inaugurale de sa chaire: 'Sémiologie Littéraire'". 

3) Nos comentários da postagem, surge um usuário que diz ter comprado o livro dentro do qual estava o convite enviado a Julia Kristeva; usuário "ptsdboy" escreve: "and it was found in the book which i bought! (Annette Michelson’s copy of Mythologies)"; ninguém responde ao comentário, corroborando ou não a informação, de modo que existe, portanto, essa possibilidade: o convite de Julia Kristeva, por alguma razão, foi parar nas mãos de Annette Michelson (1922-2018), que o colocou dentro de um exemplar de Mitologias, livro de Barthes (não fica claro se uma edição em francês ou inglês). (Michelson e Kristeva provavelmente se conheceram nos EUA, quando a segunda chegou em Columbia como professora visitante no início dos anos 1970).

sábado, 1 de novembro de 2025

Um perverso



"Lembro-me da noite inaugural, no Collège de France, para a primeira aula de Roland Barthes. Depois da sessão, havia uma festa alegre na casa de seu amigo marroquino. Foi uma das raras vezes em que veria Roland feliz e descontraído, livre da competição que lhe pesava como uma montanha. Os convidados eram na maioria seus jovens discípulos, com algumas raras moças, mas se encontram ali também cinco ou seis antigos companheiros: Genette, Foucault, Deleuze e eu mesmo. Depois de abundantes libações, a atmosfera tornando-se mais terna e acariciante, digo a Barthes que estava na minha hora de partir, dadas as minhas preferências bastante restritas nesse campo.

Michel Foucault, que não bebia jamais uma gota de álcool e tornava-se, com a idade, cada vez mais intolerante em relação aos heterossexuais, adotando seu ar de aiatolá, guardião da lei divina, lança-me bem alto: 'Eu te disse e repito, Alain: sexualmente, tu vives e sempre viveste no erro!'. Claro, havia sarcasmo no brilho dos seus olhos de filósofo passional, mas a condenação parecia contudo tão evidente que Roland, encarnação da tolerância, sobretudo naquela noite, protege-me do juiz, passando o braço em torno dos meus ombros, e propõe em minha defesa: 'Apesar de tudo, é um perverso...' - 'Isso não basta!', decide Foucault com violência"

(Alain Robbe-Grillet, Os últimos dias de Corinto, trad. Juremir Machado da Silva, Sulina, 1997, p. 207-208)