segunda-feira, 29 de julho de 2024

Dostoiévski na Lua


Sobre os comentários de Wittgenstein sobre a viagem à Lua, uma nota relacionada, vinda de Bakhtin:

"Quanto à variedade de gênero das 'viagens fantásticas', aplicada em O sonho de um homem ridículo, é provável que Dostoiévski conhecesse a obra de Cyrano de Bergerac, O outro mundo ou História cômica dos Estados e Impérios da Lua (1647-1650). Aqui há uma descrição do paraíso terrestre na Lua, de onde o narrador foi expulso por desrespeito. Em sua viagem pela Lua ele é acompanhado pelo 'demônio de Sócrates', o que permite ao autor introduzir o elemento filosófico (no espírito do materialismo de Gassendi). Pela forma exterior, a obra de Bergerac é um autêntico romance filosófico fantástico.

É interessante a menipeia de Grimmelshausen Der fliegende Wandersmann nach dem Mond (aproximadamente 1659), cuja fonte geral foi um livro de Cyrano de Bergerac. Aqui aparece no primeiro plano o elemento utópico. Retrata-se a excepcional pureza e a justeza dos habitantes da Lua, os quais desconhecem os vícios, os crimes, a mentira, em seu país a primavera é eterna, eles vivem muito e comemoram a morte com um banquete alegre em círculos de amigos. As crianças que nascem com inclinações para o vícios são enviadas à Terra para evitar que corrompam a sociedade. Indica-se a data precisa da chegada do herói à Lua (como no sonho de Dostoiévski)"

Bakhtin, Problemas da poética de Dostoiévski, trad. Paulo Bezerra, Forense Universitária, p. 170)

quarta-feira, 17 de julho de 2024

Selenografia onírica



1) Ainda no fragmento de número 106 do seu livro Sobre a certeza, no qual Wittgenstein apresenta o breve relato de uma criança que escuta de um adulto que este viajou à Lua, é possível observar ainda outros dois elementos dignos de nota: a criança insiste e diz a ele (diante do argumento de que é impossível chegar à Lua) que pode existir um modo de chegar lá; diante disso, Wittgenstein apresenta duas possibilidades para que isso (a viagem à Lua) aconteça: adultos que pertençam a uma "tribo" que tem entre suas crenças a crença de que pessoas às vezes vão até a Lua, acrescentando ainda que isso pode ocorrer em seus sonhos.

2) Na conversa hipotética com a criança, portanto, Wittgenstein fala de "tribos" e de "sonhos", ou seja, em certo sentido, de experiências "arcaicas" da comunidade e da natureza e, em paralelo, da emergência do inconsciente e de seus processos e estratégias. Nisso tudo também é possível ver um pano de fundo de questões levantadas por Wittgenstein em outros momentos: em 1931, Wittgenstein começa a escrever Observações sobre O Ramo de Ouro de Frazer (que sairá só depois de sua morte, em 1967); alguns anos depois, em 1938, em Cambridge, Wittgenstein monta um curso sobre estética para um grupo pequeno de estudantes - nessas aulas, vai comentar suas leituras de Freud, especialmente no que diz respeito às interpretações de sonhos.

3) Um dos alunos desse pequeno grupo em Cambridge era Rush Rhees, amigo de Wittgenstein que, mais tarde, organizará, a partir de suas anotações, o ensaio "Conversations on Freud" (que pode ser encontrado no livro realizado, postumamente, a partir das notas feitas no curso de 1938). Ray Monk, biógrafo de Wittgenstein, conta que, em 1942, o filósofo vai visitar o amigo em sua casa depois de uma operação (extração de um cálculo biliar: por desconfiança dos médicos ingleses, Wittgenstein não quis tomar anestesia geral e acompanhou toda a operação utilizando um espelho); apesar de, nessa época, estar trabalhando com filosofia das matemáticas, as conversas de Wittgenstein com Rhees são sobre Freud e a interpretação dos sonhos (assim como Freud, Wittgenstein usava os próprios sonhos como material de discussão).

quinta-feira, 11 de julho de 2024

Viagem à Lua


1) No fragmento de número 106 do seu livro Sobre a certeza, Wittgenstein apresenta o breve relato de uma criança que escuta de um adulto que este viajou à Lua. O ponto central da fábula de Wittgenstein é que ele precisa convencer a criança que é impossível viajar à Lua: ela está muito distante, não é possível voar até ela e assim por diante. Todo o nosso sistema da física nos impede de acreditar nisso, escreve Wittgenstein, acreditar que é possível ir à Lua. Ele elenca impossibilidades: a força da gravidade, a falta de atmosfera. 

2) Sobre a certeza foi o último esforço filosófico de Wittgenstein. As anotações começam em 1949 e vão até 1951, ano de morte de Wittgenstein. Ele escreveu parte das notas entre abril de 1950 e fevereiro de 1951, quando morou em Oxford, na casa de sua aluna e futura editora Gertrude Anscombe (que será uma das responsáveis por Sobre a certeza depois da morte do filósofo). A última anotação de Wittgenstein é do dia 27 de abril de 1951 (ele havia feito aniversário no dia anterior, 26 de abril, 62 anos). Ele morre dois dias depois, na casa do seu médico, Edward Bevan (foi para a esposa deste, Joan, que Wittgenstein disse suas últimas palavras: Tell them I've had a wonderful life).

3) Wittgenstein, que gostava muito de ir ao cinema (e sentar na primeira fila, como informa o biógrafo Ray Monk), talvez tenha visto Viagem à Lua, de Méliès. Outro aspecto interessante na relação de Wittgenstein com uma (possível, impossível?) viagem à Lua é sua formação como engenheiro: ele chega à Victoria University of Manchester em 1908 com a intenção de estudar, entre outras coisas, aeronáutica. De certa forma, quando ele conta a fábula da criança em Sobre a certeza, não oferece um comentário exclusivamente da posição de filósofo, mas também - ainda que indiretamente - da posição de engenheiro (trata-se, para ele, também de uma impossibilidade mecânica: como voar até lá, que tipo de propulsão seria necessária, etc).   

sexta-feira, 5 de julho de 2024

"Tentei ler"


"Roland Barthes era um homem por quem eu tinha amizade, mas que jamais consegui admirar. Parecia-me que ele assumia sempre a mesma postura professoral, muito controlada, rigorosamente partidária. Uma vez encerrado o ciclo 'Mitologias', não tive mais condições de lê-lo. Depois de sua morte tentei ler seu livro sobre a fotografia, até hoje não consegui, exceto um capítulo muito bonito sobre a mãe. Essa mãe venerada, que foi sua companheira e a única heroína do deserto de sua vida. Em seguida tentei ler Fragmentos de um discurso amoroso, mas não consegui. É muito inteligente, é claro. Apontamentos amorosos, é, é isso, amorosos, eximindo-se daquele jeito, sem amar, mas coisa alguma, parece-me, nada, um encanto de homem, um encanto mesmo, de todo modo. E escritor, de todo modo. Aí está. Escritor de uma determinada escritura, imóvel, regular"

(Marguerite Duras, A vida material, trad. Heloísa Jahn, Globo, 1989, p. 38)