domingo, 19 de maio de 2024

Espalhafato



1) A administração do barulho e do silêncio na relação de Annie Ernaux com sua mãe: o volume da voz é um marcador de classe - irmãs do pai ascenderam socialmente e isso se traduz também no modo como falam (a voz baixa, os gestos contidos); a mãe é o oposto: voz forte e alta, "tudo o que fazia, fazia com barulho. Não pousava os objetos nos lugares, parecia jogá-los" (p. 29). Porém, como num gradiente estruturalista, a lição da mãe logo se inverte - era preciso fazer silêncio quando ela estava trabalhando na mercearia: "se ela ouvia muito barulho, aparecia, me dava uns tapas sem dizer nada e voltava para a mercearia" (p. 31).

2) Depois da infância, o par ruído/silêncio continua operante e determinante: as mães das colegas pequeno-burguesas eram "magras" e "discretas"; "achava minha mãe muito espalhafatosa", "sentia vergonha do seu jeito brusco de falar" (p. 37); imediatamente após a reflexão sobre esse espalhafato, Ernaux separa um detalhe saboroso: "Eu virava os olhos quando ela tirava a rolha de uma garrafa segurando-a entre as pernas" (não se trata apenas da descrição de uma cena, mas da cristalização muito precisa de uma reação a uma cena que, o leitor sente, se repete desde tempos imemoriais: uma mulher "brusca" que coloca uma garrafa entre as pernas para melhor extrair a rolha, gerando na filha uma reação de "virar os olhos" - uma recusa, uma des-identificação).

3) Na velhice, quando a mãe volta a morar sozinha depois de um período na casa da filha, o ruído volta a ser protagonista, agora ocupando a posição de "companhia": "Ligava a TV desde cedo - na época não tinha nenhum programa nesse horário, apenas música de fundo com uma cartela fixa na tela -, deixava o aparelho ligado o dia todo, olhando apenas às vezes, e à noite dormia diante dele" (p. 50). No fim, a única coisa que resta da mãe é, precisamente, o silêncio - ela já não mais está, não existe, só pode ser "ressuscitada" na página muda do livro da filha: "Não vou mais ouvir sua voz. É ela, mas também suas palavras, suas mãos, seus gestos, a maneira como ria e andava, que unem a mulher que eu sou à criança que um dia eu fui" (p. 61).

(Annie Ernaux, Uma mulher, trad. Marilia Garcia, Fósforo, 2024)

Nenhum comentário:

Postar um comentário