quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

Steigerwald


 

"No fim do jantar, Steigerwald, resmungando, ajeitou um canto para dormirem; mudo, ameaçou com os punhos o aparelho morto e se dirigiu para a porta. 'Não tem uma Bíblia?', chamou-o Petrina. Steigerwald reduziu o passo, parou e se voltou para ele: 'Bíblia? Para que você precisa disso?'. 'Pensei em dar uma lida nela antes de dormir. Sabe, sempre me acalmo depois.' 'Que cara de pau!', grunhiu Irimiás. 'A última vez que você pegou num livro foi na infância, e nele você só olhava as figuras...' 'Não ouça o que ele diz!', negou Petrina com ar ofendido. 'Está com inveja simplesmente.' Steigerwald coçou o cacho na testa: 'Aqui só temos bons livros de detetive. Quer um?'. 'Deus me livre!', contestou Petrina. 'Não prestam!' Steigerwald assumiu um ar azedo e desapareceu pela porta que dava para o quintal. 'Que sujeito das trevas, esse Steigerwald...', resmungou Petrina. 'Juro que no pior dos pesadelos um urso faminto seria mais amistoso que ele.' Irimiás deitou-se em seu lugar e puxou o cobertor: 'Pode ser. Mas vai sobreviver a nós todos'. O 'menino' apagou a luz, fizeram silêncio. Por algum tempo, ouviu-se somente o murmúrio de Petrina, enquanto lutava para relembrar a reza que um dia aprendera com a avó: 

Pai nosso... bem, Pai nosso,

que estás no céu, coisa,

no paraíso, glória

ao Nosso Senhor Jesus Cristo,

não... santificado seja o Teu nome,

e seja... ou melhor,

que tudo seja como for melhor

para Você... no céu, e

também na Terra, em todo lugar onde

alcançais... enquanto na Terra

na Terra... no paraíso...

ou no inferno, amém."

(László Krasznahorkai, Sátántangó, trad. Paulo Schiller, Cia das Letras, 2022, p. 188-189)

*

A cena de leitura em Krasznahorkai faz pensar naquela que Ricardo Piglia - em seu romance O caminho de Ida - encontra no filme Johnny Guitar.  Os personagens de Krasznahorkai evocam traços muito tênues de experiências de leitura, construindo essa percepção compartilhada a partir de dois polos antagônicos: de um lado, a Bíblia; de outro, as histórias de detetive (polos que são condensados por Rodolfo Walsh quando publica um artigo no La Nación, em 14 de fevereiro de 1954, intitulado Dos mil quinientos años de literatura policial, articulando Poe e a Bíblia, escrevendo que "Daniel foi o primeiro detetive da história" - Daniel que, ao interpretar os sonhos de Nabucodonosor, é identificado como um precursor também por Freud). 

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