terça-feira, 4 de maio de 2021

Prosa de poeta


1) Em 1983, como introdução ao volume Captive spirit: selected prose, de Marina Tsvetáieva, Susan Sontag publica o ensaio "Uma prosa de poeta", hoje disponível em seu livro Questão de ênfase. Tudo começa com uma marcação clara e sumária de território: o século XIX está para o romance e para a prosa assim como o século XX está para a poesia (especialmente no contexto russo, referência principal de Sontag nesse texto - a passagem de Dostoiévski e Tolstói para Brodsky e Mandelstam, de certa forma), embora o objetivo final de Sontag seja delinear certas zonas de sombra possíveis, momentos em que prosa e poesia se combinam em obras singulares (como na ensaística de Brodsky e Blok).

2) Um primeiro curto-circuito, sugere Sontag, acontece na obra de Flaubert: sua prosa aspira à intensidade da poesia, sua "inevitabilidade léxica" e sua velocidade (o que gera uma reação, um desejo por parte da poesia de transfigurar seus processos, sua singularidade - o que remeteria à obra de Mallarmé, por exemplo). Mais do que uma situação cristalizada, Sontag está tentando captar um movimento, um processo - momentos em que prosa e poesia entrar em contraste, tendo como resultado a emergência de uma obra singular (como os "ensaios" de Tsvetáieva, escritos em "prosa de poeta", mesclando o registro do "eu" com o registro da elaboração crítica, da contextualização histórica e de uma espécie de fenomenologia da recepção estética).

3) Para Sontag, a prosa de poeta envolve uma performance contínua do "eu", uma preocupação permanente com as marcas deixadas no "eu" artístico pela convivência com o mundo externo (Sontag cita os diários de Baudelaire como exemplo - repletos de fórmulas de incentivo para o "eu" do poeta, estabelecimento de regras de conduta diante da língua e da sociedade, estratégias maníacas de manutenção de seu "ideal"). Tal performance, contudo, está em tensão com a visada retrospectiva da prosa de poeta: a tradição é lida a partir dos elementos que o "eu" busca salientar em seu próprio trabalho, os precursores são escolhidos e valorizados a partir das lições ainda ativas sobre o presente (o modo muito peculiar como Borges lê e valoriza Marcel Schwob, por exemplo).     

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