quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

No coração


1) Quando fala da relação entre "poder" e "saber", Michel Foucault apresenta a hipótese de que toda técnica de dominação externa envolve uma técnica de auto-dominação interna, de exploração voluntária do sujeito diante de si próprio: especialmente em seus últimos anos de produção (1976-1984), Foucault coloca a ênfase em uma performance do sujeito que reside no limiar entre libertação e sujeição - em linhas gerais, no que diz respeito à consciência de si, não se trata de tornar visível o que é subjetivo, mas de construir uma interioridade (utilizando as ferramentas oferecidas pelas técnicas de dominação externa que são interiorizadas).

2) Penso na obra de J. M. Coetzee como um desdobramento contemporâneo dessas ideias: nesse mesmo período, Coetzee publica Dusklands (1974), In the Heart of the Country (1977), Waiting for the Barbarians (1980), Life & Times of Michael K (1983) e Foe (1986), ficções nas quais a capacidade de expressão de si está sempre ligada a uma resistência (e, frequentemente, a uma resistência que se transforma em sujeição) contra um sistema repressivo de adequação dos corpos e dos afetos. Nos dois primeiros, a junção da "land" com o "country" (além da mediação estabelecida pelo "heart") fala dessa origem (substancial, essencialista) que é sempre cada vez mais recuada e inacessível.

3) A dinâmica fluida entre dominação e auto-desenvolvimento é uma tentativa de completar a ultrapassagem de certas dicotomias ainda em operação no século XIX, desde Marx e Freud, por exemplo (consciente e inconsciente; poder legítimo e ilegítimo). De resto, a dimensão do poder em Foucault carrega sempre uma dimensão estética - tanto pela via daquilo que Benjamin chamou de "estetização do político" quanto pela via daquilo que Bataille chamou de "parte maldita" -, algo que é materializado na performance do corpo e na plasticidade de suas operações (o lábio leporino de Michael K; a língua cortada de Sexta-feira).  

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