Em inúmeros pontos da sua obra, Jacques Derrida insiste na predominância da voz sobre a escrita na história da filosofia, do pensamento - de Platão a Heidegger (pensemos, por exemplo, na Gramatologia, de 1967; mas é possível recordar que Paul Zumthor estabelece o argumento contrário, falando da predominância da escrita nessa mesma história - no Essai de poétique médiévale, de 1972, por exemplo).
Mais do que uma predominância, trata-se sempre de uma convivência, estratos históricos heterogêneos nos quais letra e voz estão em constante permutação e atravessamento. A própria história da literatura - moderna, contemporânea - pode ser rearranjada a partir dessa perspectiva, a partir da solicitação ficcional da técnica seja da voz, seja da letra.
De resto, esse é mais um dos momentos em que Cervantes apresenta aqueles curtos-circuitos na representação que Foucault aponta em As palavras e as coisas. Mais do que apenas constatar e apresentar a dicotomia letra x voz no interior do romance, Cervantes opera a mescla dos dois registros, a oscilação entre um e outro, absorvendo na narrativa o processo histórico de convivência entre escrita e oralidade no século XVII. Em certo sentido, a passagem é até hegeliana em sua montagem, uma vez que apresenta 1) Quixote perdendo a paciência e mandando Sancho contar a história direito; 2) Sancho surpreso com a interrupção e defendendo seu ponto de vista, apelando para a tradição e o modo tradicional de contar as histórias em seu povoado; 3) A derradeira aceitação do procedimento digressivo-oral da parte do Quixote, que diz a Sancho para continuar e, nessa aceitação, arremata a absorção do dilema histórico pela ficção.
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No Quixote de Cervantes, por exemplo, encontramos um confronto dos dois paradigmas: no capítulo 20 da primeira parte do romance (publicada em 1605), Sancho conta uma história a seu mestre-cavaleiro. Cervantes desde o início apresenta Quixote como alguém doente de literatura - como no futuro a Bovary de Flaubert ou o Montano de Vila-Matas -, alguém, portanto, intensamente possuídos pelos processos da literatura e do literário. Diante da história de Sancho, errática e digressiva, Quixote perde a paciência - a oralidade característica de Sancho (popular também no sentido que dá Bakhtin a partir de Rabelais; ou Ginzburg a partir do moleiro Menocchio) entra em confronto com o ideal livresco e escritural do Quixote.De resto, esse é mais um dos momentos em que Cervantes apresenta aqueles curtos-circuitos na representação que Foucault aponta em As palavras e as coisas. Mais do que apenas constatar e apresentar a dicotomia letra x voz no interior do romance, Cervantes opera a mescla dos dois registros, a oscilação entre um e outro, absorvendo na narrativa o processo histórico de convivência entre escrita e oralidade no século XVII. Em certo sentido, a passagem é até hegeliana em sua montagem, uma vez que apresenta 1) Quixote perdendo a paciência e mandando Sancho contar a história direito; 2) Sancho surpreso com a interrupção e defendendo seu ponto de vista, apelando para a tradição e o modo tradicional de contar as histórias em seu povoado; 3) A derradeira aceitação do procedimento digressivo-oral da parte do Quixote, que diz a Sancho para continuar e, nessa aceitação, arremata a absorção do dilema histórico pela ficção.