domingo, 23 de setembro de 2018

Suspensos

"Em Expedição ao inverno, Appelfeld retrata a atmosfera de desorientação e desalento que antecede a chegada dos invasores nazistas à Bucovina. A negação veemente dos paradigmas da tradição judaica, de um lado, e a perda da cidadania austro-húngara e da possibilidade de continuidade da identidade cultural judaico-alemã, de outro, são, implicitamente, as responsáveis pela sensação de 'estar pairando no vazio' que acompanha os personagens desse romance, suspensos no tempo como balões de ar quente cujas chamas se extinguiram" (Luis Krausz, Ruínas recompostas, SP: Humanitas, 2013, p. 40).
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Robert Walser publica em 1913 o conto Ballonfahrt, "Viagem de balão". Num primeiro momento, a viagem de balão e o deslocamento aéreo não combinam com aquilo que Walser mostrava em sua vida e em sua poética - se há movimentação em Walser, ela é quase que exclusivamente pedestre, no rastro de Rousseau e dos andarilhos medievais. Em um dos ensaios de seu livro Logis in einem Landhaus, Sebald ressalta esse aparente paradoxo, argumentando que é nesse momento de exceção que Walser mais se revela: "o único momento em que vejo o viajante Robert Walser livre do peso de sua consciência é nessa viagem de balão".
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Na história de Walser, três pessoas estão no balão: "o capitão, um cavalheiro e uma jovem moça". O balão é uma "estranha casa", abaixo deles está "o abismo arredondado, pálido, escuro", as casas parecem "brinquedos inocentes", e as florestas "parecem cantar canções obscuras e antiquíssimas". O cavalheiro, que talvez seja uma versão de Walser, usa, "por um capricho", "um chapéu de plumas dos tempos da cavalaria medieval" (Absolutamente nada e outras histórias. Tradução de Sergio Tellaroli. São Paulo: Editora 34, 2014, p. 22-24).

sexta-feira, 7 de setembro de 2018

Literatura, linha curva

"Uma estátua de 'Amir Timur' substituiu o monumento a Karl Marx no centro de Tashkent; anteriormente condenado pelos marxistas como um déspota bárbaro, Timur ou Tamerlão de repente pareceu ter compreendido todas as formas da vida socioeconômica: nômade, agrícola, urbana. Passou-se a afirmar que fora não apenas um gênio militar, mas também um grande jogador de xadrez, e até mesmo o inventor de um jogo chamado Xadrez Perfeito, jogado em tabuleiro de cento e dez casas.
Fiquei particularmente intrigada com o Xadrez Perfeito, que me lembrou The knight's move [O movimento do cavalo], um livro do crítico formalista russo Víktor Chklóvski. Em The knight's move, Chklóvski propõe que a história da literatura procede não em linha reta, mas em linha curva, como o movimento em L do cavalo no xadrez. Os autores que influenciam um ao outro nem sempre são aqueles que se poderia esperar: 'o legado é transmitido não de pai para filho, mas de tio para sobrinho'. Além do mais, as próprias formas literárias crescem assimilando material externo ou extraliterário, mudando de rumo e formando novos ângulos" (Elif Batuman, Os possessos, trad. Luis Reyes Gil, Leya, 2012, p. 182).
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Iuri Tinianov, outro formalista russo, dedica um ensaio inteiro ao problema da "evolução literária" e Ricardo Piglia dá a ele os créditos da filiação "tio-sobrinho" (que Elif Batuman liga a Chklóvski), em Respiração artificial: Alguien, un crítico ruso, el crítico ruso Iuri Tinianov, afirma que la literatura evoluciona de tío a sobrino (y no de padres a hijos) (p. 21 da edição Seix Barral). 

Victor Erlich, por sua vez, parece resolver a questão em seu livro Russian Formalism: History, Doctrine (Mouton, Haia, 1955, p. 260), citando o texto de Chklóvski no qual o crítico russo afirma: according to the law which, as far as I know, I was the first to formulate, in the history of art the legacy is transmitted not from father to son, but from uncle to nephew (Erlich cita de um livrinho publicado por Chklóvski em 1923, Literatura i kinematograf, já traduzido ao inglês; resta saber se a mesma ideia da filiação "tio-sobrinho" foi apresentada por Chklóvski nos dois livros, tanto o citado por Batuman (Knight’s Move) quanto o citado por Erlich).

domingo, 2 de setembro de 2018

Talvez cem, talvez mil

É a Lucie Delarue-Mardrus que devemos esta frase extraordinária: "Os orientais não tem nenhuma noção do Oriente. A noção de Oriente, somos nós, os ocidentais, nós, os rumis, que temos (Ouço os rumis, afinal bem numerosos, que não são patifes)". Para Sarah, esse trecho resume sozinho o orientalismo, o orientalismo como devaneio, o orientalismo como lamento, como exploração sempre decepcionada. De fato, os rumis se apropriaram do território do sonho, são eles que, depois dos contistas árabes clássicos, o exploram e o percorrem, e todas as viagens são uma confrontação com esse sonho.

Há até mesmo uma corrente fértil que se constrói sobre esse sonho, sem precisar viajar, cujo representante mais ilustre é com certeza Marcel Proust e seu Em busca do tempo perdido, coração simbólico do romance europeu: Proust faz das Mil e uma noites um de seus modelos - o livro da noite, o livro da luta contra a morte. Como Sherazade luta toda noite, depois do amor, contra a sentença que pesa sobre ela contando uma história ao sultão Shahryâr, Marcel Proust pega toda noite sua pena, muitas noites, diz ele, "talvez cem, talvez mil", para lutar contra o tempo. 

Mais de duzentas vezes na obra Proust faz alusão ao Oriente e às Noites, que ele conhece nas traduções de Galland (a da castidade da infância, a de Combray) e de Mardrus (a mais suspeita, mais erótica, da idade adulta) - ele tece o fio de ouro do maravilhoso árabe ao longo de todo seu imenso romance; Swann ouve um violino como um gênio que sai de uma lâmpada, uma sinfonia revela "todas as pedrarias das Mil e uma noites". Sem o Oriente (esse sonho em árabe, em persa e em turco, apátrida, que se chama Oriente), nada de Proust, nada de Em busca do tempo perdido

(Mathias Enard, Bússola, trad. Rosa Freire d'Aguiar, SP: todavia, 2018, p. 171-172).