domingo, 24 de junho de 2018

O Judas de Leonardo

Leo Perutz (1882-1957) faleceu apenas dois meses após ter concluído seu romance O Judas de Leonardo. Ele iniciou o manuscrito em 1937 e teve que interrompê-lo no ano seguinte, quando os nazistas entraram em Viena. Retomou em 1941, no exílio na Palestina, escrevendo intermitentemente até 1947, quando abandona para escrever outro romance. A partir de 1951, se dedica exclusivamente ao Judas, até 1957 (Perutz é citado, por exemplo, em um dos ensaios de Walter Benjamin sobre o romance detetivesco).
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1) Um comerciante alemão chega em Milão nos últimos anos do século XV e, semanas depois, vira o modelo para o Judas que Leonardo coloca na Última ceia - eis parte da trama do romance de Perutz. A habilidade de Perutz, porém, está em esconder Leonardo no pano de fundo da narrativa. O artista pouco aparece diretamente, mas é continuamente referido por outros (todos comentam, de forma positiva ou negativa, sua excentricidade e sua excepcionalidade). O personagem principal do romance é o Judas, o comerciante alemão, e sua relação com uma moça local e seu pai usurário.
2) A relação entre Leonardo e o comerciante, ainda que não próxima ou extensa, é, no entanto, decisiva. No final do romance, quando se encontram e Leonardo pede ao comerciante que conte sua história (o que redunda na cena final do encontro, com Leonardo desenhando seu retrato com o objetivo de transformá-lo em Judas), é o alemão quem oferece a chave interpretativa do romance: "o senhor tem que se preocupar com muito mais do que tintas e pincel para terminar uma pintura", diz o comerciante, aparentemente sem compreender a extensão de seu juízo.
3) Ao longo de todo o romance Leonardo é repreendido (sobretudo pelas costas) por seu atraso na conclusão da Última ceia. O que o comerciante alemão indica, contudo, é que a arte de Leonardo diz mais respeito a um saber ver do que a um saber fazer (e nessa perspectiva faz sentido que Duchamp tenha escolhido justamente Leonardo para seu ready made mais famoso). O próprio Duque de Milão questiona o fato de Leonardo muitas vezes ficar duas horas diante da parede do refeitório do convento, segurando o pincel, olhando a pintura, sem fazer qualquer acréscimo. Ao mesmo tempo, porém, Leonardo é sempre rápido em sacar seu caderno de esboços, que leva sob o cinto e que é usado constantemente para capturar cenas, trejeitos, movimentos musculares, etc.  
   

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