quarta-feira, 13 de junho de 2018

A matéria viscosa do fluxo contínuo

Em “O mito hoje”, ao qual ele fizera apenas uma breve alusão na primeira sessão de seu seminário, Barthes havia estabelecido, em 1957, as balizas dos futuros axiomas estruturalistas: os signos se opõem uns aos outros e sua significação é produzida por essas oposições, independentemente daquilo a que eles se referem; cada atividade humana participa ao menos de um sistema de signos (frequentemente, de diversos ao mesmo tempo), cujas regras é possível rastrear; enquanto produtor de signos, o homem é condenado à significação, incapaz de se libertar da “prisão” da linguagem, para falar como Fredric Jameson. Nada do que o homem enuncia pode ser insignificante - mesmo o “nada” dizer tem um sentido (ou, antes, múltiplos sentidos, que mudam conforme o contexto, ele próprio, estruturado). 

Ao escolher, em 1971, apresentar esses axiomas derivando de Brecht (e não de Saussure, o que fizera em 1957), Barthes sublinhava o elo histórico entre o modernismo e a concepção da linguagem como uma estrutura de signos. Em numerosos textos teóricos, Brecht sempre havia atacado o mito da transparência da linguagem sobre a qual se fundava a prática do teatro, definida como catártica desde Aristóteles. Os procedimentos de montagem anti-ilusionistas que interrompiam o fluxo de suas peças sempre haviam intentado impedir a identificação do espectador com qualquer que fosse o personagem e produzir um efeito de distanciamento, como ele dizia. O primeiro exemplo que Barthes comentou longamente durante seu seminário de 1971-1972 foi um ensaio ao longo do qual o escritor alemão decodificava pacientemente os votos de Natal pronunciados por dois líderes nazistas (Hermann Goering e Rudolf Hess) em 1934. 

O que havia chocado Barthes era a atenção extrema que Brecht dera à forma do discurso nazista, dissecando palavra por palavra a fim de lhe opor o antídoto de seu próprio contradiscurso: “A destruição do discurso monstruoso é conduzida, aqui, segundo uma técnica amorosa”. Avançando a passos lentos nesse texto, Brecht iluminava os cordéis retóricos submersos na matéria viscosa de seu fluxo contínuo (Barthes chamava esta última de le nappé de la logosphère [a cobertura da logosfera]). O Brecht de Barthes, em suma, era um formalista, desejoso, antes de qualquer coisa, de demonstrar que a linguagem não era de modo algum um veículo neutro cuja função seria apenas transmitir diretamente uma mensagem, pois tinha materialidade própria, e essa materialidade era sempre portadora de significação. Para Barthes, Brecht era um formalista a despeito de si mesmo, embora o rótulo tivesse revoltado o dramaturgo, que se empenhou em lançá-lo como um insulto à face de Lukacs.

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Fragmento de "Tough love" (Tradução de Sônia Salzstein), por Yve-Alain Bois (Institute for Advanced Study [IFS], Princeton, USA), contribuição ao colóquio “Hubert Damisch, l’art au travail”, organizado em homenagem ao autor de Théorie du nuage, em Paris, pelo Institut National d’Histoire de l’Art, nos dias 8 e 9 de novembro de 2013. O relato rememora o convívio de Bois com Hubert Damisch e Roland Barthes, autores cujos seminários ele frequentou no início dos anos 1970. Disponível na íntegra aqui.


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