quinta-feira, 29 de março de 2018

Eu, o monstro

1) Uma passagem de Montaigne, do ensaio "Sobre os coxos", diz o seguinte: "Até esta hora, todos os milagres e acontecimentos estranhos têm se escondido de mim. Não vi no mundo monstro e milagre mais manifesto do que eu mesmo. O costume e o tempo nos familiarizam com qualquer estranheza: quanto mais me examino e me conheço, mais minha deformidade me espanta e menos me compreendo". Toda uma cadeia de associações se apresenta aqui, antecipando tantos recursos e ferramentas do pensamento que ainda estavam por vir.
2) Descartes, no século seguinte ao de Montaigne, e operando nessa mesma zona limítrofe entre o francês e o latim, vai retornar à intuição do "eu como milagre", esquecendo, contudo, a dimensão monstruosa. O cogito de Descartes se arma a partir do "eu", da investigação contínua tal como posta por Montaigne - "quanto mais me examino e me conheço..." -, mas deixa de lado a "deformidade", a dimensão da dúvida, da falha. É digno de nota também a forma como Montaigne tanto incorpora quanto relativiza o religioso, a dimensão do humano como contraponto ao divino - o eu é, sim, um milagre, mas é ele necessariamente também um monstro.
3) Um ponto futuro dessa deriva poderia ser Freud, ou mesmo Chklóvski (o formalismo russo como contemporâneo da segunda tópica freudiana, por exemplo). A Interpretação dos sonhos, de Freud, guarda muitas semelhanças com os Ensaios de Montaigne, a primeira delas sendo precisamente a disposição de comentar extensamente o "eu" como "monstro" e "milagre" (a Interpretação de Freud é uma intensificação metódica do procedimento dos Ensaios, ou seja, tomar a si como ponto de partida e a partir daí confrontar todo o conhecimento disponível). No que diz respeito a Chklóvski e ao formalismo, a intuição do "estranhamento" e da "desfamiliarização" (também o V-Effekt de Brecht) também está anunciada por Montaigne: "o costume e o tempo nos familiarizam com qualquer estranheza", escreve ele, dizendo em seguida que sua auto-examinação (e consequentemente sua escrita, sua ficção de si) garante um "espanto" constante. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário