domingo, 25 de outubro de 2015

O passado e o discurso

Era improvável que Vidal, nascido em 1950, ou 51, houvesse presenciado uma cena como a que acabava de me falar: na época, se escondia tudo das crianças, principalmente o mais vergonhoso. Eram tempos diferentes dos atuais: ninguém confessava uma humilhação, mesmo que tivesse sofrido reiteradas e graves. Agora, em compensação, não há nada mais rentável do que se proclamar vítima, subjugado e pisoteado, e difundir entre gemidos as próprias misérias. É curioso que tenha desaparecido o orgulho, durante o pós-guerra era muito forte o que alimentava os vencidos, que nem falavam de seus mortos e presos, como se trazê-los à luz do dia - mesmo que em privado - já fosse um opróbrio; não sei, um acatamento, um reconhecimento daquilo que tinham causado e de seu poder de fazer mal. Não se calava só por medo e para não refrescar a memória dos que ainda tinham a capacidade de infringi-lo, aumentá-lo e ampliá-lo; mas também para não lhes proporcionar um trunfo, para não baixar mais a cabeça diante deles, com lamentos. (Javier Marías, Assim começa o mal. Trad. Eduardo Brandão, Cia das Letras, 2015, p. 405).
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Agora está prestes a começar a escrever sobre o filme de William Wyler de 1946, Os melhores anos de nossas vidas, uma obra central para sua tese e que ela considera o épico nacional daquele momento particular da história americana - a história de três homens quebrados pela guerra e das dificuldades que enfrentam quando voltam para suas famílias, a mesma história vivida por milhões de pessoas na época. (...) A história se concentra precisamente nos conflitos entre homem e mulher que mais lhe interessam. Os homens não sabem mais como agir com as esposas e namoradas. Eles perderam o apetite pela vida doméstica, o sentimento de lar. Após anos vivendo longe de mulheres, anos de combate e matança, anos brigando para sobreviver aos horrores e perigos da guerra, eles se viram cortados de seu passado civil, mutilados. (...) Quando ela pensa naquela geração de homens calados, meninos que passaram pela Depressão e cresceram para se tornarem soldados, ela não os censura por se recusarem a falar, por não quererem voltar para o passado, mas como é curioso, ela pensa, como é altamente incoerente que a geração dela, que não tem muito do que falar por enquanto, tenha produzido homens que nunca param de falar, homens como Bing, por exemplo, ou homens como Jake, que fala de si próprio à menor deixa, que tem uma opinião a respeito de todos os assuntos, que cospe palavras da manhã à noite, mas só porque fala não significa que ela queira ouvi-lo, ao passo que com os homens calados, os velhos, aqueles que já estão quase morrendo, ela daria qualquer coisa para ouvir o que eles têm a dizer. (Paul Auster, Sunset Park. Trad. Rubens Figueiredo. Cia das Letras, 2012, p. 90, 91 e 96).
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Três quartos de hora mais tarde, para não perder a paisagem do lago Genebra, cujo espetáculo não cansa de me admirar toda vez que se abre, eu estava prestes a pôr de lado um jornal de Lausanne comprado em Zurique e apenas folheado, quando meus olhos pousaram numa reportagem que dizia que os restos do corpo do alpinista bernês Johannes Naegeli, dado como desaparecido desde o verão de 1914, haviam sido novamente expostos à luz pela geleira de Oberaar, setenta e dois anos mais tarde. Assim é que eles voltam, os mortos. Às vezes afloram do gelo mais de sete décadas depois e jazem à beira da morena, um montículo de ossos brunidos e um par de botas com grampos de ferro. (W. G. Sebald, Os emigrantes. Trad. José Marcos Macedo. Cia das Letras, 2009, p. 29).

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