domingo, 16 de junho de 2013

Filologia e orientalismo

1) Para o Foucault de As palavras e as coisas (no capítulo "Trabalho, vida, linguagem"), a invenção da moderna filologia como um campo de estudo histórico e gramatical deve-se a um sujeito chamado Franz Bopp (1791-1867). Enquanto Napoleão virava do avesso a geografia europeia, Bopp passava doze horas por dia nas bibliotecas de Paris, lendo manuscritos em sânscrito. Foucault insiste na mudança de paradigma que aconteceu com Bopp: pela primeira vez um estudo sistemático relacionava o grego, o latim, o sânscrito, o persa, o alemão, não por suas características morfológicas comuns, e sim por suas estruturas gramaticais, flexões e composições comuns. "A linguagem tornada objeto", escreve Foucault (desnaturalizada, "profanada", como diria Agamben).  
2) A ideia de profanação pode servir também para ler os comentários que Edward Said faz sobre Bopp, Foucault e a filologia. Em Orientalismo, Said aponta que essa "descoberta da linguagem" enunciada por Foucault, ou seja, a descoberta da linguagem como objeto, é desdobramento de uma situação maior - uma situação que diz respeito justamente ao caráter religioso, sobrenatural, metafísico da linguagem e de sua origem. Orientalismo está cheio de referências a Cuvier, Franz Bopp e sir William Jones, figuras mobilizadas por Foucault no capítulo de As palavras e as coisas dedicado à delimitação histórica da emergência da filologia. 
3) Uma dicotomia cristã e europeia é abalada nessa "descoberta da linguagem", uma vez que fica exposto um substrato comum, um sistema arcaico de relações entre Ocidente e Oriente que se dão na esfera da linguagem, da comunicação. Mas a hipótese de Said é que esse contato é seletivo e que esse sistema de relações será filtrado por um rigoroso desejo de controle - por isso a menção a Napoleão não é gratuita, pois é com ele que esse desejo de controle, aliado a um desejo de contato seletivo, ganha corpo histórico. A filologia inovadora de Bopp só pôde acontecer por meio da vasta quantidade de materiais recolhidos pelo orientalista William Jones no Oriente e levados ao Ocidente - um dos pilares da construção moderna da Europa, portanto, depende desse fluxo estrangeiro.      

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