domingo, 10 de fevereiro de 2013

Hospitalidade

Lucas van Leyden, "Ló e suas filhas", 1520
1) Há um intrincado sistema de troca e reciprocidade entre Shakespeare e Deus no conto de Borges ("everything and nothing", O fazedor). Até que ponto são indissociáveis e a partir de que ponto um deixa de ser o outro e passa a ser apenas um? O problema ganha uma aparente resolução alguns anos mais tarde, quando Borges escreve "A memória de Shakespeare". Na história, um homem diz a outro: "ofereço-lhe a memória de Shakespeare desde os dias mais pueris e antigos até os do início de abril de 1616". E o primeiro homem, fazendo referência ao soldado que, antes de morrer, lhe passou a memória de Shakespeare, afirma: "ele mal teve tempo de me explicar as condições singulares de seu dom". Ter a memória de Shakespeare, ser Shakespeare: o problema da hospitalidade, do estrangeiro (hostis) que é hóspede e inimigo. "Com o tempo, o grande rio de Shakespeare ameaçou, e quase submergiu, meu modesto caudal", afirma o narrador no conto de Borges.
2) O momento em que uma presença consentida passa a ser uma violência - ou, como escreve Derrida em Da Hospitalidade, quando as ambivalências "fazem de todos e de cada um refém do outro". Primeiro de tudo, a natureza do dom: dar o que há de melhor, de mais belo, de mais raro, às vezes tudo que restou (como a viúva que deu toda sua comida ao profeta Eliseu (2 Reis, 4, 1-7)). Benveniste ("Dom e troca no vocabulário indo-europeu", Problemas, vol. I) estabelece a reciprocidade do dom como base linguística, política e social. Por isso o choque de Ló quando os homens de Sodoma, "desde os jovens até os velhos", cercaram sua casa e exigiram a entrega de seus hóspedes recém-chegados: "Onde estão os homens que vieram para tua casa esta noite? Traze-os para que deles abusemos" (Gênesis, 19, 5).
3) A dinâmica da história de Ló é a mesma dinâmica da história da memória de Shakespeare: dois registros sobrepostos que entram em conflito (que é o cerne também da ambivalência da hospitalidade). Os homens ao redor da casa, diante da negativa de Ló, denunciam o absurdo de um estrangeiro querer ditar as ordens (aquilo que era sagrado para Ló - a hospitalidade - era irrelevante para os habitantes de Sodoma; aquilo que era sagrado para estes - o abuso dos estrangeiros - era um pecado para Ló). Derrida, a partir de Sócrates e do Édipo de Sófocles, apresenta o filósofo (ou o detetive, ou o crítico - aquele que resolve enigmas) como aquele que se apresenta sempre como estrangeiro - no uso da língua, da visão e do corpo. A ambivalência da hospitalidade sobrevive, por exemplo, na teoria da citação de Compagnon ou no "elogio da profanação" de Agamben (abusar dos hóspedes de Ló - que eram anjos - não seria o gesto profanatório supremo, derrubando toda arquitetura sagrada da hospitalidade?).   

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