terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Os mortos e o poder

1) Para Canetti, a massa de mortos da Primeira Guerra Mundial levou Hitler ao poder, possibilitando a conquista da massa dos vivos. Hitler é o sobrevivente dessa massa de mortos da guerra, e seu primeiro elemento de convencimento, além da sobrevivência, é a ideia de que eles "não morreram por nada" - eles são "os seus mortos", sua corte especial, sua primeira multidão, sua primeira platéia. Canetti chama a atenção para o desejo de Hitler de construir um arco do triunfo em sua própria homenagem, adornando o monumento com os nomes dos quase dois milhões de soldados alemães mortos na Primeira Guerra - absorvidos, finalmente, em seu nome e em sua glória.
2) Os projetos arquitetônicos de Hitler guardavam íntima relação com seu desejo de controlar e absorver a massa. As grandes praças permitem o crescimento da multidão, são o lugar específico da "massa aberta", cuja paixão se intensifica na visão de sua própria multiplicação. Hinos, bandeiras, coreografias - são elementos que multiplicam a massa no interior da própria massa, pois apelam para uma conjunção de vários sentidos do corpo. As grandes vias permitem que a multidão siga uma direção unívoca, durante o próprio processo de crescimento. Os estádios esportivos, por outro lado, oferecem à massa o espetáculo grandioso da auto-observação.
3) Hitler, o sobrevivente, deseja durar no tempo - diante disso, seu projeto mais alimentado é o de manifestar sua duração através da arquitetura, dos espaços que continuarão a abraçar a massa que ele conquistou. Segundo Canetti, em sua leitura de Speer, Hitler queria superar o signo mais antigo de duração: as pirâmides do Egito, que carregam, desde sempre, a massa de mortos que foi necessária para sua construção quase miraculosa. Ver as pirâmides é, ao mesmo tempo, ver o trabalho das massas e testemunhar, em um lampejo, a morte de gerações de trabalhadores anônimos. Como no livro de Peter Sloterdijk, que fala de Derrida como um sobrevivente que se descola da massa para melhor interpretar os sonhos macabros do poder, poderíamos dizer: Hitler, um egípcio.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Edificar e destruir

A curiosidade de Canetti com relação aos poderosos que movimentaram, através do discurso, massas de mortos com o objetivo de guiar massas de vivos - Alexandre, Hitler, Napoleão e o sultão Tughlak são os exemplos mais recorrentes. "Hitler segundo Speer", um dos ensaios de A consciência das palavras, é um prolongamento externo, um dos muitos possíveis, de Massa e poder. Speer era o arquiteto de Hitler, e, a partir desse dado, Canetti pensa a contraposição que existe, em Hitler, entre destruição e construção - edificar e destruir são duas faces do mesmo prazer paranoico: a conquista do mundo através de seu aniquilamento anda lado a lado com o projeto de aumentar cada vez mais Berlim, assim como o crescimento dos alemães representava, em igual medida, o assujeitamento do resto do planeta. Speer, em suas memórias, lembra do dia que visitou Paris com Hitler. "Devemos destruí-la, Speer?", perguntou o Führer. Depois de pensar um pouco, Speer chega à conclusão que é melhor não: quando for superada por Berlim, Paris será útil para acentuar e reforçar a grandeza da capital do Reich.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Vida e obra

Uma olhada atenta nos ensaios escritos por Elias Canetti revela um padrão interessante: sua preferência pelos textos "exteriores" às obras literárias - diários, correspondências, memórias. Nesses ensaios, Canetti se mostra como um leitor paciente, que passou e repassou esses textos de natureza secreta e enigmática ao longo de muitos anos - o tipo de vivência que lhe permitiu, mais tarde, escrever seus próprios volumes autobiográficos. Em A consciência das palavras, sua coletânea de ensaios, Canetti se ocupa de textos como o diário de um médico de Hiroshima, as memórias de Albert Speer sobre Hitler, o diário de Tolstói, as cartas de Georg Büchner, Karl Kraus e, especialmente, aquelas que Kafka trocou com Felice Bauer. Canetti procura pelas especificidades de cada artista, ligando vida e obra a partir dessa consciência dos detalhes - às vezes uma palavra que se repete, uma imagem, alguma percepção muito particular do mundo que, rarefeita nos textos acabados, torna-se luminosa nos textos privados. É, de resto, mais um elemento dentro da preocupação de Canetti com a relação entre massa, soberania e poder: como um fluxo múltiplo de textos, leituras, experiências, estímulos e frustrações pode se tornar, depois de um extenuante trabalho, uma obra coesa, independente - sem jamais deixar de remeter, em suas entrelinhas, ao caos que a tornou possível.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

O ensaio radical

1) Em sua obra-prima, Canetti trata do problema "mais premente do século": a massa, o poder e a antiga questão da relação do indivíduo com o múltiplo. O sentido de seu procedimento não assume o valor de simples preliminar: implícito nos conteúdos, o procedimento se mostra na explicação e desdobramento dos objetos. Sem qualquer introdução, prefácio, advertência metodológica ou nota polêmica, sem apresentar o situar seu discurso, Canetti entra de imediato no cerne do argumento - começa com um breve parágrafo com um título e segue assim até o final.
2) A leitura de cada parágrafo é fácil, sedutora, não coloca nenhum problema particular de compreensão. Não estamos diante de uma complexa arquitetura conceitual, mas diante de descrições, imagens, histórias, mitos de diversas proveniências, fragmentos de textos - uma surpreendente expressividade narrativa no coração de uma densa discussão teórica. Quantos conquistaram tamanho feito, tamanha força estética no trabalho ensaístico? Walter Benjamin, Beckett, Saer, o Walser dos retratos de pintores e escritores.
3) Em Massa e poder, temos a impressão de estar na presença de uma espécie de antropologia fantástica - afinal de contas, o que poderia reunir manifestações tão diversas como a chuva, a formação do polegar opositor na mão humana, o trono suspenso do imperador de Bizâncio, a máscara e a festa do Muharram dos xiitas? O ensaio, da maneira que é pensado por Canetti, é a forma do possível e do diverso, a possibilidade de unir o conto e o conceito, a imagem e o significado.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

O homem que rasgava papel

1) Esse é o título de um conto que Andrzej Kusniewicz publicou na década de 1960: o homem que rasgava papel. O conto é breve e não dá indicações precisas sobre as razões para esse homem se ocupar dessa atividade - tudo que sabemos é que estamos na Polônia, nos anos posteriores à Primeira Guerra Mundial. O que realmente importa, na história, é a satisfação que o homem encontra no ato de rasgar papel: o narrador escreve sobre o prazer de ver os pedaços se multiplicarem, como se aquela atividade tivesse algum sentido mágico, como se as mãos que rasgam o papel pudessem operar uma espécie de sortilégio da multiplicação. Um cartaz, uma série de embalagens de papelão, livros, folhas imensas de papel de parede: tudo fica em pedaços depois de passar pelas mãos de Miroslav, o homem que rasgava papel.
2) Não é possível afirmar a existência de qualquer vínculo entre Kusniewicz e Elias Canetti, muito menos afirmar que o primeiro tenha lido Massa e poder. Contudo, é bastante intrigante a forma com que Kusniewicz coloca em prática, na escritura de O homem que rasgava papel, algumas das reflexões de Canetti sobre a massa, o soberano e a paranoia. Do pouco que sabemos sobre Miroslav, o personagem do conto, dois elementos se destacam: o prazer na multiplicação realizada por suas próprias mãos e um progressivo sentimento de desconfiança com relação àqueles que o rodeiam - um sentimento que, no fim do conto, o leva a um trágico estágio paranoico. Uma atmosfera completamente distinta daquela que Hrabal apresenta em Uma solidão ruidosa, ainda que sejam temas bastante próximos.
3) Segundo Canetti, o sentimento da massa é anterior à própria constituição do indivíduo - um dos primeiros padrões nascidos na mente desse novo sujeito é justamente o desejo de ser massa, de se perder na multidão. O soberano deseja multiplicar a multidão sob seu domínio - e deseja transformar a multidão que está do outro lado, do lado de seus inimigos, em pilhas de cadáveres. Canetti percorre a história das civilizações procurando sinais da massa - areia, água, fogo, pilhas de cabeças, plantações, coleções, formações de exércitos, florestas, cidades. O soberano odeia os sobreviventes - pois são eles que identificam, simbolicamente, o esfacelamento futuro da soberania. O salário do pecado - conforme as palavras do apóstolo Paulo, também ele um mobilizador das massas -, para o soberano, não é a morte: é a paranoia - que o persegue onde quer que vá, que não o deixa dormir, comer ou matar em paz.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Caro Friedrich


DEAR FRIEDRICH


Dear Friedrich, the world's still false, cruel and beautiful...

Earlier tonight, I watched the Chinese laundry-man, who doesn't read or write our language, turn the pages of a book left behind by a costumer in a hurry. That made me happy. I wanted it to be a dreambook, or a volume of foolishly sentimental verses, but I didn't look closely.

It's almost midnight now, and his light is still on. He has a daughter who brings him dinner, who wears short skirts and walks with long strides. She's late, very late, so he has stopped ironing and watches the street.

If not for the two of us, there'd be only spiders hanging their webs between the street lights and the dark trees.


Charles Simic. The world doesn't end: prose poems.
Harcourt Brace & Company, 1989.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Variações sobre o viajar

1) Como Raymond Roussel, Joseph Cornell viajava sem sair do lugar. O francês percorreu o mundo de navio e jamais saiu de sua cabine - via o mundo através da janela e de seus escritos. A limitação de Cornell é um pouco mais prosaica, uma vez que ele não foi milionário como Roussel. No entanto, recheou suas caixas com frases em línguas estrangeiras, cartões-postais, recortes, fotos e objetos que remetiam, frequentemente, à Europa e, ainda mais especificamente, à França. Durante a II Guerra Mundial, fez amizade com uma série de artistas refugiados em Nova York. Não chegou a conhecer Roussel, que se matou, em 1933, num quarto de hotel em Palermo, Itália.
2) O trabalho de Cornell está cheio de referências a lugares dos quais ele só conhecia imagens - não apenas Paris, mas existem, em suas caixas, etiquetas de hotéis, folhetos e bilhetes de trem de várias cidades: Praga, Munique, Nápoles, os Alpes Suíços, Cairo, etc. As caixas de Cornell, ainda que carregadas desses elementos externos, desses objetos alheios recolhidos ao acaso, não tomam as cidades como motivo ou razão final - assim como Roussel, que, em suas Impressions d'Afrique, oferece ao leitor todo tipo de fantasia e jogo verbal, mas nunca "impressões" ou "considerações" sobre a África real. Assim como Roussel, a manobra artística de Cornell tem como objetivo a transfiguração do mundo e não sua representação - cada caixa é um mundo possível, uma versão polifônica e portátil do mundo que Cornell via e vivia.
3) Segundo Charles Simic, algumas das caixas de Cornell foram pensadas como "refúgios para o viajante" - locais de culto, silêncio e trabalho, como o camarote de Roussel em seu navio. Cornell as chamava de hotel boxes. São trabalhos que contém coleções de objetos exóticos: penas, compassos, pedaços de mapas, conchas, folhetos de propaganda de cidades europeias - encontradas por Cornell em sebos ou enviadas a ele por amigos. Marcel Duchamp, amplamente consciente desse método de viagem mental e miniaturizada, dá, em 1943, um presente a Cornell: um estojo para transportar vidros de tinta em viagens. Essa obra de Duchamp, Pour le voyage/Étuis luxe, é, curiosamente, de circulação bastante restrita (viajou muito pouco ao longo de todos esses anos) e reprodução inexiste.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Sou o último


I'M THE LAST


I am the last Napoleonic soldier. It's almost two hundred years later and I am still retreating from Moscow. The road is lined with birch trees and the mud comes up to my knees. The one-eyed woman wants to sell me a chicken, and I don't even have clothes on.

The Germans are going one way; I am going the other. The Russians are going still another way and waving goodby. I have a ceremonial saber. I use it to cut my hair, which is four feet long.


Charles Simic. The world doesn't end: prose poems.
Harcourt Brace & Company, 1989.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Mohammed Tughlak

1) Elias Canetti, em Massa e Poder, conta a história de Mohammed Tughlak, Sultão de Délhi, grande sábio de todas filosofias e ciências conhecidas e, ao mesmo tempo, sanguinário assassino de seu próprio povo. Por volta de 1335, o Sultão Tughlak decide invadir a China: arma um exército de cem mil homens para cruzar a cadeia de montanhas do Himalaia. A missão era conquistar a face chinesa do maciço de rocha, submeter a população selvagem às ordens do Sultão e estabelecer um ponto seguro de passagem e um posto avançado para as tropas que ainda estavam por vir. Dessa primeira leva de guerreiros, que encontrou apenas o desastre em seu caminho, retornaram a Délhi apenas dez sobreviventes: em sua desilusão, o Sultão matou cada um deles, deixando os cadáveres na frente do palácio durante três dias. Uma legítima expedição napoleônica avant la lettre.
2) Mas o desejo de conquistas do Sultão não diminuiu, escreve Canetti. Para seguir adiante, Tughlak precisava de dinheiro e, diante disso, teve uma ideia que se mostrou bastante estúpida: tinha ouvido falar do papel moeda dos chineses e resolveu fazer algo parecido com o cobre, mandando cunhar uma quantidade enorme de moedas nesse material, conferindo-lhes, em seguida, valor equivalente ao das moedas de prata. O Sultão determinou que ouro, prata e cobre eram equivalentes e que as novas moedas seriam o padrão para as compras e vendas. A partir disso, a casa de cada hindu tornou-se uma oficina para a fabricação de dinheiro falso - o reino logo afundou-se numa quantidade inaudita de dinheiro falso, os padrões já não serviam de nada, tampouco os parâmetros, regras ou controles fiscais. Uma legítima aventura de César Aira (ou Arlt, ou Piglia) avant la lettre.
3) Quando se deu conta do estrago, o Sultão, cheio de cólera, revogou o decreto e declarou que todos que tivessem moedas de cobre deviam ir à tesouraria do reino, onde teriam as moedas novas substituídas pelas antigas. Milhares foram à tesouraria trocar as moedas de cobre pelas moedas de ouro e prata. As reservas do Sultão diminuem vertiginosamente. Montanhas de moedas de cobre completamente inúteis e sem valor ocupam o lugar das antigas pilhas de ouro cintilante. Em sua raiva, o Sultão não encontra outra alternativa que não ser cada vez mais hostil e cruel com seus súditos.Link

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

O rosto de Bartleby

1) Referir-se a Joseph Cornell como "caçador de imagens" talvez não seja o mais adequado - de qualquer forma, Simic não usa essa fórmula em seu livro, trata-se apenas de uma escolha de tradução um pouco deslocada. O que Simic deixa bastante claro em seu texto sobre Cornell é que o artista não buscava deliberadamente as imagens, os objetos, os materiais - ele simplesmente os encontrava pelo caminho. Cada caixa de Cornell tomava anos para se realizar completamente: ele coletava pouco a pouco seus elementos, sem saber, até o momento da montagem, qual a ordem das sobreposições e das colagens.
2) Eis como Cornell descrevia o conteúdo de seus arquivos (mais ou menos 150 caixas de papelão que ele mantinha em casa): um laboratório-diário de bordo-depósito, galeria de arte, museu, santuário, observatório, uma chave... O coração de um labirinto, um quarto para os sonhos e as visões... A infância reconquistada (Simic consultou as cartas pessoais de Cornell, que hoje estão depositadas no Archives of American Art-Smithsonian Institution, em Nova York). De modo que, a partir disso, é possível imaginar a quantidade de material que simplesmente não encontrou espaço na confecção das caixas de Cornell - as poucas caixas que Cornell completou.
3) "Tinha a expressão que imagino ser a do rosto do Bartleby de Melville", escreve Simic sobre Cornell. "Sua expressão no dia em que decide interromper o trabalho para olhar somente para o muro do outro lado da janela do escritório". Simic não vai além em seu anúncio de uma possível metempsicose entre Bartleby e Cornell. Só afirma que "existem homens assim em todas as grandes cidades", vagando solitários pelas ruas, envolvidos em seus longos capotes fora de moda - tantos deles personagens de algumas das melhores fotos de André Kertész (outro andarilho de Nova York).

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

O caçador de imagens

1) O poeta Charles Simic dedicou um livro a Joseph Cornell: Dime-Store Alchemy: The art of Joseph Cornell, de 1992 (o título da tradução italiana, que foi a que consultei, é O caçador de imagens). Depois de uma breve introdução, com dados biográficos e indicação de filiações intelectuais e artísticas, Simic começa a abordar a obra, a vida e o universo de Joseph Cornell através de capítulos bastante breves, escritos em uma prosa poética costurada com algumas citações (Nietzsche, Nerval, Poe, Valéry, Baudelaire) e algumas imagens das obras de Cornell. De modo que não se trata nem de uma biografia nem de um estudo crítico, ainda que seja um pouco de ambos: Simic apresenta um retrato de Cornell que é filtrado por seu próprio registro poético.
2) Os pequenos capítulos de Simic parecem cartões-postais, escritos sob o influxo de uma obra rica em sutileza, meticulosa em seus detalhes e em suas camadas de materiais. O ritmo da escritura de Simic refaz, no percurso do livro, o próprio método de Cornell diante de seus objetos: uma coleta paciente, uma parte de cada vez, fragmentos que não guardam qualquer relação até o momento em que são postos lado a lado, no confronto do work in progress. Os títulos escolhidos por Simic são eloquentes: "O vigia de uma terra estranha"; "Caleidoscópio divino"; "Caixa de fósforos com mosca"; "O estudo mágico da felicidade"; "A lua é a assistente do feiticeiro"; "Guia turístico do sonâmbulo".
3) Os anos 1930 foram de experimentação para Cornell: usou vários tipos de caixas para suas obras (pré-fabricadas, rotundas, de cartão) até decidir fabricá-las ele mesmo. Escreve, durante o mesmo período, um roteiro cinematográfico (Monsieur Phot) e monta seu primeiro filme, Rose Hobart, uma colagem de velhas películas órfãs encontradas em brechós. Finalmente conhece Duchamp (cujos ateliês sempre foram nas vizinhanças das caminhadas de Cornell) e, em 1936, expõe suas caixas na mostra Fantastic Art, Dada, Surrealism - com Picabia, Tzara, Duchamp, Man Ray, etc -, no MoMA.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Joseph Cornell

1) Em pleno 24 de dezembro - 1903 - nasce Joseph Cornell. Em seguida chegam as irmãs, Elizabeth e Helen - Nietzsche teve uma irmã chamada Elizabeth, assim como Walser. E Joseph Cornell, por sua vez, também terá um irmão chamado Robert: nasce em 1910, com paralisia cerebral. O pai morre de leucemia em 1917, tornando a situação financeira da família difícil: a mãe passa a vender doces que faz em casa e Joseph, depois de abandonar a escola, torna-se vendedor de tecidos (percorre a vizinhança, de porta em porta).
2) O trabalho de vendedor começou em 1921 e durou dez anos. As longas caminhadas diárias deram a Joseph a oportunidade de descobrir os sebos e as lojas de objetos antigos da cidade - foi daí que ele tirou grande parte das ideias e materiais para suas criações futuras: livros, discos, fotografias, postais, selos, programas antigos de peças teatrais, rolos mutilados de velhos filmes e toda sorte de quinquilharia (sapatos sem par, bonecas sem cabeça, botões, luminárias de ferro batido, broches, dados, garrafas, chapéus).
3) Às vezes, durante o dia, conseguia também visitar galerias de arte (a noite era reservada para eventuais idas ao teatro e ao balé, gostos estimulados desde a infância pelos pais). Joseph, Robert, a mãe e as duas irmãs mudam-se, em 1929, para uma casa de madeira em Bayside. É nesse lugar que Joseph criará toda sua obra. Dois anos depois, Joseph descobre a galeria de Julian Levy, onde verá pela primeira vez algumas obras surrealistas (que chegavam da França para uma exposição no Wadsworth Atheneum). Algumas semanas depois, Joseph levou à galeria seus primeiros objetos: colagens bidimensionais por ele chamadas de montage. Levy gostou muito do que viu e disse a Joseph que fizesse mais peças, incluindo alguns desses trabalhos numa exposição de arte surrealista que realizou no ano seguinte, 1932.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Destruição e recomeço

1) "Esse Império, que abarcava populações que falavam mais de quinze idiomas, credos que iam do Islã ao catolicismo, do judaísmo às distintas variantes do protestantismo, tinha necessariamente que ser um rico caldo de estímulo para o romance. Foi, sim, mas apenas nas vésperas do colapso final. O passado jesuítico favoreceu o cultivo das artes suntuárias e da música, mas tacitamente omitiu a palavra. Não produziu uma literatura, nem uma teoria do Estado, nem um princípio de ciência política. A única política possível era a de negociação. O compromisso em todas suas formas, para poder harmonizar as diferenças.
2) "A grande literatura austríaca surgiu em fins do século XIX e alcançou seus melhores frutos nas três primeiras décadas do século XX. Cumpriu um papel de réquiem. Sua vitalidade, como costuma acontecer em certas etapas de decadência, é deslumbrante. A simples enumeração de seus integrantes já o é: Schnitzler, Hofmannsthal, Broch, Musil, Lernet-Holenia, Von Doderer; mais os escritores da periferia, integrantes dessa constelação com plenos direitos, o grupo de Praga: Rilke, Kafka, Werfel, Mehrink; Joseph Roth, da Galícia, Elias Canetti, da Bulgária. Depois foram aparecendo aqueles que, nascidos sob a órbita habsbúrgica e sob a influência da escola de Viena, escreveram suas obras na língua nacional de origem: o triestino Italo Svevo, o croata Miroslav Krleza, o polonês Bruno Schulz. A eles se juntou outro polonês da Galícia: Andrzej Kusniewicz.
3) "Todos perceberam, de uma ou outra maneira, a decomposição e a precariedade de seu mundo. Junto do compromisso vinha, frequentemente, a brutalidade; um pesadelo atroz crescia atrás das impecáveis fachadas da administração; a rotina convertia o prazer em uma careta muito parecida com a da dor. Onde se escrevia plenitude, se anunciava o vazio. No interior do museu em que corria a vida, reinava a morte".

Sergio Pitol. Pasión por la trama.
México, D.F.: Ediciones Era, 1998, p. 100.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Digressão sobre a mão

1) Um macaco pula de galho em galho, velozmente, graças à ajuda de seus polegares opositores. Um dia, o galho se quebra, o macaco cai no chão e percebe, ainda um pouco surpreso com a queda, que tem na mão uma ferramenta, um bastão. Segundo o Elias Canetti de Massa e Poder, esse bastão é a arma mais natural, à qual o homem permanece fiel a milhares de anos - o bastão foi afinado e apontado e tornou-se uma flecha; foi alongado, transformado, e tornou-se um cetro, um cajado, uma bengala, uma bandeira, uma batuta, uma espada, uma tocha, um aspersório, uma prótese. O comércio, escreve Canetti, é a atividade na qual o homem está mais próximo dos macacos: assim como o macaco só solta o galho depois de ter certeza que o próximo está bem firme, o homem só solta o dinheiro depois de ter a mercadoria firme nas mãos. Uma das mais antigas formas de movimento sobrevive como comportamento psíquico.
2) Da mão para a boca: com ferramenta ou sem ferramenta, a função da mão é agarrar a presa, matá-la e, finalmente, levá-la à boca para ser devorada - em última instância, segundo a perspectiva de Canetti, um conjunto de movimentos que visam a manutenção de um certo poder, de uma certa superioridade ou soberania que torna possível, finalmente, a alimentação. O soberano mostra sua força, sua natureza, seus ritos, suas crenças, tudo que lhe é mais íntimo, justamente no ato de capturar e assimilar - e não é justamente isso o que acontece na Ellis Island de Georges Perec? A América soberana captura milhões de corpos e decide livremente sobre seus destinos: todos são assimilados, mas muitos são expulsos, como excrementos desse grande corpo. A citação de Kafka que Perec utiliza fala justamente do aspecto da Estátua da Liberdade, que aparece no horizonte em um sobressalto de luz, "o braço brandindo uma espada", escreve Kafka. Perec faz um bom uso do equívoco dessa visão: "talvez o ser emigrante fosse precisamente isso: ver uma espada lá onde o escultor, de boa fé, acreditou ter posto uma tocha".
3) Toda a comunidade de Israel partiu do deserto de Sim, conforme a ordem do Senhor. Acamparam em Refidim, mas lá não havia água para beber.
Queixaram-se a Moisés e exigiram: "Dê-nos água para beber".
Ele respondeu: "Por que se queixam a mim? Por que colocam o Senhor à prova?".
Mas o povo estava sedento e reclamou a Moisés: "Por que você nos tirou do Egito? Foi para matar de sede a nós, aos nossos filhos e aos nossos rebanhos?"
Então Moisés clamou ao Senhor: "Que farei com este povo? Estão a ponto de apedrejar-me!".
Respondeu-lhe o Senhor: "Passe à frente do povo. Tenha na mão o cajado com o qual você feriu o Nilo e vá adiante. Eu estarei à sua espera no alto da rocha que está em Horebe. Bata na rocha, e dela sairá água para o povo beber".
Assim fez Moisés.
Sucedeu que os amalequitas vieram atacar os israelitas em Refidim.
Moisés disse a Josué: "Escolha alguns dos nossos homens e lute contra os amalequitas. Amanhã tomarei posição no alto da colina, com o cajado de Deus em minhas mãos".
Josué foi então lutar.
Moisés, Arão e Hur subiram ao alto da colina.
Enquanto Moisés mantinha as mãos erguidas, os israelitas venciam; quando, porém, as abaixava, os amalequitas venciam. Quando as mãos de Moisés já estavam cansadas, eles pegaram uma pedra e a colocaram debaixo dele, para que nela se assentasse.
Arão e Hur mantinham erguidas as mãos de Moisés, um de cada lado, de modo que as mãos permaneceram firmes até o pôr-do-sol.
E Josué derrotou o exército amalequita ao fio da espada.
Moisés construiu um altar e chamou-lhe "o Senhor é minha bandeira".

Êxodo 17

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Ellis Island

1) Georges Perec e Robert Bober realizaram, entre 1978 e 1980, um filme sobre a Ellis Island - uma pequena porção de terra na foz do Hudson na qual, no início do século XX, em instalações especialmente construídas para isso, mais de dezesseis milhões de pessoas foram transformadas, através de um decreto federal, de "emigrantes" em "americanos". O filme de Perec foi transmitido pela primeira vez em novembro de 1980, pela rede francesa TF1, com o título de Ellis Island, histórias de errância e esperança.
2) O texto de Perec acompanha as imagens de arquivo e as imagens coletadas durante a visita - uma espécie de voz fora de campo que explora os espaços abandonados (corredores, velhas fotografias, objetos retorcidos, resíduos). Dizem que Ellis Island foi o último texto finalizado por Perec, que morre em março de 1982. O infatigável conquistador de espaços, sempre disposto a dissecar os lugares e as coisas através da narrativa ficcional, interroga-se, em Ellis Island, sobre "o lugar próprio do exílio". "Aquilo que venho interrogar aqui", escreve Perec, "é a errância, a dispersão, a diáspora". Para Perec, Ellis Island é "o lugar da ausência de lugar, o não-lugar, o de nenhuma parte". A ilha está vazia apenas para aqueles que não olham com o tempo necessário - ela está cheia de fantasmas, de murmúrios da história, gerando uma sorte de "memória potencial" ou "autobiografia provável", segundo as palavras de Perec.
3) Ellis Island foi durante anos um confuso e monumental viver-junto (uma espécie de amargo campo de concentração, que reunia, em iguais medidas, esperança e desespero), que Perec registra com seu tom conciso e sua pulsão inventariante: quatro milhões de imigrantes da Irlanda, seis milhões da Alemanha, três milhões da Rússia e da Ucrânia, um milhão da Romênia e da Bulgária... Perec coloca uma epígrafe de Kafka quase no fim do livro - um trecho de Amerika. Perec conta sua história a partir da história de milhões. A prosa inicial (e por isso a narração no filme só é suficiente até certo ponto), seca e informativa, se transforma em uma sequência de versos livres, marcados por brancas pausas - uma geometria da escritura que procura dar conta, talvez, do vaivém dos corpos, das vidas e das estórias durante os anos de atividade da ilha.

Em Ellis Island, o destino tinha
o aspecto de um alfabeto. Os oficiais sanitários
examinavam rapidamente os que chegavam e
traçavam com gesso nas costas
daqueles que consideravam
suspeitos
uma letra que designava a doença ou
a moléstia que pensavam ter descoberto:

C, tuberculose

E, os olhos

F, o rosto

H, o coração

K, hérnia

L, claudicação

SC, o couro cabeludo

TC, tracoma

X, retardo mental