sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

Nossa ruína


"Ser poeta é ocupar os espaços de olhos fechados. A casa quase não tem móveis: a cama, a escrivaninha, os livros e a lousa onde ela investiga os poemas. Olga logo percebe que Alejandra está procurando algo. Primeiro revira as coisas com desafeição, mas, à medida que não encontra o que procura, com crescente desespero e cegueira. Procura às escuras.

'É possível que alguém tenha levado sem me pedir?'. 'Mas o que exatamente você está procurando?', pergunta Olga, já quase apavorada. 'O livro', Alejandra responde com o artigo em itálico, movendo volumes de um lado para o outro da escrivaninha, cada vez mais angustiada. Pareceria que, ao não encontrar o livro, procurasse oxigênio. 'Ufa. Achei', diz aliviada. Senta-se na cama, bem perto de Olga. 'É isto que eu queria que fosse meu diário, mas é impossível. Só ele poderia ter feito isto aqui'.

Alejandra se refere a Kafka. Tem nas mãos os Diários, num exemplar de 1953, com tradução de Juan Rodolfo Wilcock, reiteradamente manuseado, lido, rabiscado, consultado de novo, uma vez após outra, por toda uma vida, com algumas folhas presas com grampos. Ela o segura como se fosse um coração arrancado, que queima. Olga o arrebata dela com doçura e abre uma página ao acaso. Lê o sublinhado de Alejandra: 'Há algum mal-entendido, e esse mal-entendido será nossa ruína'"

Juan Tallón, Fim de poema, trad. Rubia Goldoni e Sérgio Molina, Poente, 2023, p. 28

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