sexta-feira, 15 de julho de 2022

Cem vezes cada frase


"Enquanto andávamos, falou também da maneira como trabalhava. Trabalhava por surtos. Havia ocasiões em que se sentia tão em baixo que quase não podia acreditar que tivesse escrito o que escrevera. E tinha estado doente desde março e, agora, pela primeira vez desde essa altura, estava a começar a fazer alguma coisa" (p. 53)

"Começou a falar de Os irmãos Karamazov. Deve ter lido cem vezes cada uma das frases do livro. Aliocha não tinha espessura, mas Smerdiakov, pelo seu lado, era profundo. Era um personagem que Dostoiévski conhecia de fato. Era real. A seguir, disse que o livro deixara de lhe interessar muito. Mas que gostaria de voltar a Crime e castigo. E falou dos pormenores desse livro, a casa onde é cometido o assassinato, o quarto, a entrada, as escadas, etc. Mas o que o impressionava, o que lhe parecia mais extraordinário, era que Raskolnikov se tivesse esquecido de fechar a porta à chave. Isso, sim, era formidável! Depois de todos os preparativos que fizera" (p. 54-55)

"W. ficou para jantar. A vivacidade do seu espírito, a sua imaginação, é espantosa. Falou de Shakespeare em Stratford, do teatro, do novo uniforme de Gretchen, da mulher que queria que os filhos dessem expressão às suas personalidades, da própria tia que recomendara à mãe dele uma receita e que depois lhe mandara de casa duas amostras de bolo - uma de bolos feitos como devia ser e outra de bolos feitos como não devia ser, e uma vez mais da Doutora Louise Mooney, sua médica em Ithaca. Depois de jantar, já na sala, falou-me de Rush Rhees. De uma representação do Lear organizada por estudantes em Cambridge - o melhor Shakespeare que ele alguma vez vira" (p. 112) 

(O. K. Bouwsma, Conversas com Wittgenstein, 1949-1951, trad. Miguel Serras Pereira, Relógio D'Água, 2005)

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