segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Markson, Steiner

Sócrates e Jesus: figuras fundadoras que evitavam a escrita, com ensinamentos passados às vezes de forma enigmática, tanto verbalmente quanto performativamente (a narradora de Wittgenstein's Mistress escreve "Helena" na areia da praia, usando um bastão, em grego, ainda que não saiba o idioma - como faz Jesus em João 8, 1-8). Esses modelos repercutem em Tolstói e Wittgenstein, todos os quatro utilizados frequentemente por Markson (foram aliás os Evangelhos reescritos por Tolstói que Wittgenstein leu de forma maníaca nas trincheiras, durante a I Guerra Mundial).
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Há um ensaio de George Steiner - chamado "O silêncio dos livros" - que retoma alguns pontos daquilo que chama de "história da escrita", alcançando uma série de elementos utilizados por Markson em Wittgenstein's Mistress. Steiner argumenta que existe certa força vital nos personagens ficcionais que extrapola a vivência imediata dos indivíduos de carne e osso, uma força vital que repercute na e ressignifica as vivências desses indivíduos. Ele escreve:
Após passarmos horas, dias, semanas lendo, aprendendo um texto de cor, explicando, a nós mesmos ou aos outros, uma das transcendentes odes de Horácio, um canto do Inferno, os atos III e IV do Rei Lear, ou as páginas sobre a morte de Bergotte no romance de Proust, voltamos às nossas pequenas tarefas domésticas e insignificantes. Seguimos, contudo, prisioneiros. 
Aí está a insistência de Markson de fazer do fim do mundo apenas uma espécie de ruído de fundo para a montagem de citações e anedotas de sua narradora. E Steiner continua:
O grito na rua ressoa ao longe em nossos ouvidos, se é que chegamos a ouvi-lo. Ele nos fala de uma realidade rascunhada, contingente, vulgar e transitória, impossível de comparar com aquela que dominou nossa consciência. 
Também para Markson toda realidade é contingente e vulgar, dotada de validade na medida em que pode ser rastreada em alguma fase ou aspecto de uma obra de arte (daí a loucura de Nietzsche, a diarreia de Wittgenstein, o fedor de Michelangelo, a menstruação de Helena de Tróia, a falência de Rembrandt e a excomunhão de Spinoza, todos elementos narrativos em Wittgenstein's Mistress, sendo usados como combustível para a criação). Escreve Steiner:
O erudito, o verdadeiro leitor, o fazedor de livros vive saturado pela terrível intensidade da ficção. Sua formação o predispõe a identificar-se de maneira mais intensa com as realidades do texto, com a ficção.
Steiner por fim alcança o tema do artificialismo da narração e do olhar do narrador, certa desumanização voluntária, rastreada em Markson, Bolaño e Perec através de Malcolm Lowry (mas que podemos encontrar de forma intensa também em Cormac McCarthy ou Don DeLillo, por exemplo, por outras vias):
Talvez seja nesse sentido paradoxal que o culto e a prática das humanidades, o convívio exagerado com o livro e o estudo constituam fatores de desumanização. Eles podem tornar ainda mais difícil nossa resposta ativa a uma realidade política e social incontornável, bem como nosso engajamento integral no que se refere às realidades circunstanciais (George Steiner, O silêncio dos livros, trad. André Telles, Revista Serrote, nº 17, p. 106).

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