1) Em O pai Goriot, Balzac alude a uma passagem das obras de J. J. Rousseau, na qual esse autor pergunta ao leitor o que este faria se - sem deixar Paris, e naturalmente sem ser descoberto - pudesse matar, por um simples ato de vontade, um velho mandarim em Pequim, cujo passamento lhe traria enorme vantagem. Ele dá a entender que a vida desse dignatário não lhe parece muito garantida. "Tuer son mandarin" [matar seu mandarim] tornou-se uma expressão proverbial para essa disposição oculta, que é também dos homens de hoje. (...) Nosso inconsciente é tão inacessível à ideia da própria morte, tão ávido por matar estranhos, tão dividido (ambivalente) em relação à pessoa amada como o homem das primeiras eras. Mas como nos afastamos desse estado primevo em nossa atitude cultural-convencional diante da morte! (Freud, Considerações atuais sobre a guerra e a morte [1915]. Obras completas, vol. 12, Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos [1914-1916]. Trad. Paulo César de Souza. Cia das Letras, 2010, p. 243-245.)
2) Estou atormentado por ideias horrendas. Você leu Rousseau? - Li.
Lembra-se daquele ponto em que pergunta ao leitor o que faria, caso pudesse ficar rico matando na China, apenas com sua vontade, um velho mandarim, sem sair de Paris? - Sim.
E então? - Ah! Já estou no trigésimo terceiro mandarim.
Não brinque. Escute, se lhe demonstrassem que a coisa é possível e que bastaria um meneio da cabeça, você o faria? - É muito velho, o mandarim? Ora, moço ou velho, paralítico ou gozando de boa saúde, por minha fé... Raios! Pois bem, não! (Balzac, Le Père Goriot, Paris: Garnier, 1963, p. 154-155).
3) O primeiro a assinalar a conexão entre Balzac e Chateaubriand foi Paulo Rónai, "Tuer le mandarin", em Revue de littérature comparée, 10 (1930), pp. 520-3 [Rónai mostra que a atribuição da história a Rousseau por parte de Balzac é errônea; a fonte correta é Chateaubriand]. Não obstante o subtítulo, o ensaio de L. W. Keates, "Mysterious miraculous mandarin. Origins, literary paternity, implications in Ethics", Revue de littérature comparée, 40 (1966), pp. 497-525, não trata dos precedentes setecentistas. A importância dos dois excertos de Diderot para o desenvolvimento sucessivo do tema é negada explicitamente por A. Coimbra Martins, O mandarim assassinado, em Ensaios Queirosianos, Lisboa, 1967, pp. 11-266. Ver também R. Trousson, Balzac disciple et juge de Jean-Jacques Rousseau, Genebra, 1983, p. 243 e nota 11. (Carlo Ginzburg, Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Cia das Letras, 2001, p. 294, nota 19).
Ótimo Kelvin! Cada texto é uma curiosidade aberta.
ResponderExcluirObrigado pela leitura e pelo comentário, Tiago!
ExcluirA idéia da morte do Mandarim inspirou um episódio de "Além da Imaginação" (Twilight Zone, versão dos anos 80) intitulado "Button, button", que pode ser visto em
ResponderExcluirhttp://medob.blogspot.com.br/2011/08/caixa-episodio-de-alem-da-imaginacao.html
Desculpe, Falcão, introduzir um pouco de cultura pop no seu blog tão erudito!
Abs.,
George
Obrigado pela dica, George!
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