segunda-feira, 15 de junho de 2015

Odores, tiques, mímicas

Nos livros, Montaigne se interessa por detalhes que podem parecer-nos muito acessórios, como este, no pequeno capítulo "Sobre os cheiros", do primeiro livro: "Diz-se de alguns, como de Alexandre, o Grande, que seu suor exalava um odor suave, por alguma rara e extraordinária compleição". Montaigne leu esse dado minúsculo nas Vidas paralelas dos homens ilustres, de Plutarco, seu livro de cabeceira, um best-seller do Renascimento. 

O melhor que se pode esperar é que os homens não tenham cheiro algum. Ora, Alexandre - de suor suave - não só não cheirava mal como cheirava bem por natureza. Segundo Plutarco, ele tinha um temperamento ardente, semelhante ao fogo, que cozia e dissipava a umidade do corpo. Montaigne é apaixonado por esse tipo de observações que coleta nos historiadores. Interessa-se não pelos grandes acontecimentos, pelas batalhas, pelas conquistas, e sim pelas anedotas, pelos tiques, pelas mímicas: Alexandre inclinava a cabeça para o lado, César coçava a cabeça com um dedo, Cícero cutucava o nariz. Esses gestos não controlados, que escapam da vontade, dizem mais sobre um homem do que as façanhas de sua lenda.

(Antoine Compagnon, Uma temporada com Montaigne. Trad. Rosemary Abilio. WMF Martins Fontes, 2015, p. 145-146).
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Duas frentes se abrem a partir do comentário de Compagnon sobre Montaigne: a reflexão sobre as vidas, célebres ou infames, e a dispersão de seus detalhes (seja em Giorgio Vasari, ou em Michon e Foucault); e o desenvolvimento do "paradigma indiciário" de Carlo Ginzburg, que se desdobra a partir da intuição de Aby Warburg ("Deus está nos detalhes") e a partir da sintomatologia de Freud. Nada mais freudiano do que esses "tiques" e "gestos não controlados" de que fala Montaigne, e de que falará Agamben em Signatura rerum a partir da "teoria" e da "filosofia das assinaturas" (e sobretudo a partir da arqueologia de Foucault, fazendo com que as "vidas" e os "gestos" se juntem novamente; Montaigne como mais um elo de uma cadeia que leva dos homens das cavernas até o homem da multidão de Edgar Allan Poe). 
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"Uma disciplina como a psicanálise constitui-se", escreve Ginzburg, "em torno da hipótese de que pormenores aparentemente negligenciáveis pudessem revelar fenômenos profundos de notável alcance. A decadência do pensamento sistemático veio acompanhada pelo destino do pensamento aforismático - de Nietzsche a Adorno. O próprio termo 'aforismático' é revelador. A literatura aforismática é, por definição, uma tentativa de formular juízos sobre o homem e a sociedade a partir de sintomas, de indícios: um homem e uma sociedade que estão doentes, em crise. E também 'crise' é um termo médico, hipocrático. Pode-se demonstrar facilmente que o maior romance da nossa época - a Recherche de Proust - é constituído segundo um rigoroso paradigma indiciário" (Carlo Ginzburg, Mitos, emblemas, sinais. "Sinais: raízes de um paradigma indiciário". Trad. Federico Carotti. Cia das Letras, 1989, p. 178).

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