domingo, 15 de junho de 2014

Johnny Guitar

Johnny Guitar, Nicholas Ray, 1954
A justiça aponta um único culpado, e isso deixa a população sossegada, pois prova que, se não fosse por alguns desequilibrados, tudo estaria perfeito. Eu gostava desse desgraçado, disse Hank, era muito sério nas suas coisas, muito observador. Tinha lhe chamado a atenção que em Johnny Guitar aparecesse um pistoleiro lendo um livro. Parecia doente, o caubói, talvez tuberculoso, porque tossia cadavericamente enquanto lia. E usava óculos. "Sempre que, num filme de Hollywood, aparece alguém de óculos, quer dizer que se trata de um malvado", dissera Tom, lembrava-se Hank. 

Ricardo Piglia. O caminho de Ida. Tradução de Sérgio Molina. Companhia das Letras, 2014, p. 211-212.
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Essa passagem cintila de referências, desde aquelas que remetem ao universo de Piglia (a presença dos filmes e do cinema e, principalmente, a relação entre doença e leitura, que ele explora bastante em O último leitor) até considerações mais gerais sobre essa temporalidade da leitura, tão atípica, tão deslocada do tempo corrente, cronológico ou sucessivo - como as de Jean Paulhan em sua "retórica da doença", as ideias de Walter Benjamin sobre o "estilo asmático" de Proust, a leitura como vício em Paul Auster, as leituras de Barthes no sanatório, e, especificamente no campo dessa "arqueologia cinematográfica" que Piglia faz com Johnny Guitar, está a poética de Cozarinsky, que faz da reconstrução das origens da imagem (um rosto em uma multidão, um cartão-postal encontrado num arquivo) um jogo detetivesco.   

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