quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Homem em queda, 2


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E há sempre o corpo em DeLillo.
Há, claro, A artista do corpo. E no livro sobre a queda das torres vemos mais um artista, um artista que é também um artista do corpo, justamente aquele que dá título ao livro. O Homem em Queda é um sujeito que, usando um cinto de segurança, se pendura em locais públicos de Nova York. Ele imita os suicidas das torres. Ele pergunta: não é de uma ironia grotesca que tenhamos suicidas dos dois lados? A fé de um lado, o desespero do outro. Agora estão todos misturados nessa minha repetição. O Homem em Queda repete o atentado, sua instância material, seu acontecimento no corpo. A foto do corpo de um dos suicidas, o que restou de seu corpo no asfalto, circulou pela internet nos dias posteriores ao atentado. Eu recebi essa foto por e-mail.
O Homem em Queda de DeLillo, artista do corpo, fere seu próprio corpo na repetição. O uso contínuo de um material rústico e pouco apropriado redunda em dores intensas nas costas. Ele se posiciona no alto de uma passagem do metrô, uma plataforma suspensa, ao ar livre. Ele se atira quando o trem passa ao seu lado, para que os passageiros não vejam o cabo, não vejam a suspensão. Somente a queda, o salto. O baque fica por conta da imaginação.
Keith chega em casa com o rosto ferido por estilhaços. No hospital, a enfermeira lhe diz que são estilhaços orgânicos, pedaços de outras pessoas que entraram em sua carne.
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quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Paul Haggis

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Uma mulher está presa. Sua mulher está presa. Condenada por homicídio. Você sabe que é mentira. Elabora um plano e a tira da cadeia. Vocês estão em fuga, na rodovia. Acabaram de deixar o filho para trás. Ele tem seis anos. Era para ele estar em um lugar e não estava. Isso atrasou tudo e foi preciso deixá-lo para trás. Quando a mulher fica sabendo disso, solta o cinto de segurança e abre a porta. Você está dirigindo e só a vê caindo em direção ao asfalto. O carro rodopia enquanto você puxa o seu braço, com força. O carro rodopia, quatro, seis vezes. Vem um caminhão. Ele freia, passa a centímetros da cabeça da mulher. Ela estava com metade do corpo para fora. Essa é a segunda tentativa de suicídio dela. O carro para no acostamento, bruscamente. A mulher está em choque. Você está incrédulo. Silêncio. Ela sai do carro. Senta no chão, com as costas apoiadas no carro. A porta continua aberta. Ele sai do carro. Senta ao seu lado, exatamente na mesma posição. As pernas esticadas para frente. Os dois olham para o nada, atônitos. As mãos estão próximas. As palmas para baixo, apoiando na terra. Um leve movimento no dedo mínimo. O dedo se ergue. Os dedos se tocam. Há uma carícia, tênue. Você levanta, determinado. Não há uma palavra sequer. Nenhum dos dois fala. Levantam, entram no carro, dão a volta e vão buscar o menino.

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Homem em queda

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Todas as palavras que exprimem a inevitabilidade pareciam encher a sala, pensa Lianne, durante um dos encontros do grupo de escrita terapêutica, que reúne pessoas comuns, pessoas da vizinhança. Lianne é a ex-esposa de Keith, que estava no trabalho quando os aviões atingiram as torres. E Keith trabalhava justamente em uma das torres. Ele simplesmente apareceu na porta de casa, coberto de fuligem. Estamos em Homem em queda, de Don DeLillo, e as palavras são sempre materiais, objetos, ferramentas. Uma palavra mais crispada é sempre uma provocação – assim como alguém afirma, lá pelo meio do livro, que as torres, altas, duplas e absurdas, eram provocações, provocações à destruição, feitas para o fim, desde o início.
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Lianne não consegue ver o cachorro da vizinha sem pensar em seu nome: Marko, com K. As crianças, os anjos da história em DeLillo, escutam o nome de Bin Laden nos noticiários e nas conversas dos adultos e o nome que entendem é: Bill Lawton, um nome estranho, o nome de ninguém, um código, uma tentativa de transformar um outro completamente invisível (Bin Laden) em uma ameaça real (Bill Lawton). As pessoas, Don DeLillo entre elas (Don DeLillo no comando de todas elas), procuram preencher as lacunas do real com palavras, palavras que vão sorteando ao acaso, cruzando umas com as outras, testando, experimentando – como se um aglomerado de palavras pudesse não apenas encher uma sala, mas reconstruir uma torre, depois a segunda torre e, em seguida, reconstruir todas as pessoas (os amigos, vizinhos, parceiros de pôquer) que sumiram, reconstruir o corpo daqueles que se lançaram ao chão, alguns de mãos dadas.
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Como fazer com que alguém que não esteve lá saiba como foi estar lá? Talvez só com as palavras.
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Três anos depois da queda das torres, já no fim do livro, o filho de Lianne e Keith está em uma passeata em Nova York, com sua mãe. É um protesto contra a política externa de Bush. O menino recebe um folheto sobre o islã. Algumas frases em árabe estão lá, transliteradas. O menino repete e repete, olha para a mãe, pede para ela tentar. Os dois repetem as frases em árabe, sem saber se estão fazendo certo, pronunciando corretamente, dando as ênfases nos locais apropriados. Eles apenas testam as palavras, como num ritual.
No livro Um antropólogo em Marte, Oliver Sacks inclui um relato chamado “Uma vida de cirurgião”, no qual conta a história de um cirurgião que tem a Síndrome de Tourette. A síndrome se manifesta através de tiques nervosos, mímicas involuntárias, repetição de atos e palavras de outros, repetição compulsiva de xingamentos e obscenidades, movimentos abruptos, como lançar-se ao chão, lançar objetos nas paredes, tendência irreprimível de tocar nos outros. Sacks conta que, na hora das cirurgias, o médico abandonava completamente seus tiques, bastante freqüentes em todas as outras atividades. Ele costumava repetir, sem razão aparente e nas horas mais estapafúrdias, três expressões: Hi, there!, Hi, Patty! e Hideous!. Um de seus filhos, na tentativa de assimilar a Síndrome ao cotidiano e, desta forma, ajudar seu pai, fazia uma coleção de palavras. O touréttico sente atração especial por palavras atípicas, sonoras e pouco utilizadas. Sacks conta que a lista feita pelo filho do médico já havia chegado a mais de duzentas palavras – sendo que 22 delas estavam “em uso”, ou seja, volta e meia surgiam nos rompantes tourétticos do pai. Geralmente são nomes, como: Slavek Hurka, Oginga Odinga, Boris Blank, Floyd Flake, Babaloo Mandel, Morris Gook, Lubor Zink, entre outros, normalmente recolhidos em programas de televisão.

domingo, 26 de dezembro de 2010

Um autor!

Sabemos que Gombrowicz e Borges não se gostavam. Houve até um jantar na casa de Bioy Casares, que não deu certo. Witold gostava de circular pelos becos e pelos bares da periferia, atrás de garotos e de estímulos – Borges, por outro lado, se guardava para as enciclopédias. Ferdydurke está recheado de menções às nádegas masculinas. Na edição brasileira, pela Companhia das Letras, além de um prefácio de Susan Sontag, há uma nota do tradutor no final. Ele diz que duas palavras são fundamentais para entender o romance de Gombrowicz: geba e pupa, a primeira traduzida por “fuças” e a segunda por “bumbum”.
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No prólogo de O informe de Brodie, que Borges data de 19 de abril de 1970, está escrito: O exercício das letras é misterioso; o que opinamos é efêmero e opto pela tese platônica da Musa e não pela de Poe, que acreditou, ou fingiu acreditar, que a escrita de um poema é uma operação da inteligência. Sempre a benfazeja relativização típica de Borges: Poe poderia estar fingindo, no fim das contas, quando escreveu sua explicação para seu próprio poema – e fingiu simplesmente porque era a coisa certa a fazer com relação àquele texto específico, era o que ele pedia. No primeiro capítulo de Ferdydurke, publicado na Polônia em 1937, Józio, o protagonista, está em sua casa, tentando escrever seu romance imaturo, quando recebe a visita de Pimko: doutor em filosofia e professor, um culto filólogo da Cracóvia, baixinho, miudinho, careca, com óculos, calças listradas, paletó, unhas largas e amareladas e sapatos de couro amarelo.
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Se Józio for Dante, Pimko é seu Virgílio – pois o leva para a escola e para o contato com outros malucos. Mas, ainda na casa de Józio, Pimko vê os rascunhos do romance sobre a mesa e exclama, exultante: Mas o que vejo? – exclamou ao ver os meus rascunhos espalhados sobre a mesa. – Não só um sobrinho, mas também um autor! Vejo que estamos tentando nossa sorte com as Musas, não é verdade? Ta, ta, ta, um autor! Já vou examinar tudo e encorajá-lo...
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Toda empáfia e certeza de um especialista, íntimo das “Musas”, este é Pimko, o amarelado (velho, passado, envelhecido, excessivamente maduro – todos os elementos contra os quais está Ferdydurke). O professor está lá para dar a palavra final: “Já vou examinar tudo e encoraja-lo...”. Burocrata da criação, agente da homogeneização – é claro que seu “encorajar” serve apenas para controlar os arroubos imaturos de Józio. E, com algumas décadas de antecipação, temos Gombrowicz fazendo pouco do autor e de seus salamaleques: “Ta, ta, ta um autor!”.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

A Rússia e o demônio

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Mikhail Bulgakov era médico, e serviu no exército como médico, antes da Revolução de 1917. Outros que serviram em combate como médicos: Nietzsche, Louis Aragon, André Breton, Tchekhov. Ao longo da década de 1920 e 1930, Bulgakov enfrentou muitos problemas para publicar seus textos e arranjar emprego. Em 1929, Bulgakov pediu ajuda a Górki na tentativa de obter autorização para viajar ao exterior em busca de trabalho. “Tudo me foi proibido”, escreveu Bulgakov. “Estou na miséria, acossado, em completa solidão”. No ano seguinte, Bulgakov escreveu uma longa carta a Stálin, solicitando um emprego, pedindo clemência, desculpando-se por existir, por escrever as coisas que escrevia, por não ser suficiente ao regime, à nação. Bulgakov, como a grande maioria dos escritores russos da época, nutria sentimentos ambíguos com relação a Stálin – o grande líder, o restaurador da nação, era também fonte de medo e insegurança (por vezes de terror). O sentimento do dever e a exaltação do auto-sacrifício se misturam ao instinto de sobrevivência, à autocomiseração, ao desamparo. Um dia, o telefone tocou. Disseram a Bulgakov que Stálin queria lhe falar. Ele desligou, pensando que era um trote (um trótski). Ligaram novamente, Bulgakov acreditou e, como num sonho, conversou com o Chefe. Seu emprego no Teatro estava garantido, a carta surtira efeito. Ao fim de oito anos nesse cargo, contudo, quase vinte trabalhos de Bulgakov – principalmente peças – foram recusados. Ele demorou a perceber que o cargo servia como mordaça e coleira, e não como um voto de confiança. Chegou a escrever uma peça sobre a vida de Stálin, colocando o grande líder como personagem, no centro do palco, representando sua ascensão vitoriosa, suas origens. Toda a trupe preparada, figurinos e cenários nos ajustes finais, o autor animado com a tão aguardada volta por cima e, de repente, eis que chega a notícia: Stálin havia vetado o projeto. Considerou um absurdo a representação de sua figura de forma tão heróica. Bulgakov, depois disso, adoeceu. Adoeceu dos nervos, adoeceu do corpo. Gastou suas últimas energias revisando O mestre e Margarida, ditando mudanças e ajustes para sua esposa. Mesmo sabendo que não teria (tão cedo) chances de publicação, Bulgakov, mesmo morrendo, seguiu com sua história da tomada da Rússia pelo demônio.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Outros filhos

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Muitos filhos tiveram papel fundamental na carreira literária de seus pais e mães. Uma história literária alternativa poderia surgir do acompanhamento dessas vidas: o filho de Macedonio, Adolfo de Obieta; o filho de Susan Sontag, David Rieff; a filha de Isaac Bábel, Nathalie Bábel; Dmitri, o filho de Nabokov; a filha psicótica de Joyce (que nunca mencionam o nome: Lucia, Lucia Joyce). Coetzee perdeu um filho adulto, num acidente de carro. Os filhos especiais de Kenzaburo Oe e Cristóvão Tezza. Duchamp só soube que tinha uma filha quando ela já era grande, em um encontro totalmente por acaso na escada de um metrô.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Bellow e o filho

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Saul Bellow conta, em um texto sobre seus anos em Paris, um dos encontros que teve com Arthur Koestler pelas ruas da cidade. Bellow estava com seu filho pequeno, Koestler estava sozinho. Bellow conta que a surpresa de Koestler foi dupla: 1) ele tinha um filho (e pequeno, ainda por cima - algo em torno de 4, 5 anos); 2) ele havia levado o filho para morar com ele em Paris. Bellow afirma que, para Koestler, poucas coisas poderiam ser mais estranhas que um filho - especialmente um filho em Paris, em uma viagem que se pretendia literária, cultural. Bellow não leva a surpresa de Koestler muito a sério. Ou ainda: com o passar dos anos, distante de Paris e distante daquele encontro, escrevendo sobre o acontecimento, tenha decidido não levar muito a sério a mensagem de Koestler: sinto muito, amigo, mas você não vai conseguir aproveitar Paris com esse pestinha a tiracolo. Bellow estava escrevendo Henderson, o rei da chuva, que é dedicado a seu filho.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Prazer do fato, prazer do texto


Dizem que o crítico é aquele que não perde o gosto pela literatura, que não perde de vista o jogo com a literatura, ou seja, a dança da montagem e da combinação (a esquiva, o risco de morte da tauromaquia). Aquele que registra sua biografia nos textos que lê. Aquele que procura o texto onde ele não está, ou está pela metade, tropeçando. É um movimento um pouco esquizofrênico, delirante (que sai da lira, sai do sulco, do trilho, da trilha), porque está sempre além do texto, buscando dados, detalhes, elementos (fatos), ao mesmo tempo em que se cola a ele, ao texto, investigando suas comissuras, na esperança da grande descoberta (como a batata no bolso de Leopold Bloom, que Ricardo Piglia faz questão de ler, faz questão de fincar sua bandeira (em O último leitor - que é o crítico, afinal de contas)). Encanta o crítico a descoberta da situação específica na qual Kafka escreveu determinado texto, durante alguma temporada no sanatório, ou no auge de algum romance epistolar (um amor de ficção, como era de seu feitio). Ou saber o ano em que Bolaño trabalhou como vigia noturno num camping (ou como vendedor de bijuterias) e que texto surgiu então, ou qual texto transmite o fato (e se viveu aquilo para ter o que escrever, ou se escreveu para viver novamente). Ou saber do texto que Faulkner escreveu em vinte e poucos dias, trabalhando também como vigia noturno (ou a noite em claro de Fernando Pessoa, escrevendo poemas em pé, usando o tampo de uma cômoda). E imagino que encante o crítico também as repetições vocabulares de Thomas Bernhard e seu estilo entrópico, estafante - ou aquilo que Benjamin chamou de "estilo asmático" de Proust, ou seja, o momento em que o texto captura o corpo e emula suas ondulações (como em Palahniuk, Javier Marías ou Raduan Nassar, para citar exemplos distantes entre si mas próximos quando se trata de "somatizar" a escritura). Que memória é essa, que não se decide entre fato e texto? Não se decide porque não pode, porque é impossível. Essa memória não é minha, mas é feita por mim, costurada por mim.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

1984

Nos derradeiros meses do século XX, dei um jeito de obter um visto para entrar na Coreia do Norte. Designada por muitos como "o último Estado stalinista do mundo", a Coreia do Norte pode também facilmente ser apontada como o protótipo mundial do Estado stalinista. Fundada sob a proteção de Stálin e Mao e tornada ainda mais hermética e isolada por uma península repartida que, por assim dizer, "trancou-a em si mesma", no final do ano 2000 a República Democrática Popular da Coreia ainda ostentava as características enumeradas a seguir. Em cada edifício público uma gigantesca figura do "Grande Líder" Kim Il Sung, o defunto que ainda detém o cargo de presidente num governo que, por isso, pode ser chamado de necrocracia ou mausolocracia. Crianças marcham em formação para a escola, entoando canções em louvor do mencionado Líder. Fotografias do Líder exibidas obrigatoriamente em todas as casas. Um broche de lapela com as feições do Líder, de uso obrigatório para todos os cidadãos. Alto-falantes e rádios transmitindo continuamente propaganda do Líder e do Partido. Uma sociedade interminavelmente mobilizada para a guerra, com propaganda histérica e intensamente chauvinista e xenofóbica. Proibição total de notícias do exterior e de contato com outros países. Insistência absoluta, em todos os livros e em todas as publicações, sobre uma visão unânime de um passado miserável, um presente laborioso e um futuro radiante. Clima generalizado de escassez e fome, mitigadas apenas por alimentos abomináveis e em quantidades limitadas. Arquitetura suntuosa e opressiva. Contínua ênfase em esportes e exercícios em massa. Total repressão a tudo que se relacione a libido. Jornais sem notícias, lojas sem mercadorias e aeroporto quase sem aviões. Uma vasta rede de túneis no subsolo da capital, ligando diferentes bunkers do partido, da polícia e das Forças Armadas. Obviamente só havia uma palavra para designar tudo isso, e ela era empregada por todos os jornalistas, todos os diplomatas e todos os visitantes estrangeiros. Foi a única vez na minha vida de escritor em que me cansei do termo "orwelliano". Em alguns aspectos, o pesadelo norte-coreano fica aquém da distopia de Orwell. Em alguns aspectos, porém, é infinitamente mais proibitivo.

Christopher Hitchens. A vitória de Orwell, p. 79-80
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Esse livro de Hitchens, lançado esse ano pela Companhia das Letras, é excelente. Sempre limitei Orwell a um número específico de livros e a uma atuação política bem restrita. Mas o caso é que estava enganado por ignorância, e o livro de Hitchens, além de brilhantemente escrito, é informativo e, principalmente, combativo. Ele não esconde sua admiração por Orwell e toma posição numa batalha que engloba várias frentes - da literatura à política, da esquerda à direita, da Europa aos Estados Unidos, não há recanto que Orwell tenha deixado em paz. O interessante é que Hitchens manobra tanto a minúcia do texto quanto a reconstrução histórica. Ou seja, faz uma releitura criteriosa de Orwell (ao mesmo tempo em que faz a leitura também das leituras, aqueles que comentaram Orwell sob as mais variadas reivindicações) e situa seus textos dentro de contingências muito específicas, que misturam a vida pessoal de Orwell com a história política do Ocidente (principalmente em seu contato com o Oriente).

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

A arca de Nabokov

Nabokov e Saul Bellow publicaram textos na Partisan Review na mesma época, principalmente entre 1948 e 1951. A PR estava sediada em Nova York e juntava uma miscelânea de intelectuais antistalinistas e profundamente interessados no modernismo literário. George Orwell também colaborou com a revista durante a mesma época (seus dois últimos anos de vida). Nabokov publicou versões iniciais do que seriam capítulos de sua autobiografia, Speak, memory (A pessoa em questão, na tradução brasileira da Companhia das Letras). Nabokov, assim como o Bellow de anteontem, também menciona uma arca. Ele não diz se a arca atravessou o oceano, como aconteceu no caso de Bellow, mas é certo que os objetos guardados ali dentro estão no exílio. Nossa edição conta com um caderno interno de fotos, e uma das últimas, tirada em fevereiro de 1929, mostra Nabokov escrevendo. Ele conta que sua mulher tirou a foto sem que ele percebesse. Nabokov estava escrevendo A defesa Lujin, em um quarto de hotel na França. "Um maço meio vazio de Gauloises pode ser percebido entre o vidro de tinta e um cinzeiro abarrotado", ele escreve na generosa descrição e contextualização que faz para a foto. Nabokov chama a atenção, também, para o quadriculado da toalha sobre a mesa, para as fotos de família, para os quatro volumes de um dicionário crítico do russo. E então ele fala de seu "porta-penas", robusto e marrom, cuja ponta "já foi bastante mastigada". Esse porta-penas, "amado instrumento de madeira de carvalho", foi usado por Nabokov para escrever tudo que escreveu durante seus vinte anos de perambulação europeia - os primeiros contos e poemas, escritos em russo, publicados em jornais de exilados (em Berlim, em Paris), Machenka, O riso no escuro, etc. O porta-penas de Nabokov, esse companheiro fiel (ainda que tantas vezes mordido), sumiu na mudança para os Estados Unidos. Mas Nabokov finaliza a legenda imaginando o reencontro: "um dia ainda hei de redescobrir numa das arcas armazenadas num guarda-móveis de Ithaca, estado de Nova York".

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

1973

Em 1973 encerra-se uma onda modernista. Morrem Tarsila do Amaral e Maria Martins, mas também Pablo Neruda e Pablo Picasso, W. H. Auden e Carlo Emilio Gadda; Hans Kelsen, Jacques Maritain e Leo Strauss; o antropólogo Evans-Pritchard, o escultor Jacques Lipschitz e o situacionista Asger Jorn. Daniel Bell publica The Coming of Post-Industrial Society e Stephen Hawking, The Large-Scale Structure of Space-Time. Lillian Hellman lança sua autobiografia, Pentimento, e Thomas Pynchon, seu romance Gravity's Rainbow. No Rio de Janeiro, Michel Foucault leciona o curso sobre A verdade e as formas jurídicas. Hélio Pellegrino entrevista-o no Jornal do Brasil: “Em torno de Édipo” e, no Jornal de Minas, registra-se sua palestra em Belo Horizonte, “Foucault, o filósofo está falando. Pense”. Nesse mesmo ano, Anselm Kiefer realiza Father, Son, Holy Ghost, o artista Philip Guston, nascido Goldstein, de raízes igualmente ucranianas, como Lispector, volta a certa figuração pop em Painting, Smoking, Eating, e Robert Rauschenberg, inspirado em São Francisco de Assis, propõe a instalação Sor Aqua, placas de metal refletindo-se, suspensas, numa banheira com água. Em 1971, Clarice Lispector concluíra um manuscrito intitulado Objeto gritante, que, revisado e reduzido, seria publicado, em 73, com novo título, Água viva, onde buscaria fixar o in-existente, deter o fluxo do tempo, congelar o que foi feito pra fluir, estendendo assim, infinitamente, o presente, o instante-já.

Direto do programa da disciplina do professor Raul Antelo, para o próximo semestre.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

A arca russa de Saul Bellow


Saul Bellow nasceu em 1915, numa cidade chamada Lachine, no Canadá. Seus pais haviam emigrado de São Petersburgo para Montreal em 1913. Bellow conta que, na mesa de jantar, o czar, a guerra, Lênin, Trotski e os bolcheviques eram mencionados com a mesma constância que os parentes deixados para trás. A família de Saul Bellow compartilhava com a família de Vladimir Nabokov a incredulidade com a queda da monarquia russa, em 1917. Em suas memórias, Nabokov escreveu que “o bolchevismo não passava de uma forma especialmente brutal e implacável da opressão bárbara – tão antiga quanto as areias do deserto – e não era nem de longe a atraente e inédita experiência revolucionária com que tantos observadores estrangeiros o confundiram”. Não sei se alguma vez se encontraram. Quando Bellow foi para a Europa, em 1947, Nabokov já estava há 7 anos nos Estados Unidos. Bellow diz que, em Montreal, os velhos achavam que os arrogantes bolcheviques logo seriam expulsos – mas os filhos estavam ávidos para se juntar à revolução. Lyova, o filho do professor de hebraico, partiu para a Rússia, ignorando as recomendações e reprimendas dos mais velhos. Nunca mais voltou. Muitos anos mais tarde, já em Chicago, na década de 1930, Saul Bellow lia Marx e Lênin com devoção e escutava as advertências de seu pai: “Não esqueça do que aconteceu com Lyova; e não só com ele, pois há anos não tenho notícias de suas tias”. Bellow relembra tudo isso em um texto de 1993 – muito distante, portanto, da infância, dos pais, dos bolcheviques e do Nobel que recebeu em 1976 (razoavelmente próximo da morte, que chegaria doze anos depois) –, publicado na revista The National Interest. Ele escreve que, mesmo diante da resistência do pai, considerava-o russo, “com agradáveis feições russas”, tanto ele quanto sua mãe. Saíram de São Petersburgo com uma arca repleta de apetrechos e ornamentos: “brocados, cartola, casaca, lençóis de linho com bordas plissadas, anáguas pretas de tafetá, penas de avestruz, botinas com botões e cano alto, fotografias, talheres de prata, velhas canetas com seus aparadores”. Bellow afirma que a única utilidade dos objetos era servir de brinquedo para as crianças – o baú era um pouco da Rússia em Chicago, e para o pequeno Saul os objetos eram mágicos, passagens que ligavam tempos e espaços.

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Walter Benjamin, no ensaio “Brinquedo e brincadeira. Observações sobre uma obra monumental”, escreve o seguinte: Um poeta contemporâneo disse que para cada homem existe uma imagem que faz o mundo inteiro desaparecer; para quantas pessoas essa imagem não surge de uma velha caixa de brinquedos?

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Coleção de areia

Estamos diante do último livro de Italo Calvino, Coleção de areia, publicado em 1984, um ano antes de sua morte. É uma coletânea de textos esparsos, dos mais variados tamanhos e sobre os mais variados assuntos: relatos de viagens e exposições, textos sobre literatura e linguagem, sobre autores específicos, sobre Idade Média e descobrimentos, coleções, máquinas, natureza e cultura. A edição da Companhia das Letras, que saiu em julho de 2010, acrescenta uma "Apresentação" que provavelmente apareceu nas reedições, depois da morte de Calvino, portanto. Trata-se de uma breve apresentação, escrita por Calvino, mas incluída sem assinatura na quarta capa da primeira edição. Um parágrafo curto, no qual Calvino escreve sobre sua obra (e sobre ele mesmo, na terceira pessoa) e revela, de forma muito sutil, um pouco de sua postura intelectual, uma mistura de leitor e escritor, arquivista e curioso. A primeira frase localiza no espaço seus últimos anos de produção: "De Paris, Italo Calvino envia de vez em quando ao jornal em que colabora um artigo sobre alguma exposição insólita" - o que remete a outra coletânea de esparsos publicada recentemente, Eremita em Paris. Ele envia "de vez em quando", quando encontra algo "insólito", quando capta alguma oscilação digna de nota no cenário intelectual. O que ele busca, contudo, é a possibilidade de "contar uma história por meio de um desfile de objetos", desde mapas e tabuletas até manequins e gravuras populares. Para Calvino (e também para Agamben, Vila-Matas, Duchamp e Walter Benjamin), a miniaturização é a cifra da história, e os objetos negligenciados dão acesso a esse enigma (por isso, teria sido excelente se a edição contasse com fotografias, fazendo das andanças de Calvino um par possível para as andanças de Sebald (e também de Canetti ou Claudio Magris, todos também carentes de iconografia)). Calvino fala que nos textos de Coleção de areia emergem "alguns traços da fisionomia do escritor", ou seja, ele está prestes a nos brindar com um autorretrato que, no gesto inicial de sua realização, omitia o próprio objeto. Ele traça sua fisionomia: "onívora curiosidade enciclopédica", "discreto afastamento de qualquer especialismo", "prazer de confiar as opiniões às entrelinhas", "meticulosidade obsessiva" e "contemplação desapaixonada da verdade do mundo". Uma política do pudor, exatamente como aquela que Benjamin via em Robert Walser. O percurso intelectual que, de repente, revela os traços do rosto de seu criador, como em Borges. Calvino diz que Coleção de areia é um inventário de "coisas vistas" - uma reflexão sobre o visível e sobre o próprio ato de ver, "incluído o ver da imaginação". Os traços da fisionomia do escritor também são encontrados no ponto mais distante de casa, e por isso Calvino termina a nota mencionando suas notas de viagens ao Irã, México e Japão.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Para trás e para adiante


Um parágrafo chama a atenção no prefácio que acompanha as novas edições das obras completas de Freud, que estão saindo pela Companhia das Letras. O tradutor Paulo César de Souza escreve que a ordem de publicação dos volumes brasileiros não é a mesma das primeiras edições alemãs, "pois isso implicaria deixar várias coisas relevantes para muito depois". O parágrafo termina informando que a decisão editorial foi de começar por um período intermediário e, a partir daí, "proceder para trás e para adiante". Esse movimento já é, por si só, interessante. Ao mesmo tempo em que confere uma dinâmica à obra densa e vasta de Freud, contribui para uma dessacralização, uma ventilação dessa mesma obra. O tradutor também diz que esse período intermediário, "em torno de 1915", é um período de pleno desenvolvimento das concepções de Freud - e engloba textos como "Totem e tabu", "Além do princípio do prazer" e o famoso "O estranho" (que agora se chama "O inquietante" - entrando para uma galeria de traduções que contém "Lo siniestro" e "Lo ominoso" para o espanhol, "Il perturbante" para o italiano, "L'inquiétante étrangeté" para o francês e "The uncanny" para o inglês). Essa falta contra a cronologia da edição brasileira é, portanto, um gesto consciente de apropriação crítica da obra freudiana. Dá ênfase a um período específico da produção e, dessa forma, sugere um percurso de leitura e um reposicionamento de Freud na contemporaneidade. O resultado disso é o privilégio dado a alguns textos já disponíveis, como "O mal-estar na civilização" e "Além do princípio do prazer". Não deixa de ser curiosa a preocupação com uma possível leitura de "várias coisas relevantes" ser deixada "para muito depois", principalmente se lembrarmos os quase cem anos que nos separam de alguns desses trabalhos. Mas a justificativa parece ser justamente essa: temos Freud, agora, em fragmentos não-cronológicos exatamente porque, passados cem anos, vemos legibilidades mais relevantes em momentos específicos desse trajeto. Esse posicionamento dá ainda mais força às edições, que são, de resto, impecáveis (e essa posição é progressivamente reafirmada nas criteriosas notas de tradução que aparecem nos volumes).