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Todas as palavras que exprimem a inevitabilidade pareciam encher a sala, pensa Lianne, durante um dos encontros do grupo de escrita terapêutica, que reúne pessoas comuns, pessoas da vizinhança. Lianne é a ex-esposa de Keith, que estava no trabalho quando os aviões atingiram as torres. E Keith trabalhava justamente em uma das torres. Ele simplesmente apareceu na porta de casa, coberto de fuligem. Estamos em Homem em queda, de Don DeLillo, e as palavras são sempre materiais, objetos, ferramentas. Uma palavra mais crispada é sempre uma provocação – assim como alguém afirma, lá pelo meio do livro, que as torres, altas, duplas e absurdas, eram provocações, provocações à destruição, feitas para o fim, desde o início.
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Lianne não consegue ver o cachorro da vizinha sem pensar em seu nome: Marko, com K. As crianças, os anjos da história em DeLillo, escutam o nome de Bin Laden nos noticiários e nas conversas dos adultos e o nome que entendem é: Bill Lawton, um nome estranho, o nome de ninguém, um código, uma tentativa de transformar um outro completamente invisível (Bin Laden) em uma ameaça real (Bill Lawton). As pessoas, Don DeLillo entre elas (Don DeLillo no comando de todas elas), procuram preencher as lacunas do real com palavras, palavras que vão sorteando ao acaso, cruzando umas com as outras, testando, experimentando – como se um aglomerado de palavras pudesse não apenas encher uma sala, mas reconstruir uma torre, depois a segunda torre e, em seguida, reconstruir todas as pessoas (os amigos, vizinhos, parceiros de pôquer) que sumiram, reconstruir o corpo daqueles que se lançaram ao chão, alguns de mãos dadas.
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Como fazer com que alguém que não esteve lá saiba como foi estar lá? Talvez só com as palavras.
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Três anos depois da queda das torres, já no fim do livro, o filho de Lianne e Keith está em uma passeata em Nova York, com sua mãe. É um protesto contra a política externa de Bush. O menino recebe um folheto sobre o islã. Algumas frases em árabe estão lá, transliteradas. O menino repete e repete, olha para a mãe, pede para ela tentar. Os dois repetem as frases em árabe, sem saber se estão fazendo certo, pronunciando corretamente, dando as ênfases nos locais apropriados. Eles apenas testam as palavras, como num ritual.
No livro Um antropólogo em Marte, Oliver Sacks inclui um relato chamado “Uma vida de cirurgião”, no qual conta a história de um cirurgião que tem a Síndrome de Tourette. A síndrome se manifesta através de tiques nervosos, mímicas involuntárias, repetição de atos e palavras de outros, repetição compulsiva de xingamentos e obscenidades, movimentos abruptos, como lançar-se ao chão, lançar objetos nas paredes, tendência irreprimível de tocar nos outros. Sacks conta que, na hora das cirurgias, o médico abandonava completamente seus tiques, bastante freqüentes em todas as outras atividades. Ele costumava repetir, sem razão aparente e nas horas mais estapafúrdias, três expressões: Hi, there!, Hi, Patty! e Hideous!. Um de seus filhos, na tentativa de assimilar a Síndrome ao cotidiano e, desta forma, ajudar seu pai, fazia uma coleção de palavras. O touréttico sente atração especial por palavras atípicas, sonoras e pouco utilizadas. Sacks conta que a lista feita pelo filho do médico já havia chegado a mais de duzentas palavras – sendo que 22 delas estavam “em uso”, ou seja, volta e meia surgiam nos rompantes tourétticos do pai. Geralmente são nomes, como: Slavek Hurka, Oginga Odinga, Boris Blank, Floyd Flake, Babaloo Mandel, Morris Gook, Lubor Zink, entre outros, normalmente recolhidos em programas de televisão.