sábado, 16 de novembro de 2024

Adestradores


Ainda em De genio Socratis, bem depois da passagem na qual se fala do daimon de Sócrates como um espirro, outro personagem relembra o que um oráculo teria dito ao pai de Sócrates quando este era ainda criança (20, 589, E): devia deixá-lo fazer o que quisesse, sem limitar ou guiar seus impulsos, garantindo sua plena liberdade, pois o menino já tinha dentro de si um guia melhor que qualquer mestre ou pedagogo.

Por fim, outro personagem, ampliando a questão (24, 594, B), levanta a hipótese de que os deuses marcam os melhores de nós, como um adestrador escolhe um cavalo dentro de um grupo de cavalos; os escolhidos recebem mensagens por símbolos, incompreensíveis para o restante do rebanho; assim como a maioria dos cães não entende o chamado do treinador, mas o cão escolhido sabe obedecer a um determinado assovio. "Tenho a impressão de que também Homero conhecia essa diferença", diz o personagem de Plutarco, citando o verso: "Heleno, querido filho de Príamo, entendeu dentro de si a decisão que agradava aos deuses em seus conselhos" (Ilíada, VII, 44-45). 

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Sócrates e o espirro


Em sua narrativa De genio Socratis (tradução latina do grego Perí tou Sōkrátous daimoníou), Plutarco não apenas retoma a figura de Sócrates, mas o faz a partir do modelo oferecido pelo Fédon platônico: uma reflexão especulativa acerca do destino das almas após a morte. Na narrativa de Plutarco, Sócrates aparece eventualmente como tema de conversação de um grupo de conjurados que prepara uma insurreição contra os tiranos que tomaram o poder em Tebas (o que faz pensar em certas histórias de Jorge Luis Borges ou de Leonardo Sciascia). 

Em certa passagem (11, 581, B), um dos personagens relata algo que ouviu de um megarense: a informação de que o "gênio" de Sócrates (seu daimon, a energia sobrenatural que o guiava e protegia) era, na verdade, um espirro: se alguém espirrava à sua direita, ou atrás, ou à frente, Sócrates sabia que devia agir; se o espirro viesse da esquerda, sabia que devia ficar quieto e não fazer nada (o mesmo personagem chega à conclusão, no andamento de sua fala, que a ideia toda é ridícula e não combina com aquilo que sabemos sobre Sócrates).

terça-feira, 12 de novembro de 2024

De que texto se trata?


1) Vernant e Vidal-Naquet, no segundo volume de Mito e tragédia na Grécia antiga (p. 222-223), falam do Édipo rei de Sófocles, representado em Atenas por volta de 420 a.C. De que texto se trata?, eles se perguntam. "Ninguém gravou a representação de Atenas": a história da tradição se iniciou assim que os copistas começaram a copiar os manuscritos. O texto, portanto, não é de Sófocles, mas de um copista, de um editor bizantino, Manuel Moscopoulos (comentador e gramático que viveu no final do século XIII e início do século XIV).

2) O célebre manuscrito Laurentianus (uma cópia em minúsculas de um texto escrito em unciais, como precisam os autores) permite quando muito retornar ao codex do século V d. C., de que ele é uma cópia. Mais longe, é preciso postular um volumen da alta época imperial, que não é o texto de Sófocles, mas a interpretação de um filólogo da época de Adriano (Publius Aelius Hadrianus, imperador romano de 117 a 138). 

3) O texto de Sófocles não precisa esperar o período romano para se tornar clássico ou escolar: já com Licurgo os três grandes trágicos já estão classificados como tais (Ésquilo, Eurípides, Sófocles, como registra Aristófanes nas Rãs, de 406). Licurgo já está quase um século distante da maioria das obras no período trágico - e foi ele quem instaurou a lei das "versões oficiais", ou seja, a lei que determinava que os textos das obras dos três grandes trágicos deveriam ser custodiados nos Arquivos da cidade, evitando, assim, modificações espúrias. 

domingo, 10 de novembro de 2024

O final é o começo



1) No último capítulo de Mimesis, dedicado a uma análise da "meia marrom" em Virginia Woolf (uma passagem do romance Ao farol), Auerbach fala não apenas de Woolf, Joyce e Proust, mas da cena modernista de uma forma geral - chega a comentar, por exemplo, que existem certos romancistas que, apesar de já esteticamente "prontos" (ou "maduros"), utilizam ad hoc algumas das técnicas vanguardistas (o principal exemplo de Auerbach é Thomas Mann). Trata-se, contudo, de um capítulo de despedida e, por isso, complexo e heterogêneo - Auerbach chega a fazer um paralelo com Homero, retomando a cena do reconhecimento de Ulisses por conta de sua cicatriz (Auerbach, portanto, liga o ponto final ao ponto inicial de seu projeto).

2) O paralelo com Ulisses pode ser produtivo, na medida em que Auerbach, exilado e irrequieto (além de cosmopolita e poliglota), tomava como próprio o destino do errante. Ulisses, ao voltar para casa, antes de voltar ao leito que ele próprio construiu (a partir da árvore que nasce no lugar onde está o quarto), conta a Penélope como aprendeu, pelas palavras de Tirésias no inferno, que ele precisa - mesmo depois do retorno - seguir viagem. Ao retomar o início de Mimesis no final de Mimesis, Auerbach mostra, de forma enviesada, que o trabalho deve continuar, que o "final" é apenas um "começo" deslocado (Ulisses precisa seguir viagem já no dia seguinte, depois da noite de amor com a esposa, até encontrar alguém que não reconheça o remo - que deve, necessariamente, levar consigo - como um remo, e sim como uma "pá para grãos"). 

3) Tanto é verdade que o fim de Mimesis marca um recomeço que Auerbach define o próprio trabalho como uma filologia feita a partir dos moldes vanguardistas (e justamente porque Auerbach não sabe a direção do romance contemporâneo, também não sabe a direção exata de seu próprio trabalho). Em outras palavras, ele afirma que seu trabalho não é totalizante ou histórico, e sim a investigação de certos detalhes, certas cenas e certos problemas - algo que, de resto, é exemplificado e evidenciado pelo próprio drama da "meia marrom" de Virginia Woolf, na qual Auerbach vê o próprio destino (analisar toda uma existência condensada em uma cena, um detalhe: a cicatriz, a meia marrom, o carneiro de Dindenault na análise de Rabelais, etc). 

domingo, 3 de novembro de 2024

1919, 1929



1) No sexto parágrafo de seu ensaio sobre o surrealismo, Walter Benjamin cita Erich Auerbach, ou melhor, cita o livro de Auerbach sobre Dante (lançado em 1929, o mesmo ano do ensaio de Benjamin), especificamente a parte na qual Auerbach fala dos poetas do "estilo novo" como pertencentes a uma "sociedade secreta", dedicados a "aventuras do amor" e buscando "dádivas" que mais se assemelham a iluminações. "Iluminações", evidentemente, é a palavra-chave, já que Benjamin busca aproximar Dante e sua "sociedade secreta" da cena surrealista, que ele tenta interpretar a partir de um horizonte semelhante (a partir de Rimbaud).


2) No parágrafo seguinte, Benjamin aprofunda sua análise dos temas caros aos surrealistas - em suma, uma valorização daquilo que não é valorizado normalmente pela sociedade (roupas com mais de cinco anos, as primeiras fábricas, as primeiras construções de ferro e assim por diante), o que mantém, no pano de fundo, a aproximação com Dante e seu círculo (que revitalizam poeticamente relações cotidianas que passam inadvertidas pelas pessoas "normais"). Em seguida, surge uma segunda referência muito recente dada por Benjamin: um ensaio de Pierre Naville, "A revolução e os intelectuais", publicado em francês em 1926.

3) Naville e Auerbach surgem no ensaio de Benjamin mostrando sua faceta de intelectual atualizado e de pensador versátil e predisposto aos saltos - de Dante ao surrealismo, dos Demônios de Dostoiévski às passagens de Paris, de uma carta de Isidore Ducasse ao "aperfeiçoamento pacífico" da Força Aérea alemã. Benjamin escreve no calor da hora, marcando 1919 como uma data definidora - ele fala do início do surrealismo, mas é também o ano do Tratado de Versalhes e dos assassinatos de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht (algo decisivo no debate sobre "pessimismo" e "otimismo" que Benjamin, muito rapidamente, apresenta no ensaio sobre o surrealismo, mas que vai aparecer também em textos como "Teorias do fascismo alemão", "Melancolia de esquerda", "Experiência e pobreza", etc).



segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Tia Carmela



1) Em uma das notas reunidas em seu livro Nero su nero, Leonardo Sciascia conta uma história siciliana da II Guerra Mundial: em uma pequena cidade na região de Agrigento chega a notícia da morte em batalha, na África, de um jovem morador do local. As autoridades decidem homenageá-lo de forma solene - era a primeira baixa registrada, tanto da cidade quanto da província -, com missa fúnebre, parada militar e discursos dos dignitários.

2) A mãe do falecido, contudo, continuava ouvindo a Rádio Londres - o que era rigorosamente proibido por lei na Itália da época -, que todos os dias anunciava os nomes dos soldados italianos feitos prisioneiros: teve a alegria de escutar não apenas o nome, mas também o sobrenome, local de nascimento, classe e matrícula. Não havia possibilidade de erro, era ele mesmo. Com a alegria, no entanto, veio a preocupação: a mãe não podia impedir o funeral sem confessar que havia escutado as transmissões radiofônicas do inimigo.

3) Sciascia escreve que a mulher experimentou o confronto do "medo supersticioso do funeral" (que poderia gerar "influxos de mau-agouro" em direção ao filho) com o "medo concreto de ser presa". Depois de passar a noite em claro pensando, acreditou ter encontrado a solução: foi ao chefe de polícia e disse a ele que tinha sonhado com seu filho, e que ele havia dito que o funeral não devia ser feito, ele estava vivo e bem em um campo inglês de prisioneiros. O chefe escutou com atenção e paciência e disse (escreve Sciascia): "Tia Carmela, esta noite tive o mesmo sonho, exatamente o mesmo... Mas o funeral precisa ser feito". "E foi feito", completa Sciascia.

sábado, 26 de outubro de 2024

Os danados



1) No prefácio do segundo volume de Mito e tragédia na Grécia Antiga (trad. Bertha Gurovitz, Brasiliense, 1991, p. 16-17), Vernant e Vidal-Naquet comentam, rapidamente, uma tradução ao francês do Édipo Rei de Sófocles. "Quando, no Édipo Rei de Sófocles", eles escrevem, "o servidor de Laio compreende que o homem que tem diante de si, soberano de Tebas, é a própria criança que, com os pés feridos, ele entregou ao pastor do rei de Corinto, ele lhe diz, de acordo com a tradução de Jean e Mayotte Bollack: 'Se és o homem que ele (o pastor de Corinto) diz que és, sabes que nasceste danado'" (são os versos 1180-1181). 

2) O problema está na palavra "danado". O que faz essa palavra aqui, perguntam Vernant e Vidal-Naquet, com a "teodiceia cristão" que veicula e sua aproximação com uma "predestinação agostiniana ou calvinista" que nada tem a ver com a "angústia trágica". A tradução (aqui e em qualquer parte; mas aqui Vernant e Vidal-Naquet denunciam o anacronismo daninho) é já uma interpretação e um deslocamento - leva Sófocles em direção a Dante, aos danados do Inferno, ao pecado, à culpa e ao medo tal como construídos pela tradição cristã. "O texto grego diz", simplesmente, informam Vernant e Vidal-Naquet, "sabes que nasceste para um destino funesto".

3) Em nota de rodapé, os autores dão mais exemplos: no verso 823 - que eles traduzem como "Nasci para o mal?" -, o casal Bollack dá a tradução: "Sou um danado de nascença?"; "observemos finalmente", acrescentam eles, "o emprego do termo 'danação' para traduzir, no verso 828, o grego ômos daimôn, 'uma divindade selvagem'". Com relação aos versos 1180-1181, a tradução de Trajano Vieira para o português é a seguinte: Se és quem ele diz, crê: nasceste para a desventura. (Perspectiva, 2001, p. 97).