terça-feira, 15 de julho de 2025

Um livro de Montaigne


Por acaso, pesquisando detalhes da relação entre Montaigne e Plutarco (ou melhor, a relação que Montaigne estabelece com Plutarco a partir da leitura das suas obras), encontro a notícia de um leilão de livros, a divulgação de um achado raro: o exemplar das Vidas de Plutarco que pertenceu a Montaigne - o traço distintivo e excepcional é precisamente a assinatura, Mõtaigne, na folha de rosto (que, no entanto, está riscada). A estimativa de valor para a venda do exemplar no leilão era de 30 mil euros; o livro terminou vendido por 369 mil euros. O exemplar de Montaigne é uma edição de 1565 da tradução que Amyot fez das Vidas de Plutarco.

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Montaigne nasce em 1533 e morre em 1592; Amyot morre um ano depois, em 1593, mas nascido 20 anos antes de Montaigne, em 1513. A partir de 1559, Amyot trabalha em Roma, traduzindo as Vidas de Plutarco a partir do exemplar do Vaticano; antes disso, já havia trabalhado em uma tradução de sete livros de Diodoro Sículo (publicada em 1554) e ainda fará a Moralia de Plutarco (1572). Com relação à tradução das Vidas, existe uma triangulação literária digna de nota: a tradução de Amyot é utilizada na Inglaterra por Thomas North para sua tradução ao inglês, tradução essa que é utilizada intensamente por Shakespeare para suas tragédias romanas (Julius Caesar (primeira apresentação em 1599), Antony and Cleopatra (primeira apresentação por volta de 1607) e Coriolanus (escrita provavelmente entre 1605 e 1608)).

sábado, 12 de julho de 2025

O tesouro de Boscoreale



1) Rostovtzeff, em seu livro Mystic Italy (de 1927), comenta a intensificação do sentimento religioso em Roma (e no mundo helenístico de forma geral) a partir do século II a.C: vários fatores contribuem para a situação, mas ele dá ênfase ao caos gerado pelas guerras civis (Mário e Sila; Pompeu e César; Antônio e Otaviano, até a Pax Augusta). A instabilidade da vida cotidiana, as mortes, desapropriações, massacres aleatórios - elementos que geram uma busca pelo "além" e um permanente temor diante da morte que pode ser iminente. Rostovtzeff retoma rapidamente o sexto canto da Eneida, de Virgílio, reconhecendo aí um horror do além típico da época.

2) Mais que isso: reconhece "blasfêmias" com relação aos mortos e ao além que não conseguem encobrir o medo e a impotência diante da fragilidade da vida. Já no parágrafo seguinte, Rostovtzeff liga a Eneida de Virgílio ao jogo de utensílios em prata encontrados em Boscoreale, o conhecido "tesouro de Boscoreale", hoje no Louvre. O mesmo sentimento percorre o sexto canto da Eneida de Virgílio e a decoração dos utensílios de prata, com seus esqueletos dançantes: a angústia permanente diante do horror da morte, que não é silenciada, e sim potencializada pelos procedimentos artísticos.

3) O tesouro de Boscoreale foi encontrado em nove de abril de 1895, em um sítio que havia começado a ser escavado em 1876; já no mês seguinte as peças são enviadas clandestinamente para a França por antiquários napolitanos; o Barão de Rothschild compra as peças e as doa para o Louvre; no ano seguinte, 1896, depois do escândalo do transporte clandestino, a escavação é retomada com maior vigilância: chega-se à conclusão que o tesouro havia sido escondido por conta da erupção do Vesúvio em 79. Além das taças com os esqueletos dançantes, o tesouro conta ainda com utensílios que serviam para mexer e misturar o vinho, travessas para transporte de comida, bem como artefatos que parecem puramente decorativos (com motivos animais e vegetais, cenas mitológicas e temas políticos, como as taças "de Augusto" e "de Tibério").

domingo, 6 de julho de 2025

Outro leitor de Faulkner



Some Came Running, filme de 1958 de Vincente Minnelli, conta a história de um escritor, Dave Hirsch, interpretado por Frank Sinatra: em 1948, Hirsch volta à cidade de origem (no interior de Indiana), depois de ser colocado, bêbado, dentro de um ônibus por seus amigos, em Chicago. Hirsch é um sujeito irônico e desencantado com a vida, muito crítico de si e dos outros, descrente das boas intenções e assim por diante. Além de ser um veterano do Exército, Hirsch também é escritor publicado e consolidado (com livros que falam justamente da vida nessa cidade do interior à qual ele volta relutantemente), uma atividade que, no entanto, ele não encara com bons olhos, chegando mesmo a recusar tal posição, chegando mesmo a afirmar que já não escreve, que isso pertence ao passado e assim por diante. 


Como tantos outros escritores, Hirsch é um leitor de Faulkner. São vários os leitores de Faulkner, desde o filho de Elizabeth Costello, em Coetzee; Fredric Jameson, que fala de Faulkner como o escritor do "agora"; ou Jean Echenoz quando escreve sobre Ravel. Logo no começo do filme, Hirsch se estabelece em um quarto de hotel: quando desfaz a mala e organiza seus poucos pertences, mostra para a câmera os livros que leva consigo e, ali, em primeiro plano e em lugar de destaque, Faulkner - o escritor desse mundo de desconfiança e rispidez no qual vive Hirsch.   

 

segunda-feira, 30 de junho de 2025

Arte da ignorância


Em muitos trabalhos de Agamben, a tensão entre saber e não-saber foi muitas vezes aproximada da tensão entre potência e ato, ou seja, entre a possibilidade de fazer algo e a possibilidade de escolher não fazê-lo. 

Em Opus Dei, livro de 2012, glosando a interpretação latina dos Pais da Igreja da filosofia aristotélica (dentro do escopo mais amplo daquilo que denomina “arqueologia do ofício”, ou seja, uma investigação da matriz conceitual da ontologia moderna a partir das traduções de termos-chave do grego para o latim), Agamben escreve: “Como Aristóteles não se cansa de repetir contra os megáricos, tem verdadeiramente uma potência aquele que pode tanto colocá-la quanto não colocá-la em ato”; completando mais adiante com um exemplo: “O Bartleby de Melville, ou seja, por definição um homem que tem a potência de escrever, mas não pode exercê-la, é a perfeita das aporias da ética aristotélica” (p. 100, 103).

Assim como o saber precisa dar conta do não-saber – a partir de uma “arte da ignorância” que exercite a noção de que as certezas são historicamente situadas e, por isso, oscilantes – a potência precisa dar conta da própria suspensão ou esvaziamento, do reconhecimento de certa não-continuidade em sua vigência. Ainda em Opus Dei, Agamben escreve que a “relação com a privação”, ou seja, com a possibilidade de não-fazer (ou não-saber), “é essencial para Aristóteles, porque é só através dela que a potência pode existir como tal, independentemente de seu passar ao ato” (p. 99).

terça-feira, 24 de junho de 2025

Partes das partes


De onde vem essa lógica rigorosa em Poe, de que fala Todorov? Está por todos os lados, ocupando, com variadas intensidades, camadas diversas da tradição - já está, sem dúvida, na fundação, na Eneida de Virgílio (e certamente está na falha da lógica rigorosa a angústia de Virgílio diante da morte: não poder completar a estrutura que levou a cabo). De Virgílio a Dante, sempre a lógica rigorosa, como escreve Panofsky em Arquitetura gótica e Escolástica (p. 26):

A Divina Comédia de Dante não só deve grande parte de seu conteúdo ao ideário escolástico, mas também sua forma conscientemente trinitária. Na Vita Nuova, o poeta chega a desviar-se de seu tema para analisar a sequência de ideias de todos os sonetos e canzioni, de maneira perfeitamente escolástica, como "partes" e "partes das partes".

Auerbach, em vários momentos da sua obra, insiste na dominância da lógica da separação de estilos: alto, médio e baixo, com categorias rígidas e fronteiras de pertencimento cada vez mais sutis; é o próprio Auerbach também quem enfatiza como o cristianismo rompe com essa lógica rigorosa, inaugurando um paradigma discursivo no qual o sublime está irremediavelmente costurado ao humilde e ao criatural, sem que isso redunde em uma substituição total e completa do paradigma da lógica rigorosa de separação dos estilos. 

quinta-feira, 19 de junho de 2025

A lógica rigorosa


"Cada nível de organização do texto obedece a uma lógica rigorosa; além disso, esses níveis são estritamente coordenados entre si. Retenhamos um único exemplo: os contos fantásticos e 'sérios' são sempre contados na primeira pessoa, de preferência pela personagem principal, sem distância entre o narrador e sua história (as circunstâncias da narração aí desempenham um papel importante), como em 'O demônio de perversidade', 'O gato negro', 'William Wilson', etc. 

Por outro lado, os contos 'grotescos', como 'O rei peste', 'O diabo no campanário', 'Lionizing', 'Quatro bestas em uma', ou os contos de horror, como 'Hop-Frog' e 'A máscara da morte escarlate', são contados na terceira pessoa ou por um narrador testemunha, e não ator; os acontecimentos são distanciados, o tom é estilizado. Nenhuma sobreposição é possível" 

(Tzvetan Todorov, "Os limites de Edgar Allan Poe", Os gêneros do discurso, trad. Nícia Bonatti, Unesp, 2018, p. 239).

sábado, 7 de junho de 2025

Papa engrossada, mingau de aveia




"Em casa de uma família instruída, à mesa do chá, falava-se de literatura, de coisas como fantasia e fábula. E lamentava-se que tudo isso estivesse cada vez mais pobre e mais pálido entre nós. Eu lembrei-me de uma observação muito característica do falecido Píssemski, que dizia que o empobrecimento notado na literatura estava sobretudo relacionado com a multiplicação das estradas de ferro; na sua opinião, elas são muito úteis para o comércio, mas às belas-artes fazem mal.

'Hoje em dia, a pessoa viaja muito, mas à maior velocidade e sem problemas - dizia Píssemski -, e por isso não junta nenhuma impressão forte, e não há nada que olhar, nem tempo para isso, pois tudo passa voando pela janela. Daí, a sua experiência é pobre. Mas, antigamente, quando ias de Moscou a Kostromá de carruagem e saía-te um cocheiro canalha, e os outros passageiros eram todos uns insolentes, e o dono da hospedaria era um velhaco, e a cozinheira da casa era a imundície em pessoa - vê aí, então, quanta variedade havia para a tua contemplação. Com o coração já pra não aguentar mais nada, aí tu pescavas uma imundície qualquer na sopa e dizias umas poucas e boas à tal cozinheira, e ela, em resposta, vinha para cima de ti com dez vezes mais impropérios; tu, então, simplesmente não tinhas como escapar de impressões. E elas juntavam-se em ti numa nuvem grossa, que nem a papa engrossada a fogo lento; pois então, aí a escrita só podia sair-te encorpada, concentrada, também; hoje em dia, tudo isso é à moda ferroviária: pegas o teu prato, e sem perguntas; comes, mas não dá nem tempo de mastigares; din-din-din e fim de conversa; recomeças a viagem, e a única impressão que colhes é que o empregado da taberna te roubara no troco, mas já não tens tempo para uma boa troca de palavras fortes com ele' "(Leskov, Um pequeno engano e outras histórias, trad. Noé Polli, Ed. 34, 2024, p. 83-84)

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"Sua prosa não tem primavera nem verão, não tem outono nem inverno, não é preta nem vermelha; ela escorre para o estômago feito mingau de aveia sem sal. Mas, como vocês não vivem mais como cervejeiros, defumadores, feirantes e ciganos, como têm medo do cajado do tempo e de seu próprio desespero, não têm mais o que dizer. 

A época em que louvavam a própria fome, em que os jovens escritores se insurgiam contra presidentes, aquela em que vocês faziam a revolução, essa época passou! Foi-se o tempo em que Hamsun vadiava por Nova York, em que Sillanpää não pôde ir buscar seu prêmio Nobel, porque ele, que vivia de fato, tinha sete filhos e nem sequer um único tostão no bolso do casaco para a viagem. E foi-se o tempo em que vocês cantavam seus versos ao som do alaúde. De um povo de poetas e pensadores fez-se um povo de segurados, de funcionários públicos e de membros do partido, uma paisagem de fracos, de homens sem nenhuma paixão carregando pastinhas. De um povo de entusiastas fez-se um povo de representantes comerciais!" 

(Thomas Bernhard, "Uma palavras aos jovens escritores", 18 de janeiro de 1957, Na pista da verdade: discursos, cartas, entrevistas e artigos, trad. Sergio Tellaroli, Todavia, 2015, p. 33)