sábado, 26 de outubro de 2024

Os danados



1) No prefácio do segundo volume de Mito e tragédia na Grécia Antiga (trad. Bertha Gurovitz, Brasiliense, 1991, p. 16-17), Vernant e Vidal-Naquet comentam, rapidamente, uma tradução ao francês do Édipo Rei de Sófocles. "Quando, no Édipo Rei de Sófocles", eles escrevem, "o servidor de Laio compreende que o homem que tem diante de si, soberano de Tebas, é a própria criança que, com os pés feridos, ele entregou ao pastor do rei de Corinto, ele lhe diz, de acordo com a tradução de Jean e Mayotte Bollack: 'Se és o homem que ele (o pastor de Corinto) diz que és, sabes que nasceste danado'" (são os versos 1180-1181). 

2) O problema está na palavra "danado". O que faz essa palavra aqui, perguntam Vernant e Vidal-Naquet, com a "teodiceia cristão" que veicula e sua aproximação com uma "predestinação agostiniana ou calvinista" que nada tem a ver com a "angústia trágica". A tradução (aqui e em qualquer parte; mas aqui Vernant e Vidal-Naquet denunciam o anacronismo daninho) é já uma interpretação e um deslocamento - leva Sófocles em direção a Dante, aos danados do Inferno, ao pecado, à culpa e ao medo tal como construídos pela tradição cristã. "O texto grego diz", simplesmente, informam Vernant e Vidal-Naquet, "sabes que nasceste para um destino funesto".

3) Em nota de rodapé, os autores dão mais exemplos: no verso 823 - que eles traduzem como "Nasci para o mal?" -, o casal Bollack dá a tradução: "Sou um danado de nascença?"; "observemos finalmente", acrescentam eles, "o emprego do termo 'danação' para traduzir, no verso 828, o grego ômos daimôn, 'uma divindade selvagem'". Com relação aos versos 1180-1181, a tradução de Trajano Vieira para o português é a seguinte: Se és quem ele diz, crê: nasceste para a desventura. (Perspectiva, 2001, p. 97).

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

A língua de Françoise



"Depois de ter fugido da minha família, ainda mais rápida e completamente fui deixando de usar a norma linguística de Reims - ou o que restava dela - porque estava tão em desacordo com o lugar - Paris - e o meio - pequena e média burguesia cultural - o quadro social da minha existência, onde a língua de qualquer outra região soava estranha e aquele que a empregava poderia ser designado como 'provinciano' ou 'do interior' para quem vem das províncias e que continuam a usá-la. Aprende-se isso com os olhares céticos ou os comentários sarcásticos daqueles que têm certeza da legitimidade social e da superioridade da norma linguística que empregam. Descobrimos, espantados, que esta ou aquela palavra que sempre usamos é desconhecida por aqueles com quem conversamos, e que ela ofende os ouvidos daqueles acostumados ao 'bom uso' da língua, à norma de prestígio.

Por isso, logo se compreende que se devem eliminar certos usos, certos modos de falar, certo vocabulário. A língua dos dominantes é a língua considerada legítima. O exemplo paradigmático desse sentimento de superioridade linguística por parte dos dominantes pode muito bem ser a forma como o narrador de Em busca do tempo perdido sublinha por pura diversão os erros de francês da criada da sua família, Françoise." 

(Didier Eribon, Vida, velhice e morte de uma mulher do povo, trad. Luzmara Curcino, Ayiné, 2024, p. 170) 

*

FRANÇOISE    Cozinheira da tia Léonie, em Combray, ela passa em seguida a servir os pais do herói, após a morte desta em 1894. Nascida nos anos de 1830, Françoise tem, então, mais de sessenta anos. Ela terá, junto ao herói, um papel de governanta e lhe demonstrará sempre muita simpatia. É dedicada, atenta, mas também ciumenta em relação às outras domésticas. Respeitosa das hierarquias sociais, ela não se deixa influenciar facilmente e sabe dar prova de lucidez sobre as pessoas. Em Combray, ela é a grande sacerdotisa da cozinha que sabe regalar os paladares e as imaginações.

Seu personagem é indissociável do romance campestre que contém a primeira parte de No caminho de Swann, e ainda mais por ela parecer ancorada na tradição pela sua linguagem, que ama dar a certos termos seu sentido antigo. Em Paris, ela é mais que uma simples doméstica: desempenha um papel nas relações mantidas por outros personagens. Possui a religião do dinheiro, muito mais do que a da posição social, uma das razões pelas quais ela não gosta de Albertine, que não é uma jovem rica. Sua perspicácia fez-lhe adivinhar os sentimentos dolorosos que a jovem suscita no coração do herói.

A coexistência de afetos ambivalentes, como a bondade e a crueldade, o amor e o desprezo que ela manifesta alternadamente pela auxiliar de cozinha, por Albertine ou por seus patrões faz dela um personagem complexo.

(Michel Erman, Em busca do tempo perdido. Dicionário de nomes e lugares, trad. Carla Silva, Biblioteca Azul, 2015, p. 46-47)

terça-feira, 15 de outubro de 2024

O milagre de Petrônio


Milagre, porque o Satiricon, à primeira vista, parece ter sido escrito por ocasião de alguma viagem no tempo: diríamos que é um romance realista burguês que surgiu em plena Antiguidade escravagista. Biografia quase balzaquiana do parvenu Trimalcião, negociante enriquecido, psicologia nietzschiana do grupo dos libertos, com seu ressentimento, sua sobrecompensação do desprezo de classe, seu desdém ciumento pelos outros grupos sociais... Parece milagre mas não é, e o Satiricon não é um romance: é uma sátira menipéia (cf. Auerbach, Mimesis, Paris, Gallimard, 1969, p. 35 e N. Frye, Anatomie de la Critique, trad. Durand, Gallimard, 1969, p. 376). Petrônio não constrói personagens com uma consistência balzaquiana: ele capta no ar, no fio da vida cotidiana, uma película superficial, a das conversas, das opiniões ridículas e reveladoras, das entonações e expressões que revelam todo um mundo numa frase; é a arte de comédia de costumes ou de teatro de "revista"; esta arte se interessa pelos tipos sociais e recenseia as excentricidades, bem como os tipos "morais", o Avaro, o Distraído, o Soldado Fanfarrão. É uma arte mimética, uma arte do "rôle de composition" e não existe grande distância entre Petrônio e Plauto.

Esta arte de caricaturista decepcionaria, se a julgássemos pelo romance moderno: o Satiricon daria uma impressão de negligência, de repetição (a refeição na casa de Trimalcião é interminável), de não ter nexo; mas Ubu Rei também. O desdém evidente que Petrônio sente pelos libertos que coloca em cena não é um desprezo social que tinha por eles quando escrevia; certamente, devia considerá-los como indivíduos presunçosos e subalternos, mas, se o Satiricon é satírico, não é porque Petrônio pensa isso deles, mas porque escreve uma sátira. O romance burguês não é satírico: é sério, isto é, não é nem épico ou trágico, nem cômico ou satírico; mas, como diz Auerbach, a Antiguidade ignora o sério: para falar de temas "realistas", ela só conhece o tom satírico, e não o tom sério e neutro do romance burguês; ela só pode falar de temas "grosseiros" zombando deles. 

O que atraiu o escritor Petrônio não foram os libertos na relação que mantinham com o grupo social ao qual pertenciam ele mesmo e seus leitores escolhidos: foi esta sua psicologia tão particular, um prato cheio para um caricaturista. O que permanece único é o talento de Petrônio para discernir e traduzir esta psicologia tão moderna e tão estranha às categorias mentais da Antiguidade; se Petrônio em nada anuncia Balzac e Zola, em pequena escala ele anuncia a visão psicológica da humanidade e do ressentimento que aparece em Nietzsche ou Dostoiévski.

(Paul Veyne, A elegia erótica romana: o amor, a poesia e o Ocidente, trad. Milton Meira, Brasiliense, 1985, p. 122, nota 49)

terça-feira, 8 de outubro de 2024

Almost no Greek



1) Em 20 de janeiro de 1965, Arnaldo Momigliano dá uma conferência sobre Vico no Instituto Warburg (publicada no ano seguinte em History and Theory). Resgata dois termos centrais para a Scienza Nuova: "bestioni" e "eroi", ou seja, de certa forma, "plebeus" e "patrícios" (Vico está discutindo as leis agrárias da Roma primitiva). Momigliano, no percurso da conferência, comenta uma série de idiossincrasias de Vico: afirma que ele tinha uma capacidade "quase infinita" para citações errôneas e desleixadas (algo compreensível para alguém que trabalhava rodeado por seus "oito filhos napolitanos", escreve Momigliano, além dos visitantes frequentes); afirma também que Vico não lia inglês ou francês, além de não ter mais do que os rudimentos do grego, o que limitava sensivelmente sua bibliografia ("He had almost no Greek, and his knowledge of Greek history was below the standards to be expected in a learned man of the XVIII century").

2) "Minha ignorância do grego é tão perfeita quanto a de Shakespeare", escreve Borges no verbete "Epidauro" de seu Atlas.

3) No ensaio de abertura de seu livro Grécia revisitada (São Paulo, Carambaia, 2022), Frederico Lourenço menciona um exemplar da Ilíada, em grego (um manuscrito da época bizantina), hoje conservado na Biblioteca Ambrosiana de Milão, que pertenceu a Petrarca: o poeta, contudo, "nunca leu o livro que considerava o mais precioso da sua biblioteca. E a razão é fácil de apontar: Petrarca não sabia grego. Embora se tenha esforçado já tardiamente para aprender a língua de Homero e Platão, nunca chegou a saber o suficiente para ler a Ilíada no original" (p. 23).

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

La Castañeda


1) É interessante pensar a respeito das associações possíveis entre o romance de Cristina Rivera Garza e o trabalho de Georges Didi-Huberman sobre Charcot e o asilo La Salpêtrière: Nadie me verá llorar, o romance, foi publicado em 1999; Invention de l'hystérie:Charcot et l'iconographie photographique de la Salpêtrière, o trabalho de Didi-Huberman que emerge tanto de Freud quanto de Michel Foucault, é de 1982.

2) O romance de Rivera Garza é a transformação em narrativa do seu trabalho na tese de doutorado, dedicado ao hospital psiquiátrico "La Castañeda", na Cidade do México ("La Castañeda fue el centro psiquiátrico más grande de México hasta la segunda mitad del siglo XX", é o que diz o início do verbete da Wikipedia, completando: "La inauguración fue realizada por Porfirio Díaz en 1910 y su demolición se efectuó en 1968. Durante todo su período de funcionamiento el manicomio dio atención a más de 60 mil pacientes").

3) A potência do olhar em seu cruzamento com o desejo, as normas, as interdições e a dialética tensa entre repulsa e atração (que o próprio Foucault analisou na sua História da sexualidade) são elementos centrais tanto para o romance de Rivera Garza quanto para o estudo de Didi-Huberman. Não é por acaso que Rivera Garza coloca como protagonista do relato (ao lado da "mulher fatal", Matilda Burgos, a prostituta que se transforma em "louca", tendo sido, muito antes, no interior do México, uma menina que trabalhava nos campos de colheita da baunilha) um fotógrafo decadente que, em fim de carreira, se debruça sobre uma última tarefa: fotografar as internas do La Castañeda.

sábado, 28 de setembro de 2024

O horror de Marte

Virgílio entre Clio, musa da História,
e Melpomene, musa da Tragédia (séc. III d.C.)


1) Se é possível reconhecer em Guerra, de Céline, a trajetória de um soldado que se sente jogado para lá e para cá, em um encadeamento de cenas que diz respeito mais àquilo que veio depois da guerra, é possível reconhecer também um ponto de contato com Virgílio e com a Eneida, que, afinal de contas, é a história de um guerreiro que foge de sua cidade (Troia) destruída, encontrando pelo caminho os mais variados personagens (um paralelo com outro livro de Céline, De Castelo em Castelo, é possível). 

2) Iniciada em 29 a. C. e publicada dez anos depois, logo após a morte de Virgílio, a Eneida é não apenas uma sorte de arquivo de mitos e personagens, mas é também uma obra que funciona dentro de uma constelação (assim como Joyce só pode pensar o Finnegans Wake depois do Ulysses): depois das Bucólicas, canções da flauta suave, e depois das Geórgicas, canções dos trabalhos da terra, Virgílio está pronto para a Eneida, que é um pouco de tudo, mas é, sobretudo, a canção da fundação de Roma pelas mãos um guerreiro em fuga que leva, para sempre, a guerra consigo.

3) Uma coisa interessante da Eneida é que ela começa com quatro versos que, a princípio, não fazem parte do poema em si - são versos introdutórios nos quais o próprio Virgílio, de certa forma, aparece: Ille ego qui, ou seja, "Eu sou aquele que..."; a partir dessa introdução, Virgílio fala de suas canções anteriores (precisamente as Bucólicas e as Geórgicas), afirmando que chegou a hora de falar da guerra: at nunc horrentia Martis, "mas agora o horror de Marte" (os quatro versos foram conservados pelos gramáticos Donato e Sérvio, do século IV, mas foram eliminados de alguns códices).

terça-feira, 24 de setembro de 2024

Guerra



1) Toda a história ao redor da publicação de Guerra, de Céline, é impressionante: décadas depois da escrita, décadas depois das guerras (tanto a Primeira, na qual Céline se feriu, quanto a Segunda, na qual atuou como colaborador/simpatizante nazista), décadas depois do roubo dos manuscritos, o livro ressurge, os manuscritos são decifrados e uma edição é feita, primeiro na França e, agora, no Brasil (tradução excelente de Rosa Freire d'Aguiar). Apesar da brevidade, Guerra mostra o mesmo Céline dos grandes livros - Morte a crédito, De castelo em castelo e assim por diante: a intensidade do estilo, a força escatológica e desencantada das imagens.

2) O ponto central do romance é a cabeça do seu protagonista, Ferdinand - o que não deixa de ser relevante e representativo da poética de Céline como um todo, muito dependente da fabulação maníaca dessa "cabeça", dessa mente, dessa imaginação tão singular. Existe um fato concreto que condiciona essa elaboração a partir da cabeça, da mente e da imaginação: Ferdinand é ferido na guerra (exatamente como o foi Céline, no dia 27 de outubro de 1914, em Poelkapelle, Bélgica), no braço e na cabeça, por conta de uma explosão. "Peguei a guerra na minha cabeça", ele escreve; "Ela está trancada na minha cabeça" (o que faz pensar nas Memórias de um doente dos nervos, de Daniel Paul Schreber, e na gravura que faz Jan Peter Tripp - como conta Sebald - da cabeça de Schreber povoada por "monstros"). 

3) Já no final do romance, por exemplo, Ferdinand reitera os efeitos do ferimento sobre sua vida pós-guerra: "Era preciso fazer o enorme esforço de não ceder à angústia de não poder dormir, nunca mais, por causa dos zumbidos que nunca terminarão, nunca a não ser junto com a vida. Peço desculpas. Insisto mas é a minha melodia. Azar, não fiquemos tristes" (Cia das Letras, 2024, p. 123). A falta de sono, de certa forma, gera o estilo peculiar do narrador (como a asma em Proust, segundo Walter Benjamin); o "zumbido" é projetado em direção ao futuro - o narrador tem certeza que o acompanhará para sempre, já que a vida, a partir do ferimento, está indissociavelmente ligada ao trauma (só a morte pode fazer algo a respeito); por fim, a "melodia": eu "insisto", diz o narrador, mas essa ladainha é "minha melodia", ou seja, sua poética, seu estilo, seu "canto" (pela via de Homero (a guerra!), "Canta para mim, ó Musa"...).