domingo, 4 de maio de 2025

Aquele que conduz


1) Nos anos da Segunda Guerra Mundial, quando Hermann Broch está escrevendo A morte de Virgílio, Gianfranco Contini está preparando sua edição das Rimas de Dante. A partir desse trabalho, Contini começa a desenvolver uma de suas principais ideias críticas: o contraste entre "plurilinguismo" e "monolinguismo" na literatura, algo que ele traduz como um contraste entre Dante e Petrarca, entre um movimento de criação no interior da língua que privilegia a transformação e um movimento de criação que privilegia a manutenção, ou ainda, a circunscrição léxica, sintática e rítmica. 

2) O romance de Broch, publicado em 1945 - seis anos antes da morte do autor -, é realizado sob o decisivo influxo de James Joyce e de seu Ulisses (mais plurilinguista que o Ulisses, só o Finnegans Wake, que é de 1939). A partir do romance de um irlandês que resgata um personagem grego, Broch - um austríaco - faz um romance que resgata um personagem latino, o poeta ocidental por excelência, Virgílio, aquele que - nas palavras de T. S. Eliot - torna possível o cânone, mesmo para aqueles que trabalham em uma língua que não parte da matriz latina virgiliana. 

3) É possível dizer que Virgílio não existiria para Broch sem a intervenção de Dante, sem a intervenção da Divina Comédia, que leva a Eneida adiante; é o próprio Broch quem insiste na relação, desde as epígrafes do romance: as duas primeiras da Eneida, a terceira e última da Divina Comédia (do Inferno, canto XXXIV, precisamente quando Dante fala de Virgílio: Lo duca ed io per quel cammino ascoso / Entrammo a ritornar nel chiaro mondo (o uso que Dante faz da palavra "Duca" é muito interessante: do latim "ducem", "dux", significa "aquele que conduz", através do baixo grego (ou bizantino) "doúka" ou "doúkas", "chefe militar de uma cidade ou província").

sexta-feira, 25 de abril de 2025

A literatura e seus limites



Meu último livro, A literatura e seus limites: romances com imagens, está em promoção no site da Editora da UFSC. Como não poderia deixar de ser, recorro a W. G. Sebald para falar dos "romances com imagens", mas não apenas ele: a partir de Sebald, armo um eixo de análise através dos primeiros anos do século XXI, comentando romances de Ben Lerner (10:04), Valeria Luiselli (Arquivo das crianças perdidas) e Katja Petrowskaja (Talvez Esther).

sábado, 19 de abril de 2025

Um homem silencioso


Em 10 de junho de 1975, no jornal L'Ora, sai uma entrevista de Italo Calvino feita por Ferdinando Scianna - a entrevista é publicada com o título "Un silenzioso che ha molto da dire", ou seja, "Um silencioso que tem muito a dizer". Scianna, entre outras coisas, pergunta a Calvino o que ele acha da recente candidatura política de Leonardo Sciascia (para se tornar consigliere comunale em Palermo). Calvino, com outras palavras, diz que justamente pelo fato de Sciascia ser (ou poder ser) um político atípico ele poderá fazer bem à política italiana. "Acho que sou um dos amigos de Sciascia", diz Calvino, "mas a nossa amizade certamente não se pode medir pelo número de palavras trocadas. Sciascia é um homem silenciosíssimo": em um mundo no qual todos falam sempre tanto, completa Calvino, "a entrada na política de um homem silencioso, mas que tem muitas coisas a dizer, é um fato enormemente positivo" (a entrevista está no livro Sono nato in America... Interviste 1951-1985, de Calvino (Mondadori, 2022, p. 212-215) e também no Carteggio 1955-1985 de Calvino e Sciascia (Mondadori, 2023, p. 247-250)).

domingo, 13 de abril de 2025

Algodão, batalhas


Já no final de Autobiografia do algodão, Cristina Rivera Garza escreve:

"A verdade é que passamos vários verões no carro, dirigindo por um longo tempo naquelas estradas longas e retas pela fronteira entre o México e os Estados Unidos. Procurávamos os campos de algodão, seus vestígios. Se já não estavam mais lá, queríamos ver o que estava em seu lugar, todos aqueles anos depois. Queríamos viajar do lado mexicano, mas os campos de algodão do passado haviam se tornado os campos de batalha mais quentes [los campos de batalla más álgidos] da chamada guerra contra o narco. De Mexicali, passando por El Paso, mas especialmente em torno de Matamoros, a terra do algodão é agora a terra do sangue e da tortura, a terra das valas a céu aberto, a terra onde se semeiam desaparecidos e se colhe impunidade, desgraça, esquecimento. Embora tenhamos feito todo o possível, nunca chegamos lá. Nunca conseguimos pisar naquele mítico K-61, espaço 124 onde começa, em um inverno de muita chuva, um inverno cheio de lama e esperança, a segunda parte desta história" (trad. Silvia Massimini Felix, Autêntica Contemporânea, 2025, p. 313)

As fronteiras, as viagens e as estradas - ecos claríssimos de 2666, de Roberto Bolaño, mas também a paisagem espectral de Juan Rulfo (a quem Rivera Garza dedica todo um livro, que comentei aqui). Mas como descrever as diferenças, tão claras durante a experiência de leitura, entre o tratamento da fronteira/viagem que faz Bolaño e aquele que faz Rivera Garza? O primeiro mantém o nível dos personagens e da fabulação sempre em primeiro plano, enquanto a segunda faz a narrativa ser atravessada continuamente por um nível "externo", o nível do "real" da narradora, que compartilha nome, condições e localização espaço-temporal com a autora que assina o livro; Bolaño mais "mostra" do que "diz", já que suas cenas guardam sempre um viés de enigma, de obliquidade, certa suspensão poética acerca da intenção de apresentar certos personagens ou diálogos; Rivera Garza, por sua vez, é aberta e direta em suas conexões e declarações, o romance é, claramente, uma reflexão sobre o presente, uma mistura de sociologia, antropologia e ficção, os bastidores fazem parte do trabalho artístico.  


quarta-feira, 2 de abril de 2025

Westminster Road



1) Em um dos episódios de seus Souvenirs d'égotisme (breve livrinho com "memórias de um egotista", que não deve ser confundido nem com os Diários, ou com sua obra autobiográfica principal, Vie de Henry Brulard), Stendhal conta de sua passagem por Londres, em 1821. Ele estava profundamente entediado em Paris, escreve para seu banqueiro para recolher um pouco de dinheiro, e parte para Londres - entusiasmado com a possibilidade de ver Shakespeare, que ele idolatra, nos palcos "originais". 

2) Como acontece com frequência nos escritos de Stendhal - em qualquer uma das cidades em que ele está -, alguém organiza uma excursão a um prostíbulo: o que faz a descrição da excursão londrina particularmente interessante é o possível "perigo de morte" envolvido na operação (um momento das memórias de Stendhal que faz pensar naquilo que Sebald, muito a partir de Stendhal, faz em Vertigem - aliás, depois de Vertigem, é difícil - para mim - ler Stendhal sem pensar em Sebald e nos temas de Stendhal selecionados e reconfigurados por Sebald).

3) Stendhal diz que as "meninas" moravam em um bairro perdido da cidade, "Westminster Road", o lugar perfeito para que "quatro marinheiros pudessem espancar um pouco alguns franceses". "Dois ou três ingleses" tentaram avisar que provavelmente era uma armadilha - "sabe que vão levar vocês uma légua distante de Londres?". Mas é evidente que parte da graça estava justamente no perigo: a carroça atravessa a ponte, a via fica estreita, as casas somem e assim por diante. "Não fosse o tédio do dia anterior, sem espetáculos, não teria ido", escreve Stendhal, e acrescenta, já diante da casa: "sem a ideia do perigo, não teria entrado". No fim, nada aconteceu; a noite passou como esperado. 

domingo, 2 de março de 2025

Mandrione



1) Muitas vezes eu penso no escritor que Juan Rodolfo Wilcock poderia ter sido e não foi: esse tipo de exercício mental não acarreta apenas uma lamentação do tipo "gostaria que ele tivesse abordado tais e tais temas", mas também um exercício de segundo grau que leva à reflexão sobre as razões que levaram Wilcock a escrever do jeito que escreveu, selecionando os temas que selecionou e assim por diante (um escritor imaginativo ao extremo, que muitas vezes chegava a tocar o surrealismo, o absurdo, o grotesco, o delirante, algo que, de resto, se relaciona diretamente com seu talento fora do comum para os idiomas: para exercitar essa capacidade, é natural que Wilcock se direcione para os excessos semânticos e sintáticos, e não tanto para o registro "documental" ou "etnográfico").

2) Nos anos 1970, Wilcock viveu em Roma, no número 54 da via Demetriade, de frente para as tumbas da via Latina, hoje no interior do parque arqueológico da Appia Antica. Wilcock caminhou exaustivamente pelas ruelas mais escondidas de Roma, experiência citadina que, nos romances (especialmente em I due allegri indiani), é transformada pela já referida perspectiva surrealista típica do autor (em textos para jornais, contudo, Wilcock é mais direto: chega a falar dos precários barracos de lata montados ao longo do Acquedotto Felice). Quando vejo as fotografias de Franco Pinna no vicolo del Mandrione vejo uma espécie de mundo paralelo, documental/etnográfico, àquele mundo de Wilcock (as fotografias de Pinna são de 1956, um ano antes de Wilcock se mudar definitivamente para a Itália; Pinna e Wilcock morreram no mesmo ano, 1978).

3) Na sua coluna na revista Vie Nuove, em maio de 1958, Pasolini escreve: "Lembro um dia, dirigindo pelo Mandrione com dois amigos de Bolonha, fiquei consternado com a visão de algumas crianças brincando na lama imunda. Estavam vestidos com trapos; corriam para lá e para cá, sem as regras de nenhum jogo: moviam-se, agitavam-se como cegos, naqueles poucos metros quadrados onde nasceram e onde sempre permaneceram, sem conhecer mais nada do mundo, exceto a casinha onde dormiam […] A vitalidade pura que está na base dessas almas significa uma mistura de puro mal e puro bem: violência e bondade, maldade e inocência, apesar de tudo".

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Corpo e sociedade


Em seu livro dedicado aos primeiros séculos da Era Comum (Corpo e sociedade: o homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo), Peter Brown retoma e comenta uma série de textos e proposições dos primeiros bispos da Igreja Católica, entre eles Ambrósio de Milão, mestre de Santo Agostinho, que impressionou este último com sua capacidade de ler em silêncio. Na discussão sobre Ambrósio, chamou minha atenção o modo como Brown enfatiza sua preocupação com os limites e as fronteiras: a mentalidade de Ambrósio, argumenta Brown, é organizada a partir de contraposições muito nítidas que devem permanecer nítidas e demarcadas: santidade x pecado, virgindade x concupiscência, Igreja x Mundo, homem x mulher, e assim por diante. Vivendo em Milão, fronteira por excelência, em fins do século IV, para Ambrósio a discussão sobre os limites era uma forma de falar, simultaneamente, dos corpos dos fiéis, da relação entre Igreja e Estado e da posição dos funcionários eclesiásticos no interior da máquina imperial. Em Ambrósio está a semente da defesa dos dogmas, algo que ficará ainda mais dramático com as "invasões bárbaras" que já se anunciavam: justamente porque as fronteiras do mundo real estão sendo atacadas, é necessário vigiar e proteger as fronteiras internas com ainda mais rigor.

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Não sei até que ponto Borges estava ciente dessa articulação entre virgindade cristã (especialmente feminina, por conta da Virgem Maria, que Ambrósio singularizava como modelo para todos, homens e mulheres) e fronteiras do Império quando escreveu seu conto "Historia del guerrero y la cautiva" (publicado em 1945 no livro El Aleph). O fato é que, no conto, os dois temas estão cruzados: de um lado a mulher, a cativa (que são duas, a avó de Borges e a mulher "de Yorkshire" que se "transformou" em índia), e de outro o bárbaro invasor das fronteiras, Droctulft, que também "se transforma", já que morre defendendo Roma (como conta Paulo, o Diácono, por meio de Benedetto Croce, citado por Borges logo no início do conto). É digno de nota também que Borges faça o cruzamento das histórias também a partir da linguagem, do idioma: o bárbaro que se transforma em civilizado defendendo Ravena recebe, depois de morto, um epitáfio em latim que, provavelmente, não conseguiria entender; a avó de Borges, por sua vez, conversa em inglês com a mulher transformada em índia, que acessa o idioma com dificuldade por conta dos quinze anos que permaneceu sem uso (é a mulher quem indica a um soldado que deseja falar com a avó de Borges).