domingo, 9 de novembro de 2025

O convite



1) Lendo o livro de Alain Robbe-Grillet, Os últimos dias de Corinto, encontro uma passagem sobre Barthes (o objetivo de Robbe-Grillet é, também, o de acessar o registro autobiográfico, mesclando com ficção), que transcrevi aqui. O que me chama a atenção é, em primeiro lugar, esse dia único, irrepetível: a inauguração de Barthes do Collège de France, a primeira vez que jamais poderá ocorrer de novo; em segundo lugar, me chama a atenção o modo como Robbe-Grillet indica certa infelicidade permanente de Barthes - "uma das raras vezes em que veria Roland feliz e descontraído, livre da competição que lhe pesava como uma montanha".

2) Pesquisando sobre essa aula inaugural de Barthes, encontro, por acaso, uma foto de um dos convites - mas não é qualquer convite, aparentemente se trata do convite enviado a Julia Kristeva. A foto está em um perfil de instagram, "better_read_than_dead_bk" (uma postagem de 10 de julho de 2025; escrevem, entre outras coisas: "Proud to finally frame my very first (2017?) in this stolen Walmart frame — Julia Kristeva’s invitation to the invite-only inaugural lecture by Barthes at what would prove to be his last ever position at the Collège de France. Not for sale, although I have spent many weeks thinking someone stole it over the last many years when I couldn’t find it. (i.e. many weeks thinking, “I should have just sold that”)"), aparentemente um sebo localizado no Brooklyn, em Nova York ("ex-867 Broadway", agora "Greene Ave Garage (by appointment or chance)"), e o texto do convite diz: "Roland Barthes vous prie de lui faire l'honneur d'assister le vendredi 7 janvier 1977, à 17h30, dans la Salle 8 du Collège de France, à la leçon inaugurale de sa chaire: 'Sémiologie Littéraire'". 

3) Nos comentários da postagem, surge um usuário que diz ter comprado o livro dentro do qual estava o convite enviado a Julia Kristeva; usuário "ptsdboy" escreve: "and it was found in the book which i bought! (Annette Michelson’s copy of Mythologies)"; ninguém responde ao comentário, corroborando ou não a informação, de modo que existe, portanto, essa possibilidade: o convite de Julia Kristeva, por alguma razão, foi parar nas mãos de Annette Michelson (1922-2018), que o colocou dentro de um exemplar de Mitologias, livro de Barthes (não fica claro se uma edição em francês ou inglês). (Michelson e Kristeva provavelmente se conheceram nos EUA, quando a segunda chegou em Columbia como professora visitante no início dos anos 1970).

sábado, 1 de novembro de 2025

Um perverso



"Lembro-me da noite inaugural, no Collège de France, para a primeira aula de Roland Barthes. Depois da sessão, havia uma festa alegre na casa de seu amigo marroquino. Foi uma das raras vezes em que veria Roland feliz e descontraído, livre da competição que lhe pesava como uma montanha. Os convidados eram na maioria seus jovens discípulos, com algumas raras moças, mas se encontram ali também cinco ou seis antigos companheiros: Genette, Foucault, Deleuze e eu mesmo. Depois de abundantes libações, a atmosfera tornando-se mais terna e acariciante, digo a Barthes que estava na minha hora de partir, dadas as minhas preferências bastante restritas nesse campo.

Michel Foucault, que não bebia jamais uma gota de álcool e tornava-se, com a idade, cada vez mais intolerante em relação aos heterossexuais, adotando seu ar de aiatolá, guardião da lei divina, lança-me bem alto: 'Eu te disse e repito, Alain: sexualmente, tu vives e sempre viveste no erro!'. Claro, havia sarcasmo no brilho dos seus olhos de filósofo passional, mas a condenação parecia contudo tão evidente que Roland, encarnação da tolerância, sobretudo naquela noite, protege-me do juiz, passando o braço em torno dos meus ombros, e propõe em minha defesa: 'Apesar de tudo, é um perverso...' - 'Isso não basta!', decide Foucault com violência"

(Alain Robbe-Grillet, Os últimos dias de Corinto, trad. Juremir Machado da Silva, Sulina, 1997, p. 207-208)

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

O Nobel de Simon


"Leciono na Universidade de Nova Iorque durante o outono de 1985, quando recebo uma chamada telefônica de Paris-Match anunciando-me o Nobel de Simon. Pulo de alegria. A carreira internacional de nosso amigo arrasta-se um pouco por causa das dificuldades estilísticas encontradas por seus tradutores. O prêmio sueco permitirá enfim o impulso que esperávamos. (...) 

Meu jornalista parisiense declara então: posto que isso lhe dá tanto prazer, escreva um artigo para Match. Recuo prontamente, como de hábito: não sei fazer esse gênero de trabalho, não escrevo com facilidade, precisaria de tempo, corro risco de não ser entendido pelo grande público... O outro interrompe minhas justificativas: 'Eis, diz, a situação: um artigo bastante desfavorável, idiota e injurioso deve ser publicado por nós. Só será possível evitar isso se eu conseguir com rapidez outro texto, assinado por um escritor conhecido, pertencendo à mesma escola, etc'

Pergunto qual seria o prazo de entrega. Terei de ditar, por telefone, cinco páginas até a manhã da próxima segunda-feira. Estamos no fim de semana. E não se trata, acrescenta meu interlocutor, de falar de formas ou de teorias literárias. O importante é contar anedotas pessoais mostrando o caráter do homem, sua simplicidade, gentileza, os imprevistos de seu destino... (...)

Relato, em particular, como encontrei Claude. (...) Jean-Edern pois me passa o manuscrito do Vento, que devia sair pela Calmann-Lévy. Li-o de uma só vez, no maior entusiasmo. Pedi para encontrar o autor do qual nada conheço. A entrevista acontece sem demora, na rua Bernard-Palissy, na sala de Jérôme Lindon, a quem entreguei imediatamente o belo texto e cuja opinião confirma a minha. 

Afirmamos em coro nossa admiração pelo quase desconhecido e deploramos que seus livros fossem publicados depois de certo tempo sob o selo de um editor que parece tão pouco adequado para eles. Simon alega que um contrato, porém, é um contrato. Falando então mais detalhadamente de seu romance, ponho-lhe a questão que me queima os lábios: por que, próximo ao fim da magnífica trama, levado por uma opaca onda tempestuosa, deve-se cair de tão alto para ler passagens explicativas, inúteis e enfadonhas, intercaladas como absurdos parapeitos no caminho do desfecho inelutável e tumultuoso? Claude Simon responde sem hesitar que esses capítulos foram acrescentados após, não pertencendo, em seu entender, ao corpo do trabalho escrito, mas que é obrigado (para acalmar Calmann) a racionalizar um pouco a sua narrativa no final; sem isso, o livro seria recusado. (...)

O Vento sai portanto pela Minuit, evidentemente sem as sequências normalizadoras, que não tinham mais nenhuma razão de ser... E meu artigo sai em Match... Recebo de imediato um telefonema severo e desconcertado de Lindon: Claude está furioso por essa história ter sido contada e quer enviar à revista um desmentido categórico, etc. (...)

Jérôme Lindon consegue, não sem dificuldades, aliviar a comichão de Claude. E não ouço mais falar do caso. Durante dois anos, não mais encontro meu irascível colega. (...) Um grande almoço da NYU, organizado em Paris por Bishop, nos reúne enfim de novo. Desde de sua entrada, atiro-me sobre Claude para acolhê-lo de braços abertos, sem rancor. Ele quer se desviar, parece hesitar em reconhecer-me; depois, fingindo subitamente me identificar: 'Ah, sim! O autor do Vento?', como se eu me tivesse gabado de ser o verdadeiro pai de seu livro!

Eu estava naquele momento em companhia de Nathalie Sarraute, a quem tive de explicar a origem da alfinetada e por que Simon tinha-me em seguida tão cordialmente voltado as costas. Com seu tom suave, e o esboço de sorriso do qual nunca se sabe se é de uma maldade espantosa ou muito indulgente, Nathalie respondeu-me que, sem nenhuma dúvida, nosso confrade ruminava a sua frase há dois anos"

(Alain Robbe-Grillet, Os últimos dias de Corinto, trad. Juremir Machado da Silva, Sulina, 1997, p. 92-95)

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Ciência da mediação


"O psicanalista Jacques Lacan coloca o imaginário, o simbólico e o real como as três ordens distintas, mas interdependentes da experiência psíquica. Elas reenquadram a topografia freudiana de eu, supereu e isso, respectivamente, elucidando que os domínios do sujeito também são reinos objetivos do social. O imaginário é o registro de imagens, identificações, inteirezas e projeções; o simbólico é o registro de linguagem, instituições, leis, práticas e ordem; o real é o registro daquilo que catalisa o imaginário e escapa ao simbólico - o impossível, o não representável, o material, o contraditório ou desprovido de sentido. 

Em certo sentido, esses registros descrevem o desenvolvimento psíquico: uma experiência infantil de incorporação e reciprocidade umbilical (imaginário) amadurece nas mediações da linguagem (simbólico), ao passo que essa progressão também efetua retroativamente um indício de algo inacessível e indizível (real). Em outro sentido, no entanto, a sobreposição e subposição simultâneas desses três é fundamental, visto que o sujeito do inconsciente é variado, divergente, nunca é inteira e diretamente ele mesmo.

Tanto por meio desse modelo de desenvolvimento quanto por meio desse modelo estrutural, a psicanálise habilita uma ciência da mediação sem precedentes: um estudo de como linguagem e normas informam desejos; de como desejos só conseguem se tornar legíveis nas distorções de parapraxias, sonhos, trapalhadas e sintomas; de como o eu não é autoevidente, sendo, pelo contrário, produto de relações sociais"

(Anna Kornbluh, Imediatez: ou o estilo do capitalismo tardio demais, trad. Nélio Schneider, São Paulo, Boitempo, 2025, p. 69-70)

domingo, 26 de outubro de 2025

Josef Egelhofer



1) Voltando a Campo Santo, durante a releitura, me ocorreu que esse texto tardio sobre a morte, para Sebald, poderia ser também uma forma de reconfigurar e evocar antigos pontos de ancoragem de sua poética - e, no caso da morte, um ponto de ancoragem por excelência é a sua relação com o avô, Josef Egelhofer, que morre em 1956, mesmo ano da morte de Robert Walser. Foi com o avô que Sebald, criança, aprendeu sobre o gosto pela caminhada, pela natureza, pela identificação de plantas e árvores, pela contemplação de uma forma geral.

2) No quinto ensaio de seu livro Logis in einem Landhaus, Sebald comenta diretamente a conexão entre seu avó e Walser: o subtítulo do ensaio o qualifica como uma "lembrança" ("erinnerung", em alemão), falando de Walser como uma personificação de seu avô em maneiras e aparência; Sebald mostra fotografias de seu avô (com o pequeno Sebald segurando sua mão) para mostrar a proximidade na aparência; após resumir as semelhanças entre os dois homens, Sebald passa a formular uma série de perguntas que estão no cerne de toda a sua obra como escritor:

Qual é o significado dessas semelhanças, sobreposições e coincidências? Serão elas rebuscamentos de memória, delírios do eu e dos sentidos, ou, melhor, esquemas e sintomas de uma ordem subjacente ao caos das relações humanas, aplicável igualmente aos vivos e aos mortos, que está além da nossa compreensão?

3) Na releitura de Campo Santo, portanto, o retorno do avô é forçosamente notado: "Recordo muito bem como, criança ainda, deparei pela primeira vez com um caixão aberto e tive a sensação surda no peito de que o avô ali colocado sobre palha de madeira sofrera uma injustiça vexaminosa, a qual nenhum de nós, os sobreviventes, seríamos capazes de vingar. E agora há um bom tempo também sei que, quanto mais a pessoa carrega o peso da tristeza imposto ao ser humano, muito provavelmente, não sem motivo, não importa por que razão, mais chance ela terá de encontrar esses fantasmas" (Sebald, Campo Santo, trad. Kristina Michahelles, Cia das Letras, 2021, p. 35). 

segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Excessos


"O ponto comum que une Jorge Luis Borges a Manuel Puig é o fascínio pelos escombros da erudição na periferia do ocidente. (E também a opção ideológica pelo antiperonismo, mas essa é uma discussão que escapa às dimensões deste artigo.) No caso de Borges, fascínio pelo entulho da erudição de fundo europeu e, no caso de Puig, pelo entulho da produção cultural de fundo basicamente norte-americano e hispano-americano. 

Estou referindo-me a um traço sobressalente na crítica irônica e desdenhosa que a literatura dos dois faz à reflexão intelectual do latino-americano, sempre pontuada pelo gosto da novidade e pelo excesso de erudição, como já descobria Claude Lévi-Strauss ao chegar em 1934 a São Paulo. Nós, latino-americanos, temos mais leituras e leituras mais vastas do que os pesquisadores do chamado primeiro mundo, mas nossa erudição livresca tem pouco contato com os problemas imediatos da nação, apresentando-se como uma espécie de excesso inútil, semelhante ao da lantejoula, cujos escombros são a marca original dos textos de Borges e de Puig" (...)

"Manuel Puig é o primeiro grande autor latino-americano que trabalha com a forma de escombro derivada do excesso de excesso da indústria cultural estadunidense e argentina, ou seja, com o quase lixo – filmes ultrasentimentais, radionovelas, tangos e boleros. Trabalha com a superabundância da mais gratuita das erudições juvenis, que é a proporcionada pelos produtos de quinta categoria que nos são exportados ou, à semelhança deles, produzidos por aqui. Da conjunção das ficções fantasiosas do bibliotecário Jorge Luis Borges e dos excessos sobre o excesso do cinéfilo Manuel Puig é que foi surgindo, a partir dos anos 1980, uma nova geração de escritores latino-americanos, que na falta de outro nome chamaríamos de os mistificadores, cujo melhor exemplo na Argentina é Ricardo Piglia"

Silviano Santiago, "Manuel Puig: a atualidade do precursor", aqui.

terça-feira, 14 de outubro de 2025

A arte da levitação



1) Logo no início de "Campo Santo", o texto que dá título ao livro de mesmo nome - projeto que Sebald abandonou para escrever Austerlitz, e que não conseguiu retomar por conta de sua morte em 2001 -, o narrador de Sebald chega finalmente ao cemitério da pequena cidade (Piana, na Córsega), depois de uma aventura por "caminhos tortuosos": ele escreve que precisou de "uma boa hora e meia" para chegar até lá e, "como quem domina a arte da levitação", caminha "quase sem gravidade entre as casas e os jardins", ao longo do muro que demarca o terreno "em que os moradores do lugarejo enterram seus mortos".

2) Depois dessas imagens do ar e da suspensão, o narrador de Sebald, abruptamente, se lança à terra das tumbas, a aterragem por excelência, uma vez que os mortos estão ali para sempre. Não apenas isso, já que essa aterragem inicial é enfatizada pela observação de que as tumbas estão afundando: "muitos dos túmulos que cobrem o morro seco já afundaram no solo e foram parcialmente sobrepostos por outros, acrescentados depois". É nesse contraste entre o etéreo e o material que se inscreve a poética de Sebald de uma forma geral - e um dos tantos pontos que ele desenvolve a partir de Walser.

3) Robert Walser publica em 1913 o conto Ballonfahrt, "Viagem de balão". Num primeiro momento, a viagem de balão e o deslocamento aéreo não combinam com aquilo que Walser mostrava em sua vida e em sua poética - se há movimentação em Walser, ela é quase que exclusivamente pedestre, no rastro de Rousseau e dos andarilhos medievais. Em um dos ensaios de seu livro Logis in einem Landhaus, Sebald ressalta justamente esse aparente paradoxo, argumentando que é nesse momento de exceção que Walser mais se revela: "o único momento em que vejo o viajante Robert Walser livre do peso de sua consciência é nessa viagem de balão".