segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Vida dupla

1) É possível pensar que a fascinação de Georges Perec por Ellis Island - seu interesse, sua curiosidade - tenha relação com a infância, com sua infância (a infância como dimensão do desconhecido, do irrecuperável). Daí também a possibilidade de contato entre Perec e Meyer Schapiro por meio da Ellis Island, uma vez que para Schapiro a ligação entre infância e a ilha é direta. No caso de Perec, contudo, é preciso visitar sua autobiografia ficcional, W ou le souvenir d'enfance, publicada em 1975 (poucos anos antes da realização do documentário sobre a ilha, o que poderia levar à hipótese de W como trabalho prévio, como preparação do terreno para o documentário; ou ainda, considerar o documentário como uma continuação de W por outras vias, para além do autobiográfico).
2) A infância sempre parece um continente inexplorado para quem dela se aproxima. A infância é o momento de experimentação com a linguagem por excelência, uma etapa da vida na qual se toma liberdade diante das regras da língua – algo que pode ser tanto construtivo quanto destrutivo. A ideia está em Walter Benjamin, na junção de sua permanente preocupação com as origens da linguagem - e da vida, daí a infância - e aquilo que chamou "caráter destrutivo", uma espécie de pulsão que percorre todo trabalho criativo. O brinquedo, a tradução, a língua original, a alegoria, a imagem, a citação - aglutinações sensíveis temporárias de um mesmo fenômeno (é o que Giorgio Agamben retoma quando fala em infância e história).
3) O que é a infância de Jesus, segundo Coetzee? Um exercício em torno dessa constatação do duplo pertencimento infância x linguagem, decorrente de outro, destruição x construção. Não só A infância de Jesus, mas também A vida escolar de Jesus - reflexões de Coetzee, a partir tanto de Cervantes quanto de Dostoiévski, acerca da literatura como laboratório único na contemporaneidade de reflexão sobre a linguagem não-utilitária, a linguagem como jogo, como possibilidade de implosão do automatismo cotidiano (a infância como permanente emergência do caráter destrutivo). Por que Perec dá o nome W ao seu livro? Por causa do trocadilho, do jogo com a língua, double vé/vie, vida dupla, duplo registro, construir e destruir, seguir e retornar, simultaneamente. 

segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

Errância, esperança

1) Meyer Schapiro nasceu no que hoje é a Lituânia, em 1904. Seu pai foi para Nova York em 1906 para trabalhar. Uma vez estabelecido, chamou a família no ano seguinte. Na Ellis Island, essa fábrica de homogeneização e simplificação de significantes, seu nome foi mudado de Meir para Meyer. Schapiro morreu em 1996, com 91 anos. Ele morreu na casa em Greenwich Village na qual morava desde 1933. 
2) Em 1979, Georges Perec escreve o roteiro - ou talvez algo mais solto do que a palavra "roteiro" pode sugerir - do documentário que receberá o título Récits d'Ellis Island: histoires d'errance et d'espoir (transmitido pela televisão francesa pela primeira vez em novembro de 1980). Perec faz o comentário que se ouve na primeira parte e também conduz as entrevistas apresentadas na segunda parte. 
3) O filme é dirigido por Robert Bober, que foi assistente de Truffaut em seus três primeiros filmes. O documentário feito com Perec é dividido em duas partes: a primeira, chamada Traces, fala do controle migratório na ilha de 1892 a 1924. A segunda parte, Mémoire, é o registro de testemunhos e depoimentos dados por imigrantes judeus e italianos que entraram nos Estados Unidos por Ellis Island. Uma oportunidade perdida: ver Georges Perec entrevistando Meyer Schapiro em Nova York, em 1979.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

31 de maio de 1935

A fantástica carta que Walter Benjamin escreve a Adorno em 31 de maio de 1935. Escreve de Paris, de seu quarto no Hotel Floridor, que ainda existe, no número 28 da Place Denfert-Rochereau. Benjamin está falando do seu trabalho, como normalmente faz, mas agora fala especificamente do Livro das Passagens, fala das referências que o levaram até esse projeto (que o ocupa desde 1927). É digno de nota também o aparecimento de Brecht, sempre um ponto de controvérsia entre Benjamin e Adorno (você "veria como uma verdadeira desventura se Brecht passasse a exercer alguma influência sobre esse trabalho", escreve Benjamin). Da longa carta talvez o que mais me impressiona, hoje, relendo-a, é essa cena de leitura de Benjamin diante de Louis Aragon e de seu O camponês de Paris: "do qual nunca pude ler mais que duas ou três páginas na cama sem que meu coração começasse a bater tão forte que eu precisasse pôr o livro de lado. Que advertência! Que indício dos anos e anos que haveriam de escoar-se entre mim e tal leitura. E no entanto meus primeiros esboços para as Passagens datam dessa época". (Correspondência 1928-1940 Adorno-Benjamin, trad. José Marcos Mariani de Macedo, UNESP, 2012, p. 155). 

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Criaturas

1) Franco Rella - no livro Dall'esilio, de 2004 - fala de uma "pietas creaturale" em Lucien Freud, uma exposição do corpo e da carne que oscila entre o fascínio e a repulsa (algo que Rella também investiga na obra de Kafka e Proust, apontando momentos nos quais o corpo e a carne - especialmente feminina - são comparados a animais, vegetais, figuras intermediárias - em Proust, o exemplo mais paradigmático: À l’ombre des jeunes filles en fleurs). 
2) O capítulo no qual Rella fala da "pietas creaturale" chama-se La nuda vita, a "vida nua", e ainda que cite Agamben rapidamente em nota, no início, é um esforço de expansão de sua teoria em direção a alguns textos literários (Bataille, Kafka, Proust, Simenon, Louis Aragon). No uso de Rella, há uma diluição (ou expansão) dos sentidos possíveis da vida nua, que em Agamben indica casos específicos e extremos, como os refugiados e o Muselmann (a partir da leitura dos escritos de Primo Levi).
3) A junção entre a "vida nua" e a noção de "criatura", de "vida criatural", é proposta também por Eric Santner em livro de 2006, On Creaturely Life: Rilke, Benjamin, Sebald. Os pontos de contato entre os projetos de Rella e Santner são diversos, apesar dos estilos e métodos de investigação e referência bem diversos (mais ensaístico em Rella; mais acadêmico em Santner). Santner não recorre a Lucien Freud, mas recorre a Francis Bacon (um de seus retratos ilustra a capa da primeira edição). Santner estabelece Rilke - Elegias de Duíno - como ponto de partida, sua postulação do contato entre humano e animal a partir da categoria de "criatura", e daí em direção a Heidegger, Agamben, Foucault e, finalmente, Sebald (o uso dos corpos, a melancolia, a tentação do inorgânico).  

sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Faustianos, anti-faustianos

"O Goethe que, com uma coragem singular - como recorda Thomas Mann - acrescenta sua assinatura à condenação à morte de um infanticida, sabia bem qual sentido têm os sacrifícios humanos. E nesse sentido Thomas Mann tinha razão ao escrever sobre Goethe 'como representante da era burguesa'. Por acaso o Fausto não é obra de um poeta faustiano? No instante em que lhe contrapomos os anti-faustianos Os demônios ou Os irmãos Karamazov, acabamos nos dando conta que a noção de 'grandeza' se deforma em nossas mãos a ponto de nos tornar incapazes de estendê-la. É verdadeiramente um problema de desmitologização. Trata-se de encontrar uma saída do beco dos grandes sacrificadores ou das grandes vítimas: e, para encontrar saída, não bastam os grandes sábios, uma vez que a história nos ensina o quão breve é a passagem da gnose ao maniqueísmo"

(Furio Jesi, Spartakus: simbologia da revolta, trad. Vinicius Honesko, SP: n-1, 2018, p. 122-123)

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Morte do inquisidor

1) Li recentemente mais um dos tantos livrinhos de Leonardo Sciascia - Morte dell'Inquisitore, de 1964. Mais um dos livrinho híbridos de Sciascia, "saggio romanzato", entre a crônica, o conto e a historiografia. Em muitos desses seus livrinhos, Sciascia parece fazer sempre a mesma coisa, sempre do mesmo jeito, mas é algo que funciona sempre. O narrador tem um estilo conciso e ao mesmo tempo opinativo, busca mostrar uma série de perspectivas de um mesmo evento ou biografia, e ainda assim encontra espaço para se manifestar, para estabelecer sua posição.
2) Em Morte dell'Inquisitore, Sciascia usa a história de Diego La Matina para abordar a Inquisição em sua atuação na Sicília. La Matina matou seu inquisidor com um golpe na cabeça, desferido com o auxílio de seus próprios grilhões. Sciascia, em sua narração, entra e sai de arquivos, documentos, ofícios e diários de personagens os mais diversos, desde o século XVII até o XX (no primeiro caso, personagens históricos envolvidos na dominação espanhola da Sicília; no segundo caso, historiadores da Inquisição de variadas nacionalidades - na nota que encerra o livro, Sciascia escreve: "já devo ter lido tudo que há para ler sobre a Inquisição na Sicília").
3) A partir de um destino individual muito preciso, de um acontecimento mínimo na vida já mínima de uma das tantas vítimas da Inquisição - algo que Carlo Ginzburg começa a fazer mais ou menos nos mesmos anos (seu primeiro livro, I benandanti, é de 1966), Sciascia apresenta um ensaio sobre a intolerância humana e também sua capacidade de resistência; um ensaio sobre os limites tanto do fanatismo quanto do desejo de liberdade. Sciascia sempre cita os iluministas em seus livros - Voltaire, Rousseau, D'Alembert -, um exercício de resgate que Sciascia opera também no nível das ideias e dos temas que escolhe (uma postura que vem de Montaigne, outro que é citado com frequência por Sciascia, seu continuador tanto na esfera de influência imediata do ensaio, saggio romanzato, mas também por conta de seu fascínio pelos extremos do humano, as situações de exceção - tanto aqueles de brutalidade quanto de elevação espiritual). 

sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Tipos de caráter

As últimas cartas trocadas por Cortázar e Alejandra Pizarnik mostram uma espécie de cabo de guerra, de disputa de um campo que, aparentemente, se mostra heterogêneo mas que, tendo em vista a conclusão da batalha, guardava em si uma fronteira muito nítida: a fronteira entre vida e morte. Apesar das palavras de Cortázar (yo te quiero viva, burra, y date cuenta que te estoy hablando del lenguaje mismo del cariño y la confianza), ou talvez justamente por conta delas, a escolha de Pizarnik a levou ao extremo oposto do campo disputado. Sabendo da relação que ela mantinha com a psicanálise, é possível relembrar a frase de Freud em Alguns tipos de caráter encontrados na prática psicanalítica, de 1916: às vezes, a culpa precede e prepara o crime.
*
Parte do sentimento que ocorre àqueles que ficam depois do suicídio de um amigo está registrado por Natalia Ginzburg em um dos ensaios/relatos de seu livro As pequenas virtudes. Trata de Cesare Pavese, embora seu nome não seja citado (mas seus poemas sim). Pavese morreu em 1950; Pizarnik em 1972. Natalia Ginzburg fala do jeito afastado do amigo, das vezes em que aparecia na sua casa, sentava em uma poltrona e lá ficava, mudo, sem responder às perguntas, até sair de repente, bufando, entediado. Ela escreve do amigo: "Dizia já conhecer sua arte tão a fundo que ela não lhe oferecia mais nenhum segredo: e, não lhe oferecendo mais segredos, não o interessava mais. Ele nos dizia que até nós, seus amigos, já não tínhamos segredos para ele, e que o entediávamos infinitamente; e nós, mortificados por entediá-lo, não conseguíamos dizer que víamos muito bem onde é que ele errava: em não querer dobrar-se e amar o curso cotidiano da existência, que prossegue uniforme e aparentemente sem segredos" (Natalia Ginzburg, "Retrato de um amigo", As pequenas virtudes, trad. Mauricio Santana Dias, Cosac Naify, 2015, p. 31).  

domingo, 25 de novembro de 2018

Werther, Tolstói

Toda a nossa arte consiste em conseguir (ter tempo de) contrapor a cada resposta que ainda não desvaneceu nossa pergunta. Justamente esse saltar das respostas por cima de nós é a inspiração. E quantas vezes ela é uma folha em branco!
Alguém lê Werther e se dá um tiro. Outro alguém lê e porque Werther se mata com um tiro resolve viver. Um agiu como o personagem, outro como Goethe. Lição de suicídio? Lição de autodefesa? Tanto uma como outra. Devido a certa lei de sua vida, Goethe tinha que atirar em Werther, o daimon suicida de uma geração tinha que ser encarnado pela mão do próprio Goethe.

(...)

No apelo de Tolstói para suprimir a arte, são importantes os lábios que o pronunciam: se não tivesse vindo de tão estonteante altura artística, se a chamar-nos tivesse sido qualquer um entre nós, nem teríamos voltado a cabeça.
Na luta de Tolstói contra a arte, o que importa é Tolstói, o artista. Ao artista perdoamos o sapateiro (sabe-se que Tolstói fabricava seus próprios sapatos - N. T.). Guerra e paz não pode ser apagada de nosso comportamento. É indelével. É irremediável. Com o artista consagramos o sapateiro. O que nos seduz na luta de Tolstói contra a arte é, mais uma vez, a arte.

(Marina Tsvetáeva, O poeta e o tempo, trad. Aurora Bernardini, Âyiné, 2017, p. 139; 142)

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Tradutores


Dostoiévski, tradutor de Balzac (Eugénie Grandet, 1844)

Baudelaire, tradutor de Edgar Allan Poe (Histoires extraordinaires, 1852)

Freud, tradutor de Charcot (Lições de terça-feira, 1888, 1894)

Auerbach, tradutor de Vico (Die neue Wissenschaft über die gemeinschaftliche Natur der Völker, 1924)

Samuel Beckett, tradutor de James Joyce (Anna Livia Plurabelle para o francês, 1931)

Borges, tradutor de Faulkner (Las palmeras salvajes, 1940)

Martin Heidegger, tradutor de Heráclito (Heráclito, 1943-1944)

Roger Caillois, tradutor de Borges (Fictions, 1951)

Derrida, tradutor de Edmund Husserl (A origem da geometria, 1962)

Vladimir Nabokov, tradutor de Púchkin (Eugene Onegin, 1965)

Sergio Pitol, tradutor de Gombrowicz (Cosmos, 1969)

Edward Said, tradutor de Auerbach (Philology and "Weltliteratur", 1969)

Juan Rodolfo Wilcock, tradutor de William Carlos Williams (Nelle vene dell’America, 1969)

Sergio Pitol, tradutor de Joseph Conrad (El corazón de las tinieblas, 1974)

Antonio Tabucchi, tradutor de Fernando Pessoa (Una sola moltitudine, 1979)

Danilo Kiš, tradutor de Raymond Queneau (Stilske Vežbe, 1986 - Exercícios de estilo).

César Aira, tradutor de Jan Potocki (Manuscrito encontrado en Zaragoza, 2001)

terça-feira, 30 de outubro de 2018

Coetzee, Jesus

1) A princípio, A infância de Jesus, romance que Coetzee lança em 2013, surge como um enigma, ou mesmo uma estranheza. Comparado com o resto da obra - ao menos a obra mais conhecida e celebrada de Coetzee, Desonra ou Michael K. - o romance parece recusar a referencialidade histórica, dificulta a definição de seus temas ou propósitos (um livro como O mestre de Petersburgo, por exemplo, declara de forma nítida seus propósitos: revisitar um período muito específico da vida de Dostoiévski, dando conta dos fatos que teriam gerado a escrita de Os demônios).
2) Mas A infância de Jesus compartilha uma série de elementos com outros romances de Coetzee (e a aproximação ajuda a suavizar a estranheza do contato com o livro mais recente). Em primeiro lugar, chama a atenção como o narrador chama Simón (protagonista? acompanhante de "Jesus"?) de "ele", um "ele" que é ao mesmo tempo distanciado e próximo, compartilhando por vezes pontos de vista e sensações (um "ele" que já está na trilogia autobiográfica de Coetzee, Boyhood, Youth e Summertime). Parte do tom filosófico já está no Diário de um ano ruim; parte do cenário indistinto (futurista? distópico?) já está em À espera dos bárbaros; a aproximação verticalizada do destino e desenvolvimento de uma criança já está em Michael K, apenas com o signo invertido (de um lado a vítima, do outro, o "messias").
3) Se há uma referência literária a guiar a narrativa em A infância de Jesus ela certamente é Cervantes (como foi Dostoiévski no romance citado; como foi Daniel Defoe em Foe; como Dante em Age of Iron). O menino David (nunca fica clara sua associação com o "Jesus" do título) aprende a ler com Dom Quixote, e mais do que isso: usa o Quixote como modelo de imaginação e performance diante do mundo; usa a fissura entre palavra e imagem na sua edição do livro para mostrar seu próprio distanciamento do mundo e de suas regras (o trecho dos moinhos e dos gigantes: a imagem mostra o moinho, mas David sabe que é um gigante, pois é o que Cervantes diz). Além disso, todo o esforço de Simón para alfabetizar David evoca vivamente os esforços de Susan Barton para alfabetizar Sexta-Feira em Foe (e nos dois romances há o deslocamento pelo mar, a chegada em terra estrangeira e difícil convivência com as novas regras). 

quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Frieza, espírito geométrico

"Claude Lévi-Strauss foi lançado no meio intelectual nova-iorquino e, mais amplamente, norte-americano, alguns anos antes, por uma observadora sagaz e simpatizante da intelligentsia francesa, a romancista, ensaísta, militante, radical e feminista Susan Sontag, discípula de Simone de Beauvoir, que frequentou a Rive Gauche durante seus anos parisienses, em meados dos anos 1950. Em novembro de 1963, na badalada New York Review of Books, ela apresenta bombasticamente Lévi-Strauss como a última grande figura intelectual produzida por uma França que não é avara nesse aspecto. Segundo ela, ao contrário de Sartre, a quem é oposto em tudo, Lévi-Strauss se prenderia a uma tradição nacional que preconiza 'o culto da frieza e do espírito geométrico'. Numa manobra sedutora, mas falsa, ela o associa ao nouveau roman e ao modernismo literário, com o qual, sabemos, Lévi-Strauss tem poucas afinidades. No mesmo momento, no Times Literary Supplement, George Steiner troca a 'frieza' pela 'altivez' da empreitada lévi-straussiana e faz dele um 'moralista' no sentido do século XVII, o que ele peleja para traduzir para seu público anglo-saxão.

Eis então Lévi-Strauss transformado, no início dos anos 1960, e após um noivado por muito tempo adiado, num 'herói do seu tempo'. A despeito da dificuldade de seus escritos, a juventude estudantil está fascinada tanto pelo seu estilo de pensamento como por suas promessas. Como dirá Michel Foucault na epígrafe de As palavras e as coisas, 'o estruturalismo não é um método novo: ele é a consciência desperta e inquieta do saber moderno'. O frêmito de inquietude e a 'dúvida antropológica' a que Lévi-Strauss se referiu em sua aula inaugural promovem a disciplina ao status das que merecem uma vida dedicada a ela"

(Emmanuelle Loyer, Lévi-Strauss, trad. André Telles, Edições Sesc São Paulo, 2018, p. 435-436). 

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

A cama de Van Gogh

A casa de Goethe
"Deve-se reconhecer que os povos chamados primitivos souberam elaborar métodos racionais para inserir, sob seu duplo aspecto de contingência lógica e de turbulência afetiva, a irracionalidade na racionalidade. Os sistemas classificatórios permitem, então, integrar a história; mesmo e sobretudo aquela que se poderia acreditar rebelde ao sistema. Pois é preciso não se enganar: os mitos totêmicos que compungidamente narram incidentes fúteis e que se enternecem com os lugares conhecidos não lembram, no que se refere à história, senão a pequena, a dos mais apagados cronistas. As mesmas sociedades cuja organização social e regras de matrimônio requerem para sua interpretação o esforço dos matemáticos e cuja cosmologia espanta os filósofos não veem solução de continuidade entre as altas especulações às quais se entregam nesses domínios e uma história que não é a dos Burckhardt ou dos Spengler mas a dos Lenôtre e dos La Force. 

E nada se parece mais, em nossa civilização, com as peregrinações que os iniciados australianos fazem periodicamente aos lugares sagrados, conduzidos por seus sábios, que nossas visitas-conferências às casas de Goethe ou de Victor Hugo, cujos móveis nos inspiram emoções tão vivas quanto arbitrárias. Aliás, como para os churinga, o essencial não é que a cama de Van Gogh seja exatamente aquela onde se afirma que ele dormiu; tudo o que o visitante espera é que lha possam mostrar"

(Claude Lévi-Strauss, O pensamento selvagem, trad. Tânia Pellegrini, Papirus, p. 270-271).

*
Não é também o que busca Bruce Chatwin em seu Songlines, a aproximação dos sistemas de classificação, a aproximação das visões de mundo, quando observa justamente esses "iniciados australianos" em suas peregrinações através dos rastros dos cantos? Ou ainda, não é o que expõe Carlo Ginzburg quando fala de um "paradigma indiciário", de coleta, recolha e classificação, que possa associar o caçador/homem das cavernas aos detetives de Poe, Borges, Conan Doyle, Piglia, Walsh e Chesterton?

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Seis novos Estados

1) Em suas Memórias de um antissemita, Gregor von Rezzori fala de um mundo que é em parte aquele de Joseph Roth ou Freud, ou de escritores ainda posteriores, como Hermann Broch ("sou um filho de sonâmbulos", escreve von Rezzori quase no fim das Memórias - p. 369) e Döblin; mas como von Rezzori nasce em 1914, sua vivência do período entre-guerras é o da criança e do adolescente, soterrado pelos preconceitos que são passados de geração em geração em sua família. Von Rezzori cresce em mundo já dividido, mas que ainda celebra o passado - sua mentalidade em formação é colonizada pelo saudosismo e pela nostalgia de um período que ele não viveu diretamente, mas que o circunda de forma fantasmática (nas fotos, objetos, relatos repetitivos de familiares).
2) Mas tão forte quanto o período histórico vivido é a voz narrativa modelada para dar conta dos eventos - o narrador das Memórias é constante, vai e volta no tempo com humor, auto-ironia e profunda atenção aos detalhes. São incontáveis parentes, conhecidos, vizinhos, artistas que ele persegue para em seguida perder de vista:

"Ela já não mais vivia no mesmo mundo que elas, e as fronteiras de seis novos Estados as separavam, e logo ela também já não mais falava a mesma língua que elas, só acompanhava a vida daquelas pessoas amadas e cada vez mais distantes por meio da abstração das notícias que chegavam em cartas, que, no melhor dos casos, eram amparadas por fotografias, além de impressões gerais sobre as mudanças trazidas pelos novos tempos provindas de reportagens fotográficas em revistas ilustradas" (Gregor von Rezzori, Memórias de um antissemita, trad. Luis Krausz, todavia, 2018, p. 284).

3) O trecho acima, que dá conta da proliferação do Império depois da I Guerra Mundial, é interessante porque aproxima essa segmentação nacional e identitária de uma cultura de massas incipiente, que ocupará a tantos nesses mesmos anos (Benjamin, claro, mas também Warburg e Freud - como defende Jonathan Crary em Suspensões da percepção). Em primeiro lugar as cartas, por vezes acompanhadas de fotografias e, em um terceiro nível, recortes de revistas ilustradas. Forma-se aí o arquivo pessoal - feito de deslocamentos e traumas ao longo de gerações - que será central para a ficção de W. G. Sebald, por exemplo, que em todos os seus romances buscará rastrear esses resíduos - fotografias, recortes, diários, anotações, bilhetes, etc. 

sábado, 13 de outubro de 2018

Brecht, Karl Kraus

As notícias que chegavam da Alemanha era terríveis; eram informações de companheiros presos, fuzilados. Vinham também dados preocupantes a respeito de escritores e artistas que pareciam se resignar ou até mesmo conciliar com o regime.

Brecht se preocupava com a posição de Karl Kraus, importante ensaísta austríaco, que andava dizendo coisas que talvez indicassem tendências capitulacionistas. Escreveu, então, um poema no qual tentava refletir sobre as possíveis razões de Kraus, dando-lhes uma réplica. Admitiu que "a injustiça pode vencer, embora isso seja injustiça" [Das Unrecht kann siegen, obwohl es das Unrecht ist]. E descreveu a situação de 1934 em termos sombrios, mas não desesperados:

A opressão se senta à mesa e ataca a refeição
com mãos ensanguentadas,
mas aqueles de quem a comida foi roubada
não esquecem a sensação do pão na boca. E a fome
deles não desaparece
quando a palavra "fome" é proibida.

Era importante, naqueles anos, restabelecer a autoconfiança dos oprimidos e mobilizá-los para a resistência ativa à maré montante do nazifascismo.

*
(Leandro Konder, A poesia de Brecht e a história, Zahar, 1996, p. 49)

quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Pontos úmidos

1) É bem conhecida a relação da família Wittgenstein com o suicídio - três dos irmãos de Ludwig Wittgenstein cometeram suicídio e ele próprio sempre esteve próximo da ideia ao longo de sua vida. O suicídio estava na corrente sanguínea europeia nesses fins de XIX e inícios de XX (Otto Weininger, autor de Sexo e caráter, livro tão importante para Wittgenstein, se matou com um tiro em 1903, pouco depois de publicar o livro). 
2) Será que a semente está mesmo no Werther de Goethe e mesmo na declaração tardia do autor de que o romantismo carregava consigo uma doença? Esse bacilo da morte passa de metáfora a materialidade na Montanha mágica de Thomas Mann - outro autor seduzido pela ideia da morte - e todas as radiografias de caixas torácicas com "pontos úmidos". Em Joseph Roth, a morte aparece constantemente - suicídios, duelos, a guerra. Existe também em Roth a contínua elaboração desse peculiar costume dos oficiais do Exército do Império, ou seja, o costume da honra, da manutenção sempre tensa dessa honra tão frágil - qualquer arranhão deve levar a um duelo ou a um suicídio (e em muitos casos o evento é o mesmo). Em Roth, o próprio Império é um cadáver - uma ideia que será mais tarde reelaborada na ficção de Andrzej Kusniewicz.
3) Sebald, especialista na literatura austríaca do XIX e do XX, sempre retorna à morte como tema nos escritores do período (o exemplo paradigmático sendo Kafka - o caçador Gracchus, o suicida do Veredicto). Pegando ao acaso três livros de um desses autores, Arthur Schnitzler (1862-1931), a morte é recorrente: O tenente Gustl, por exemplo, é o monólogo interior de um oficial que é ofendido por um padeiro na saída do teatro e não vê outra alternativa que não o suicídio; Breve romance de sonho é recheado de comentários a notícias de jornal que relatam suicídios e mortes, sendo o clímax do romance o encontro do protagonista, Fridolin, com o cadáver de uma mulher no necrotério; O médico das termas, por fim, começa com o suicídio da irmã do protagonista, acontecimento abrupto e traumático que irá definir, em maior ou menor grau, todas as ações do médico ao longo do romance.   

domingo, 23 de setembro de 2018

Suspensos

"Em Expedição ao inverno, Appelfeld retrata a atmosfera de desorientação e desalento que antecede a chegada dos invasores nazistas à Bucovina. A negação veemente dos paradigmas da tradição judaica, de um lado, e a perda da cidadania austro-húngara e da possibilidade de continuidade da identidade cultural judaico-alemã, de outro, são, implicitamente, as responsáveis pela sensação de 'estar pairando no vazio' que acompanha os personagens desse romance, suspensos no tempo como balões de ar quente cujas chamas se extinguiram" (Luis Krausz, Ruínas recompostas, SP: Humanitas, 2013, p. 40).
*
Robert Walser publica em 1913 o conto Ballonfahrt, "Viagem de balão". Num primeiro momento, a viagem de balão e o deslocamento aéreo não combinam com aquilo que Walser mostrava em sua vida e em sua poética - se há movimentação em Walser, ela é quase que exclusivamente pedestre, no rastro de Rousseau e dos andarilhos medievais. Em um dos ensaios de seu livro Logis in einem Landhaus, Sebald ressalta esse aparente paradoxo, argumentando que é nesse momento de exceção que Walser mais se revela: "o único momento em que vejo o viajante Robert Walser livre do peso de sua consciência é nessa viagem de balão".
*
Na história de Walser, três pessoas estão no balão: "o capitão, um cavalheiro e uma jovem moça". O balão é uma "estranha casa", abaixo deles está "o abismo arredondado, pálido, escuro", as casas parecem "brinquedos inocentes", e as florestas "parecem cantar canções obscuras e antiquíssimas". O cavalheiro, que talvez seja uma versão de Walser, usa, "por um capricho", "um chapéu de plumas dos tempos da cavalaria medieval" (Absolutamente nada e outras histórias. Tradução de Sergio Tellaroli. São Paulo: Editora 34, 2014, p. 22-24).

sexta-feira, 7 de setembro de 2018

Literatura, linha curva

"Uma estátua de 'Amir Timur' substituiu o monumento a Karl Marx no centro de Tashkent; anteriormente condenado pelos marxistas como um déspota bárbaro, Timur ou Tamerlão de repente pareceu ter compreendido todas as formas da vida socioeconômica: nômade, agrícola, urbana. Passou-se a afirmar que fora não apenas um gênio militar, mas também um grande jogador de xadrez, e até mesmo o inventor de um jogo chamado Xadrez Perfeito, jogado em tabuleiro de cento e dez casas.
Fiquei particularmente intrigada com o Xadrez Perfeito, que me lembrou The knight's move [O movimento do cavalo], um livro do crítico formalista russo Víktor Chklóvski. Em The knight's move, Chklóvski propõe que a história da literatura procede não em linha reta, mas em linha curva, como o movimento em L do cavalo no xadrez. Os autores que influenciam um ao outro nem sempre são aqueles que se poderia esperar: 'o legado é transmitido não de pai para filho, mas de tio para sobrinho'. Além do mais, as próprias formas literárias crescem assimilando material externo ou extraliterário, mudando de rumo e formando novos ângulos" (Elif Batuman, Os possessos, trad. Luis Reyes Gil, Leya, 2012, p. 182).
*
Iuri Tinianov, outro formalista russo, dedica um ensaio inteiro ao problema da "evolução literária" e Ricardo Piglia dá a ele os créditos da filiação "tio-sobrinho" (que Elif Batuman liga a Chklóvski), em Respiração artificial: Alguien, un crítico ruso, el crítico ruso Iuri Tinianov, afirma que la literatura evoluciona de tío a sobrino (y no de padres a hijos) (p. 21 da edição Seix Barral). 

Victor Erlich, por sua vez, parece resolver a questão em seu livro Russian Formalism: History, Doctrine (Mouton, Haia, 1955, p. 260), citando o texto de Chklóvski no qual o crítico russo afirma: according to the law which, as far as I know, I was the first to formulate, in the history of art the legacy is transmitted not from father to son, but from uncle to nephew (Erlich cita de um livrinho publicado por Chklóvski em 1923, Literatura i kinematograf, já traduzido ao inglês; resta saber se a mesma ideia da filiação "tio-sobrinho" foi apresentada por Chklóvski nos dois livros, tanto o citado por Batuman (Knight’s Move) quanto o citado por Erlich).

domingo, 2 de setembro de 2018

Talvez cem, talvez mil

É a Lucie Delarue-Mardrus que devemos esta frase extraordinária: "Os orientais não tem nenhuma noção do Oriente. A noção de Oriente, somos nós, os ocidentais, nós, os rumis, que temos (Ouço os rumis, afinal bem numerosos, que não são patifes)". Para Sarah, esse trecho resume sozinho o orientalismo, o orientalismo como devaneio, o orientalismo como lamento, como exploração sempre decepcionada. De fato, os rumis se apropriaram do território do sonho, são eles que, depois dos contistas árabes clássicos, o exploram e o percorrem, e todas as viagens são uma confrontação com esse sonho.

Há até mesmo uma corrente fértil que se constrói sobre esse sonho, sem precisar viajar, cujo representante mais ilustre é com certeza Marcel Proust e seu Em busca do tempo perdido, coração simbólico do romance europeu: Proust faz das Mil e uma noites um de seus modelos - o livro da noite, o livro da luta contra a morte. Como Sherazade luta toda noite, depois do amor, contra a sentença que pesa sobre ela contando uma história ao sultão Shahryâr, Marcel Proust pega toda noite sua pena, muitas noites, diz ele, "talvez cem, talvez mil", para lutar contra o tempo. 

Mais de duzentas vezes na obra Proust faz alusão ao Oriente e às Noites, que ele conhece nas traduções de Galland (a da castidade da infância, a de Combray) e de Mardrus (a mais suspeita, mais erótica, da idade adulta) - ele tece o fio de ouro do maravilhoso árabe ao longo de todo seu imenso romance; Swann ouve um violino como um gênio que sai de uma lâmpada, uma sinfonia revela "todas as pedrarias das Mil e uma noites". Sem o Oriente (esse sonho em árabe, em persa e em turco, apátrida, que se chama Oriente), nada de Proust, nada de Em busca do tempo perdido

(Mathias Enard, Bússola, trad. Rosa Freire d'Aguiar, SP: todavia, 2018, p. 171-172). 

domingo, 26 de agosto de 2018

De que amanhã...

Elisabeth Roudinesco: Gostaria de saber o que pensa sobre a famosa injunção lançada por Adorno, e retomada de múltiplas maneiras, segundo a qual não se poderia "mais escrever poesia depois de Auschwitz"*?

Jacques Derrida: Ela me parece impossível e inaceitável. Não apenas pode-se escrever, isto é um fato, mas talvez seja preciso escrever. Não para "integrar" a Shoah, para fazer ou ter êxito em "luto", para protegê-la ou cultivar sua memória, mas para atribuir um pensamento justo ao que aconteceu lá, e que permanece sem nome e sem conceito, único como outras tragédias únicas (e para as quais, como estava sugerindo há pouco, o nome grego de tragédia corre o risco de ser ainda inadequado - é ainda grego demais e nomeia também uma arte do teatro).

Chamo um pensamento justo um pensamento que se testa, a partir daí, a partir dessa singularidade sem norma e sem conceito para algo como uma justiça. Uma justiça a ser inventada. Como proteger algo que não se pode nem proteger, nem assimilar, nem interiorizar, nem classificar? Paradoxo da fidelidade ao outro: tomar consigo, guardar, recolher o todo outro sem que esse todo outro não se dissolva e não se identifique a si no si. Depois de Auschwitz, re-começar a pensar, começar a escrever de outra maneira em vez de não mais escrever, o que seria absurdo e passível da pior traição. De todo modo, em ambos os casos, isso é impossível, o Impossível. Afetados pelo que lá aconteceu, afetados sem nem mesmo ter que decidir nos deixar afetar, testemunhamos aquilo que não podemos nem esquecer nem lembrar. Por que a literatura, a ficção, a poesia, a filosofia deveriam desaparecer? Vê-se ainda menos por que esse testemunho teria força de veredito ou de condenação à morte: fim da história, fim da arte, fim da literatura ou da filosofia, silêncio. Uma "voz de fino silêncio", se ouço bem, parece nos instar, ao contrário, a re-começar de uma maneira toda outra. 

* Theodor Adorno lançou essa injunção em 1949: "Escrever um poema depois de Auschwitz é bárbaro, e esse fato afeta inclusive o conhecimento que explica por que se tornou impossível atualmente escrever poemas", in Prismes. Critique de la culture et de la société, Paris, Payot, 1986. Maurice Blanchot retomou a injunção de outra maneira: "Não pode haver relato-ficção de Auschwitz" e "Em qualquer data que possa ser escrito, todo relato será doravante anterior a Auschwitz", in Après-coup, Paris, Minuit, 1983.


(Derrida & Roudinesco, De que amanhã: diálogo, trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004, p. 164-165).

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

O maratonista, um sonho

1) Em um dos contos da coletânea de Danilo Kis, Alaúde e cicatrizes (uma reunião póstuma de contos, com um aparato de notas e de contextualização que é, por si só, ficcional, imaginativo e digno de outro conto de Danilo Kis), intitulado "O maratonista e o juiz", um homem sonha. O homem sonha que corre uma maratona e que está à frente de todos, surpreendentemente não cansado - até que surge o juiz e ordena que ele pare; em seguida surge sua esposa e faz o mesmo pedido; ele acorda. O conto faz parte da ampla literatura já escrita em torno das relações entre o inconsciente e a violência ou, mais especificamente, o inconsciente e o totalitarismo (o maratonista acorda e descobrimos que ele está em um gulag soviético).
2) O primeiro ponto de contato possível é o romance Correr, de Jean Echenoz, sobre a história do maratonista Emil Zatopek, vigiado pelo mesmo regime do corredor de Danilo Kis. Um contato temático, contudo, que pode ser ampliado em direção à questão mais ampla acerca da relação do inconsciente com o totalitarismo - uma relação entre o fora e o dentro, entre o indevassável do indivíduo e um regime que busca pôr a nu todas as facetas da vida do indivíduo (e mais: como diante do totalitarismo o inconsciente também encontra o limite de seu paradoxo - sendo organizado por certas leis - as leis da linguagem, segundo Lacan -, ele ainda assim consegue dar conta de toda uma série, virtualmente infinita, de associações erráticas, libertárias, contraditórias, na contramão do totalitarismo, portanto).
3) Cito uma passagem de Slavoj Zizek na qual ele comenta o tema através de Adorno (assim como poderia também remeter ao livro Sonhos no Terceiro Reich, de Charlotte Beradt): "Adorno disse que o conhecido lema nazista Deutschland, erwache! [Alemanha, desperta!] significava seu exato oposto, na verdade: a promessa de que, se obedecermos a esse chamado, poderemos continuar dormindo e sonhando (isto é, evitando o encontro com o Real do antagonismo social). De certo modo, portanto, o trauma que encontramos no sonho é mais real do que a própria realidade (social externa)" (Alguém disse totalitarismo?, tradução: Rogério Bettoni, Boitempo).     

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Pérsia, Viena

1) O último romance de Joseph Roth, Die Geschichte von der 1002. Nacht, de 1939, é frívolo em sua superfície (bailes, prostíbulos, bebidas, oficiais do Exército, desfiles, cafés, etc) mas meticulosamente construído em sua duplicidade: o romance está continuamente fazendo referência a falsidades e disfarces, agentes secretos que observam pelos cantos, histórias que circulam pelas costas, figuras de cera que imitam personalidades reais, trocas de identidade e dinheiro falso. 
2) Nesse sentido, e mais uma vez, o romance de Roth é um comentário à frase de Marx sobre a repetição, a tragédia e a farsa (uma repetição e um comentário que vai de Hegel a Zizek e segue em movimento). Isso porque o Xá da Pérsia visita Viena duas vezes, no início e no fim do romance - e o colar de pérolas que dá de presente no início é recuperado no fim, e muitos personagens dizem que todo infortúnio começou com ele. Na leitura que faz Derrida da frase de Marx, por exemplo, a ênfase está no retorno dos espectros, dos fantasmas, que solicitam o olhar do presente em direção ao passado - algo recorrente também em Roth, em sua visão de mundo, pois para ele o Império Austro-Húngaro era um espectro sempre em dia, atualizável, tão exótico quanto a Pérsia parecia aos orientalistas do século XIX (ao levar o Xá à Viena do século XIX, Roth mescla esses dois ideias fictícios, o orientalismo e o monarquismo).
3) Roth publica o romance em 1939, já plenamente consciente da destruição que em breve começaria - que ele viveu de perto na Primeira Guerra Mundial e que colocou em tantos romances. Várias camadas de espectros rondam o romance de Roth, da Europa imediatamente pré-Hitler, até seus tempos de combatente na guerra, passando pelo Império que ele, Roth, conheceu na infância no extremo Leste do reino e, por fim, o auge do Império e de Viena durante a visita do Xá na segunda metade do século XIX. Técnica, reprodutibilidade e espetáculo também surgem no romance, primeiro com o carrossel no parque e, logo em seguida, com o museu de cera e o teatro de rua no qual se representa justamente a visita do Xá (a segunda visita é absorvida pela representação teatral da primeira visita - um jogo de espelhos).    

terça-feira, 7 de agosto de 2018

O colar de pérolas

1) Existe ainda certa dúvida sobre qual teria sido o último livro de Joseph Roth publicado em vida: ele morreu no dia 27 de maio de 1939, em Paris, e no mesmo ano é lançado seu romance Die Geschichte von der 1002. Nacht (que em espanhol recebeu o título La noche mil dos e que em inglês recebeu o título The String of Pearls). Exatamente um ano depois, em maio de 1940, com a invasão nazi da Holanda (onde havia sido publicado), toda a edição do livro foi destruída, tornando impossível precisar com exatidão em que momento de 1939 o livro surgiu (os detalhes de seu resgate posterior, mesmo com a destruição nazi, também é algo a ser investigado).
2) A questão do título é também fundamental, porque os dois disponíveis remetem a direções completamente diferentes: o título adotado pela edição em inglês faz referência ao colar de pérolas que é dado a uma prostituta que se faz passar por uma condessa para agradar o Xá da Pérsia durante sua visita a Viena em algum ponto no meio da segunda década do século XIX; o título original, contudo, leva em direção a uma reconfiguração irônica da tradição literária oriental, metonimicamente representada pela referência ao Livro das Mil e Uma Noites. Caberia uma leitura - na esteira tanto do pós-colonial de Said quanto da desconstrução de Derrida - atenta do modo como Roth tanto solicita o discurso do orientalismo como o desfaz e questiona a partir da própria base, como na cena em que dançarinos, em Viena, vestidos à moda "oriental" em uma exibição para agradar o Xá, lembram velhas fotografias vistas por ele na infância.
3) Em certo sentido, o título dado por Roth remete a esse orientalismo, sugerindo que o que está para além da história clássica, tradicional, é precisamente o atravessamento, a mistura entre oriente e ocidente - que no romance se dá com as visitas do Xá a Viena, uma no início, outra no fim do romance. O procedimento estrutural recorrente de Roth também está aqui: o Xá ocupa o primeiro plano nas 50 primeiras páginas do romance, e desaparece abruptamente - para dar lugar a dois personagens que gravitavam ao seu redor (o Barão que tem a ideia de transformar a prostituta em condessa e a própria mulher, inocente e desavisada, que recebe o colar de presente). 

sábado, 4 de agosto de 2018

Nikolai Brandeis

1) Muitos dos romances de Joseph Roth são semelhantes na forma: capítulos breves organizados dentro de seções mais amplas. Rebelião, por exemplo, de 1924, tem dezenove capítulos; Direita e esquerda (Rechts und Links), de 1929, um pouco maior, tem vinte capítulos, divididos em três seções. Os dois romances também repetem um procedimento recorrente em Roth: o aparecimento de um personagem, lá pelo meio da narrativa, que irrompe abruptamente e desvia a rota até então estabelecida para o protagonista ou protagonistas.
2) No caso de Rebelião, o corte acontece com o surgimento do burguês no bonde, que faz comentários raivosos acerca de Andreas Pum, o inválido de guerra sem uma perna que também está no bonde. No caso de Direita e esquerda, acompanhamos a história de Paul Bernheim, filho de um banqueiro que desde a infância está destinado ao sucesso - é bonito, refinado, agrada às mulheres e aos homens, vai estudar na Inglaterra, domina a conversação civilizada dos salões em uma variedade de assuntos, etc. Até o momento em que surge Nikolai Brandeis, um homem mais velho, de pele morena, muito alto e distinto, riquíssimo e vindo do Leste depois da Primeira Guerra Mundial. Ao contrário do burguês de Rebelião, que surge no meio da narrativa e some (deixando apenas os efeitos de sua intervenção sobre o destino de Andreas Pum), Brandeis surge e permanece, esquivo a princípio, mas aos poucos dando indícios de suas origens e passado.
3) "Eu ainda consigo lembrar o tempo em que Paul Bernheim prometia se tornar um gênio", é a primeira frase de Direita e esquerda, anunciada por um "eu" que não vai mais se manifestar (como se o romance tomasse lugar inteiramente na dimensão aberta por esse eu me lembro). Além disso, a narrativa se articula a partir dessa expectativa da genialidade de Paul Bernheim e sua manifestação duvidosa na vida futura. Eis outro tema forte em Joseph Roth: a articulação entre passado e futuro, entre expectativa e projeção (em outras palavras, o tema do messianismo, que vai ocupar, nos mesmo anos, Kafka, Walter Benjamin, Scholem e, mais adiante, Agamben, Sebald). Tal construção será utilizada novamente por Roth poucos anos depois em seu romance , de 1930 (um ano depois de Direita e esquerda, portanto), mas invertida: Paul Bernheim gera uma expectativa alta que é esvaziada com o passar da narrativa; Menuchim, por sua vez, o último filho de Mendel Singer, protagonista de , nasce deformado, epilético e retardado - mas carrega consigo a profecia de um rabino: tudo vai passar, "e como ele haverá poucos em Israel".

quinta-feira, 26 de julho de 2018

A morte em Joseph Roth

1) É evidente que a morte é um tema constante na literatura, aparecendo em todos os autores, desde as aparições mais diretas às mais metafóricas (um dos melhores ensaios de Sebald, por exemplo, trata justamente do motivo da morte no Castelo de Kafka). No caso de Joseph Roth, contudo, o tema se amplia e dissemina em uma série de motivos e detalhes, relacionados, por exemplo, à dissolução do Império Austro-Húngaro ou aos milhões de cadáveres da Primeira Guerra Mundial. Um motivo correlato é o destino dos corpos dos personagens de Roth, uma preocupação recorrente do autor. 
2) Em um conto de 1925, "O espelho cego" (Der blinde Spiegel), Roth conta a história de Fini, uma jovem inocente que trabalha em um escritório e que é seduzida por um homem mais velho, pouco inclinado à higiene e à gentileza. Fini termina por encontrar o amor nos braços de um jovem revolucionário que, no entanto, desaparece misteriosamente. Pressentindo o pior, Fini comete suicídio se atirando no Danúbio. Seu corpo é recuperado e o conto termina com sua dissecção em uma escola de medicina. Rebelião, o romance de 1924, termina da mesma forma: depois de falecer no banheiro do qual era recepcionista, Andreas Pum é levado ao Instituto de Anatomia para dissecção, "a despeito de sua perna faltante".  
3) Na novela que teve lançamento póstumo em 1940, "O Leviatã" (Der Leviathan), Roth conta a história de um comerciante judeu que vendia corais marinhos e que nunca havia visto o mar. Quando decide embarcar, estimulado por um amigo de Odessa, o navio afunda: "Mais de duzentos passageiros foram ao fundo com o Phönix. Naturalmente, morreram afogados", escreve Roth na última página do livro, e completa: "garanto que ele pertencia aos corais e que o fundo do Oceano era a sua única terra natal". No ensaio que dedica a Roth (está em Mecanismos internos), Coetzee define "O Leviatã" como a obra mais abertamente judaica e folclórica de Roth. Diante disso, é significativo que esse destino do corpo do comerciante de corais - para o fundo do oceano - já tenha sido evocado por Roth em outro texto, jornalístico, reunido agora no livro Judeus errantes. Trata-se do texto "Um judeu vai para os Estados Unidos", no qual Roth evoca a particularidade do judeu do Leste, acostumado à errância terrestre, agora defrontado com o mar:
Quem como o judeu do Leste traz no sangue a profunda consciência de que todo momento pode ser de fuga não se sente livre em um navio. Para onde se salvar se acontecer alguma coisa? Há milênios ele se salva. Há milênios acontece sempre algo ameaçador, há milênios ele sempre foge. O que pode acontecer? Quem saberá? Não podem eclodir pogroms também no navio? Para onde então? Se a morte surpreende um passageiro no navio, onde sepultar o morto? Atira-se o corpo ao mar. Mas o velho mito da chegada do Messias descreve exatamente a ressurreição dos mortos. Todos os judeus que se encontram enterrados em terra estrangeira terão de rolar sob a terra até chegar à Palestina. Mas os mortos lançados ao mar também ressuscitação? Há terra embaixo da água? Que criaturas estranhas moram lá embaixo? O corpo de um judeu não pode ser dissecado. Completo e intacto o homem tem de voltar ao pó. 
(Joseph Roth, Judeus errantes, tradução de Simone Pereira Gonçalves, Editora Âyiné, 2016, p. 137-138).

sábado, 21 de julho de 2018

Rebeldes, 1

1) Andreas Pum, protagonista do romance Rebelião de Joseph Roth, inicia sua jornada na narrativa já sem uma das pernas - consequência da I Guerra Mundial que lhe valeu uma medalha e uma permissão para tocar realejo nas ruas de Berlim. Muito semelhante àquilo que Kafka apresenta em O castelo, também Roth fala do anonimato burocrático do Estado envolvido no destino de Andreas Pum: depois de uma confusão no bonde, tem sua permissão confiscada, e logo em seguida é tratado violentamente tanto pela polícia quanto pelo sistema judiciário. É na prisão - e refletindo sobre a injustiça do tratamento que recebeu, sendo ele um veterano da guerra - que Andreas decide pela "rebelião", saindo de lá devastado e envelhecido, com as barbas e os cabelos brancos (como diz Olga na peça As três irmãs, de Tchekhov: "Essa noite envelheci dez anos").
2) Andreas Pum é absorvido pela engrenagem anônima do Estado, assim como o K. de Kafka. Em 1929, cinco anos depois do lançamento de Rebelião, Alfred Döblin lança seu romance de feição joyceana Berlin Alexanderplatz. O romance de Döblin é maior e mais complexo que o romance de Roth, mas ambos lidam - em suas respectivas escalas - com o submundo da cidade de Berlim e com a conversão de dois indivíduos em direção à rebelião. Se Andreas Pum chega à prisão na parte final de Rebelião, Franz Biberkopf, o protagonista de Döblin, sai dela já na primeira página (a construção é análoga: Biberkopf sai da prisão em direção à cidade; Andreas Pum sai do hospital em direção à cidade e à vida pós-guerra, munido de sua medalha, suas muletas e sua permissão para tocar o realejo).
3) "Este livro fala de um antigo operário de construção e de transportes", começa Döblin, "Franz Biberkopf, em Berlim. Saiu da prisão onde cumpriu pena por incidentes antigos, está de novo em Berlim e quer ter uma vida decente". Assim como no caso de Andreas Pum, contudo, a vida tem outros planos para Biberkopf: "Por três vezes, este destino investe contra o homem e interfere em seu projeto de vida. Atinge-o com logro e traição". Na exata metade da narrativa, por conta de um roubo que dá errado, Biberkopf é arremessado de um carro e atropelado - é preciso amputar o braço direito "à altura da articulação do ombro, são extirpados pedaços do osso do ombro, as contusões no tórax e na coxa direita, pelo que se pode afirmar até o presente momento, são de menor importância" (Berlin Alexanderplatz, trad. Irene Aron, Martins Fontes, 2009, p. 253).    

quinta-feira, 19 de julho de 2018

Rebeldes

1) Joseph Roth publica o romance Rebelião (Die Rebellion) em 1924, mesmo ano em que publica Hotel Savoy (em 1923 Roth havia feito sua estreia na ficção com o romance Das Spinnennetz). 1924 marca também o ano de morte de Kafka e Joseph Conrad, e a princípio o romance de Roth - especialmente por conta do título - parece remeter a um ambiente já frequentado pelo último (especialmente o romance O agente secreto, que Conrad publica em 1907, sobre um grupo terrorista que tenta explodir o observatório de Greenwich em 1886).
2) Ainda que não seja o caso (o protagonista de Roth, Andreas Pum, não é um revolucionário ou terrorista), o tema da revolução (e da rebelião, da espionagem e da revolta) surge frequentemente na obra de Roth. Mesmo em seu romance mais conhecido e tradicional, A marcha de Radetzky, o tema aparece no interior do Império Austro-Húngaro, justamente na cidadezinha da fronteira com a Rússia (local de nascimento do próprio Roth), local onde confluem espiões, desertores, contrabandistas, etc, e que será completamente varrida do mapa durante a I Guerra Mundial.
3) Andreas Pum entra em "rebelião" quase que a contragosto, levado pelas circunstâncias, pelo desfavor do acaso (Roth ironicamente usa o Destino com maiúscula quando narra a derrocada de Pum). Aquilo que o poderia colocar em rebelião - a perda da perna na guerra - é, pelo contrário, aquilo que o tranquiliza para a vida: ele recebe uma medalha e uma licença para tocar realejo nas ruas de Berlim e, assim, receber dinheiro dos passantes. O romance já começa com Andreas sem a perna e assim ele segue, confiante, até cruzar o caminho de um burguês contrariado em um bonde e entrar em uma briga. O condutor toma o partido do burguês e Andreas termina na prisão, perdendo sua licença.    

sexta-feira, 6 de julho de 2018

Viagem sentimental

Não sou socialista, sou freudiano.
Uma pessoa está dormindo e escuta tocar a campainha na porta de casa. Ela sabe que precisa se levantar, mas não quer. E assim ela inventa um sonho, insere nele esse som e lhe dá uma outra motivação - por exemplo, ela pode sonhar que está ouvindo as matinas.
A Rússia inventou os bolcheviques como um sonho, como uma motivação para a debandada e o saque; os próprios bolcheviques não têm culpa de terem sido sonhados.
Mas quem estava tocando a campainha?
Talvez a revolução mundial.

(Viktor Chklóvski, Viagem sentimental. trad. Cecília Rosas, Editora 34, 2018, p. 93-94)

*

É precisamente a partir da década de 1830 que se pode observar a emergência de um “contra-sonho” - a visão da cidade arrasada, a fantasia da invasão dos citas e dos vândalos, dos corcéis mongóis a matar a sede nas fontes dos jardins das Tulherias. Desenvolve-se uma estranha escola de pintura: quadros de Londres, Paris ou Berlim vistas como ruínas colossais, edifícios famosos queimados, saqueados ou localizados em uma desolação misteriosa entre restos esturricados e águas estagnadas. A fantasia romântica antecipa a promessa vingativa de Brecht, de que nada restará das grandes cidades exceto o vento que sopra através delas. Exatamente cem anos depois, essas colagens apocalípticas e esses desenhos imaginários do fim de Pompéia se transformariam em nossas fotografias de Varsóvia e Dresden. Não é necessário a psicanálise para sugerir o quanto havia de realização de desejos nessas sugestões do século XIX. 

(George Steiner. No castelo do Barba Azul: algumas notas para a redefinição da cultura. Tradução de Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 29-30)

sábado, 30 de junho de 2018

O Judas de Leonardo, ainda

Leonardo é apresentado como um detetive por Leo Perutz?
O fato é que Perutz se alinha ao gênero detetivesco - é aí que Walter Benjamin o localiza. Além disso, Borges e Bioy incluíram um romance de Perutz na coleção do gênero que montaram juntos a partir de 1945:

En febrero de 1945 nació El Séptimo Círculo, la colección dirigida por Jorge Luis Borges y Adolfo Bioy Casares. El primer título fue La bestia debe morir, de Nicholas Blake, en traducción de Juan Rodolfo Wilcock. (fonte).

1) É digno de nota que o livro de Perutz escolhido por Borges e Bioy transita entre o detetivesco e a literatura fantástica - um pouco como o Judas de Leonardo transita entre o romance histórico e o detetivesco. Pensando no paradigma indiciário de Carlo Ginzburg, sem dúvida o Leonardo de Perutz se encaixaria nessas linhas mais amplas do detetivesco - a atenção aos detalhes, à relação entre morfologia e história, além do olhar do pintor ser um ponto central também em Ginzburg (Morelli, o médico italiano, e seu método de atribuição de autoria em pinturas).
2) Outro aspecto importante do Leonardo de Perutz - um aspecto que o aproxima novamente de Borges - é a insistência em seu método não-produtivo, visto com suspeita pela sociedade. O Leonardo de Perutz, insistindo em um saber ver mais do que em um saber fazer, faz pensar nas aquarelas de Whistler que Borges menciona em Discussão: "ao perguntarem a Whistler quanto tempo lhe fora necessário para pintar um de seus noturnos, ele respondeu: a vida toda". De certa forma, a realização do Judas de Leonardo na Última ceia passa por essa intuição (e o desenvolvimento que faz Perutz em torno ao comerciante alemão que lhe dá o ensejo é a elaboração desse "a vida toda").
3) Ricardo Piglia (Formas breves) comenta essa frase de Borges, aproximando-a de Italo Calvino e uma situação semelhante que ele captura em uma de suas propostas para o próximo milênio: 

"Calvino conta uma história que pode ser vista como uma síntese fantástica da conclusão de uma obra. Entre muitas virtudes, Chuang-Tsê tinha a de ser hábil no desenho. O rei lhe pediu que desenhasse um caranguejo. Chuang-Tsê respondeu que precisava de cinco anos e uma casa com doze criados. Passaram-se cinco anos, e o desenho ainda não estava começado. 'Preciso de outros cinco anos', disse Chuang-Tsê. O rei os concedeu. 

Passados dez anos, Chuang-Tsê tomou do pincel e, num instante, com um único gesto, desenhou um caranguejo, o caranguejo mais perfeito que jamais se tinha visto.

Antes de tudo, essa é uma história sobre a graça, sobre o instantâneo e também sobre a duração. Há um vazio, tudo fica em suspenso, e o relato se pergunta se a espera (que dura anos) faz ou não parte da obra. Como o relato trata de um artista, seu núcleo básico é o tempo e as condições materiais de trabalho: nesse sentido, o conto é um tratado sobre a economia da arte. Firma-se um contrato entre o pintor e o rei: a dificuldade reside, recordemos Marx, em medir o tempo de trabalho necessário numa obra de arte, e portanto a dificuldade de definir (socialmente) seu valor".

domingo, 24 de junho de 2018

O Judas de Leonardo

Leo Perutz (1882-1957) faleceu apenas dois meses após ter concluído seu romance O Judas de Leonardo. Ele iniciou o manuscrito em 1937 e teve que interrompê-lo no ano seguinte, quando os nazistas entraram em Viena. Retomou em 1941, no exílio na Palestina, escrevendo intermitentemente até 1947, quando abandona para escrever outro romance. A partir de 1951, se dedica exclusivamente ao Judas, até 1957 (Perutz é citado, por exemplo, em um dos ensaios de Walter Benjamin sobre o romance detetivesco).
*
1) Um comerciante alemão chega em Milão nos últimos anos do século XV e, semanas depois, vira o modelo para o Judas que Leonardo coloca na Última ceia - eis parte da trama do romance de Perutz. A habilidade de Perutz, porém, está em esconder Leonardo no pano de fundo da narrativa. O artista pouco aparece diretamente, mas é continuamente referido por outros (todos comentam, de forma positiva ou negativa, sua excentricidade e sua excepcionalidade). O personagem principal do romance é o Judas, o comerciante alemão, e sua relação com uma moça local e seu pai usurário.
2) A relação entre Leonardo e o comerciante, ainda que não próxima ou extensa, é, no entanto, decisiva. No final do romance, quando se encontram e Leonardo pede ao comerciante que conte sua história (o que redunda na cena final do encontro, com Leonardo desenhando seu retrato com o objetivo de transformá-lo em Judas), é o alemão quem oferece a chave interpretativa do romance: "o senhor tem que se preocupar com muito mais do que tintas e pincel para terminar uma pintura", diz o comerciante, aparentemente sem compreender a extensão de seu juízo.
3) Ao longo de todo o romance Leonardo é repreendido (sobretudo pelas costas) por seu atraso na conclusão da Última ceia. O que o comerciante alemão indica, contudo, é que a arte de Leonardo diz mais respeito a um saber ver do que a um saber fazer (e nessa perspectiva faz sentido que Duchamp tenha escolhido justamente Leonardo para seu ready made mais famoso). O próprio Duque de Milão questiona o fato de Leonardo muitas vezes ficar duas horas diante da parede do refeitório do convento, segurando o pincel, olhando a pintura, sem fazer qualquer acréscimo. Ao mesmo tempo, porém, Leonardo é sempre rápido em sacar seu caderno de esboços, que leva sob o cinto e que é usado constantemente para capturar cenas, trejeitos, movimentos musculares, etc.  
   

quinta-feira, 21 de junho de 2018

Desprivilegiados desta terra

"Não cabe a mim criticar meus juízes, quando menos porque sempre achei que eu estava recebendo mais do que justiça em suas mãos. Mas guardo a impressão de que seu interesse, infalivelmente simpático, atribuiu a influências raciais e históricas muito do que, a meu ver, concerne simplesmente ao indivíduo. Nada é mais estranho ao temperamento polonês, com sua tradição de autonomia governamental, sua visão cavalheiresca dos condicionamentos morais e um exagerado respeito aos direitos individuais, do que aquilo que se chama, no mundo literário, de eslavismo: para não falar do importante fato de que a mentalidade polonesa como um todo, por natureza, Ocidental, foi instruída por Itália e França e sempre se manteve historicamente simpática às correntes mais liberais do pensamento europeu, mesmo em questões religiosas. Uma visão imparcial da humanidade em todos seus graus de esplendor e mistério, juntamente com uma consideração especial em relação aos direitos dos desprivilegiados desta terra, não em qualquer base mística mas com base na simples camaradagem e na honrosa reciprocidade de serviços, foram a característica dominante da atmosfera mental e moral dos lares que abrigaram minha atribulada infância"

(Joseph Conrad, "Nota do autor", Um registro pessoal, trad. Celso M. Paciornik, Iluminuras, 1999, p. 163-164).
*

1) Em primeiro lugar, é preciso atentar para a estratégia de filiação proposta por Conrad para si próprio. A "nota do autor" aos seus escritos memorialísticos, além do mais, é de 1919, cinco anos antes de sua morte e vinte e quatro anos depois da publicação de seu primeiro romance. Dada a relação historicamente difícil entre Rússia e Polônia (entre outros fatores, sobretudo psicológicos, temperamentais), Conrad recusa a etiqueta "eslavismo". 
2) É curioso que, apesar de escrever em inglês, Conrad coloque nesse trecho a Itália e a França como nações "instrutoras" da Polônia - no caso da literatura, provavelmente com Flaubert no topo da lista, autor que inclusive é citado já na primeira página - no primeiro parágrafo - das memórias Um registro pessoal. Mais adiante no registro memorialístico, Conrad torna mais precisa a filiação e fala de Dickens e de sua intensa leituras dos romances, tanto em polonês quanto em inglês. 
3) A menção aos "desprivilegiados da terra" é quase profética, tendo em vista toda uma parcela da fortuna crítica de Conrad, especialmente aquele em torno do Coração das trevas (as críticas de Chinua Achebe, por exemplo, ou mesmo o eco com Les Damnés de la Terre, o livro que Fanon publica em 1961). Essa fórmula faz pensar em Walter Benjamin e sua história dos vencidos (mas também pelo fato de Benjamin viver entre duas línguas, entre o alemão e o francês, no limiar da tradução assim como Conrad) mas também no uso que Sebald faz de Conrad em Os anéis de Saturno, aproximando sua obra e postura daquela de Roger Casement.