Em Zoo, ou cartas não de amor, Chklóvski mescla o discurso do exílio ao discurso amoroso - diante da interdição da amada (você não pode me escrever sobre amor; você não pode me telefonar; você não pode me ver), diante da impossibilidade de dizer, Chklóvski arma um procedimento: enquanto comenta a Literatura, vai lançando, nas entrelinhas, considerações sobre duas ausências: a mulher e a Rússia (que terminam, evidentemente, também por se mesclar). Não poder falar de amor equivale, em Zoo, a não poder estar na Rússia (quando comenta o Dom Quixote, na Carta IV, Chklóvski fala que foi um romance feito na prisão, uma paródia que nasceu justamente da interdição, da impossibilidade de estar em casa e de estar de posse completa e legítima de um gênero). A carta funciona porque também ela equivale a essa ausência que é, ao mesmo tempo, respeitada e rejeitada - a carta diz respeito a alguém que não está, ela é feita no tempo e lida no contratempo, feita para o exílio, feita para estar alhures, o único lugar no qual ela faz sentido.
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Há um texto de Foucault sobre a questão da troca de cartas e a epistolografia como etapa na construção das comunidades em trânsito e no exílio: um de seus últimos seminários, O governo de si e dos outros, 1982-83, a respeito das cartas de Platão sobre a relação entre filosofia e política – algumas autênticas, outras de próximos de Platão, outras apócrifas. Foucault interroga um Platão de certa forma perdido no tempo e no espaço (como Chklóvski), a quem vai lançando perguntas sem esperar respostas (somente aquelas que consegue depreender das cartas, rastros, vestígios de respostas). Platão é apresentado por Foucault como um escritor viajante; suas cartas foram realizadas tentando dar conta tanto de sua vida como filósofo quanto de suas viagens, divididas em dois tipos, mas sempre didáticas: para encontrar discípulos e para encontrar governantes. Esse texto de Foucault oferece dois elementos: um discussão detida, com dados históricos, sobre o uso da carta como "amizade", "amor", filiação e comunidade, levando em consideração um contexto no qual os mitos tinham um peso social enorme; e a emergência da figura de um escritor de cartas que é também um viajante e que só escreve tais cartas porque viaja (O governo de si e dos outros, WMF Martins Fontes, tradução de Eduardo Brandão, 2013, p. 191-201).