domingo, 28 de fevereiro de 2010

Marías & Vila-Matas

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Interessantes analogias entre Enrique Vila-Matas e Javier Marías, especificamente no que diz respeito ao procedimento de glosar a própria obra - produzir ficção à sombra da ficção feita previamente.
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O caso se apresenta, em Vila-Matas, com Bartleby e, depois, Montano. O primeiro trata da falta, o segundo trata do excesso. Depois de pensar sobre os escritores que haviam largado a literatura, o pânico tomou conta do autor e ele foi ao extremo oposto: o mal de Montano, o homem que só fala com citações, que só pensa em literatura, que ficcionaliza a própria história, que escreve sua biografia nos textos que lê. Montano inclusive escreveu um livro sobre escritores que abandonaram a escrita, e daí decorre todo seu mal.
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Marías é mais clássico, prolixo e com pretensões de Academia (não academia de doutorado, mestrado, mas Academia Espanhola, cânone, manual de língua). Escreve Todas las almas, sobre o tempo que passou em Oxford na década de 80. Depois de muito se divertir com os comentários que gera a confusão entre vida e obra, decide escrever um acréscimo, uma explicação (pli: dobra, ele desdobra a própria ficção para descobrir o que está do outro lado). O acréscimo é Negra espalda del tiempo, no qual ele procura dizer quem é quem no primeiro livro e quem é quem na vida real.
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Desnecessário dizer que gosto muito mais do desenvolvimento do Vila-Matas, muito mais rico em possibilidades críticas. Vale dizer que as autoreferencialidades dos dois autores são completamente diferentes, ainda que se assemelhem num ponto simples: um cuidado de si, um cuidado com a própria obra, uma tentativa curiosa de administrar o próprio destino - o que é bastante ingênuo se atentarmos para a quantidade de leituras que ambos fazem questão de alardear.
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segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Henry Miller e o sonho alheio

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Uma passagem muito interessante no meio da confusão que é Sexus, de Henry Miller: Mona, a nova mulher do narrador-protagonista (que larga mulher e filha para viver este novo grande amor), questionada por este acerca de seus sonhos, demora em responder; em realidade demora dias para responder com algum relato específico de sonho. Ela diz, primeiro, que simplesmente não sonha. Dias depois, Henry nos diz que ela apareceu com relatos curiosos de seus sonhos, histórias sem pé nem cabeça, o que lhe dá certa alegria, já que agora podem conversar sobre esse tópico tão importante para um escritor que são os sonhos.
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Miller guarda esse frescor que não encontramos mais do escritor que acredita no processo inconsciente da escritura, das coisas que afloram quando menos se espera e do dia que se desenrola tendo como único propósito a descoberta desse momento - a partir disso o sujeito, então, fica a vagar e a pedir dinheiro emprestado aos outros, fazendo pouco caso do que dizem ou fazem.
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Folheando os livros da biblioteca da casa onde estão hospedados (Mona e Miller), Henry encontra livros médicos, livros de psicologia, livros com relatos de casos clínicos e coisas diversas nessa linha, com papéis marcando páginas específicas, papéis marcando justamente os relatos de sonhos que fazem parte das análises dos casos clínicos. Henry reconhece os sonhos de Mona - melhor ainda: reconhece partes dos sonhos, muitos trechos de muitos relatos formando um único sonho de Mona. Mona montou seu próprios sonhos a partir dos textos que leu, Mona ficcionalizou o próprio inconsciente a partir dos textos que leu.
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quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Simone Weil

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Simone Weil foi tema da tese de Giorgio Agamben, está presente em vários escritos de Roberto Calasso e em algumas notas de Ricardo Piglia - e espanta a pouquíssima quantidade de menções a seu trabalho na produção crítica contemporânea. Um dia, muitos anos atrás, encontrei um livro sobre Weil em um sebo no Rio - Al Farabi, se não me engano com o nome, que era a reedição no centro da cidade do finado Boca de Sapo, que era em Ipanema, onde comprei meu primeiro Jogo da Amarelinha. Infelizmente não comprei, e hoje me faz falta.
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Simone Weil trabalhou na fábrica da Renault, para observar de dentro o sistema que criticava. Nossas mulheres de hoje se infiltram em estações de telemarketing para escrever matérias humorísticas para um revista que dezessete pessoas leem em São Paulo.
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quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Mais do mesmo

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Turim, 3 de janeiro de 1888: Em plena rua, Nietzsche abraça o pescoço de um cavalo caído no chão, brutalmente espancado por um cocheiro. O filósofo beija o animal e começa sua loucura. Dizem que Nietzsche repete uma cena lida: no capítulo 5 da primeira parte de Crime e castigo, Raskolnikov sonha com camponeses bêbados que batem em um cavalo até matá-lo. Dominado pela compaixão, Raskolnikov se abraça ao pescoço do animal caído e o beija.
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Kafka não só transforma um homem em inseto como também conta a história de Bucéfalo, o cavalo de Alexandre; a história da rata Josefina; a história de como Joseph K. morre como um cão; a história do macaco que fala para a Academia; a história do abutre que se afoga no sangue do homem que lhe deixou roer os pés; a história da toupeira gigante que atravessa a vida do mestre-escola da aldeia; a história de um animal singular, um cruzamento, metade gatinho, metade cordeiro.
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Coetzee usa o macaco na Academia, de Kafka, em Elizabeth Costello - usa também a analogia dos campos de concentração nazistas como matadouros de gado. Desonra termina com o abandono do cão que o protagonista tão devotamente havia cuidado - o cão levado à morte marca o ponto que a narrativa abandona a si própria.
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quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

A literatura norte-americana

1- Ricardo Piglia costumava dizer em entrevistas que a literatura norte-americana era a literatura universal em um único idioma – talvez porque reúna vertentes estilísticas e pertencimentos culturais os mais diversos.

2- Paul Auster dedica Leviatã, seu melhor livro, a Don DeLillo.

3- Nicanor Parra diz que os EUA é o único país onde a liberdade é uma estátua.

4- Auster está próximo de Philip Roth em alguns momentos de idealização da natureza – leitores empenhados de Thoreau e Walt Whitman.

5- Roth foi mais longe: efetivamente se recolheu em uma propriedade isolada no interior.

6- Mas só para ver que a loucura comunitária também estava lá: a agência postal que explode na Pastoral americana, a vergonha que acompanha o retiro do professor em A marca humana.

7- Cultura pop, II Guerra, Guerra do Golfo: temas para Roth, DeLillo, Pynchon, mas Auster fica de fora.

8- Submundo é o grande livro sobre o baseball; O paraíso é bem bacana é o temos sobre o futebol.

9- O primeiro segue a bola, como uma relíquia que capitaliza o tempo e transforma a devoção em mercadoria; o segundo segue um maluco, um Messias de plástico de pouca serventia.

10- A tradição Argentina aglutina: transforma o corpo em relíquia (Evita embalsamada, a mão de Perón e o cadáver de Arlt sobre a cidade).

11- A especificidade norte-americana está na forma ou no estilo?

12- Lolita: um monomaníaco profundamente norte-americano em um estilo completamente estrangeiro.

13- Onde há mais Faulkner: Saer ou McCarthy?

14- Roth ouviu Thomas Mann falar na década de 50, quando estava na universidade em Chicago.

15- O que fica de Cosmópolis, O arco-íris da gravidade e O complexo de Portnoy é o estilo, reverberando no ouvido anos a fio; o que fica de Fogo pálido, Submundo e O avesso da vida é a forma, concatenação, estrutura e inventividade da montagem.

16- Forma e estilo: Enquanto agonizo, Palmeiras selvagens e Meridiano sangrento.

17- Roth casou com uma britânica, Auster com uma escandinava, a mulher de Safran Foer escreve muito melhor que ele, DeLillo trabalhou com publicidade e Gore Vidal é gay.

18- Portnoy tem um glossário de termos judaicos; Vineland tem um glossário de termos televisivos; Libra tem um glossário de termos de espionagem.

19- Lolita escrito por Faulkner: sempre o mesmo vestido, pés descalços, Lolita grávida e sem goma de mascar.

20- Lolita escrito por Don DeLillo: constante cobertura televisiva e fotos de Humbert Humbert nu vendidas a uma revista.

21- Libra escrito por Nabokov: em Moscou, Lee Harvey Oswald descobriria seu destino nas linhas de um poeta simbolista russo, lentamente traduzido no porão de um paiol abandonado.

22- J.M. Coetzee foi preso e expulso dos EUA por causa da Guerra do Vietnã; Giorgio Agamben recusou um cargo na Universidade de Nova Iorque por causa da guerra no Iraque.

23- Terrorista (Updike) é uma tentativa mal-sucedida de inserir a realidade na ficção; Leviatã (Auster) é uma tentativa bem-sucedida de inserir a ficção na realidade.

24- André Breton fez questão de somente falar francês, e de não aprender nenhuma palavra em inglês, na breve estada que desfrutou em Nova Iorque, século passado.

25- “América, 1944: lugar de alucinações febris, sobretudo para os refugiados de língua alemã, expostos ao primeiro e brutal contato com a sociedade industrial pura, muitas vezes com arrepios e recusas diante da ‘mecanização do espírito’. Naquele período, em grande quantidade, houve suicídios e desoladas solidões em apartamentos minúsculos de Nova York ou de Los Angeles. Muitos não resistiram, tornaram-se fantasmas patéticos da velha Europa, restos de uma cultura que ninguém mais tinha vontade de usar.” Roberto Calasso, Os 49 degraus, p. 125.