sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Arquivo cultural do Ocidente

William Blake, Nabucodonosor, 1795
1) Ainda comentando a obra de Conrad, Edward Said fala de "um grande número de escritores africanos" que "depois de Conrad" "reescreveram O coração das trevas", num "processo sucessivo de respostas que ocorreu". Said usa também o exemplo de Mansfield Park, de Jane Austen, especialmente a passagem em que Sir Thomas Bertram, o dono de Mansfield Park, "tem de ir a Antígua, onde possui uma fazenda de cana de açúcar que obviamente se sustenta com trabalho escravo, para reabastecer os cofres da propriedade". Assim, a bela propriedade inglesa, conclui Said, "que significa repouso, calma e beleza, tem certa dependência em relação à produção de açúcar de uma colônia de escravos em Antígua" (A pena e a espada, tradução Matheus Corrêa, Unesp, 2013, p. 73-74).
2) O romance de Jane Austen, portanto, não é só sobre a Inglaterra, mas é também sobre o Caribe. "O ponto mais importante do imperialismo", afirma Said, "é que se trata de uma experiência de histórias interdependentes - a história da Índia e a da Inglaterra devem ser pensadas juntas". Junto com Conrad e Austen, Said comenta também E. M. Forster, Howards End: "Os Wilcoxes, donos de Howards End, são proprietários da companhia de borracha anglo-nigeriana. Sua fortuna vem da África. Mas a maioria dos críticos desse romance não menciona esse fato. Está lá no livro. Eu busco destacar esses aspectos do grande arquivo cultural do Ocidente, da mesma forma que procuro examinar os arquivos culturais de lugares como Austrália, África Setentrional, África Central, entre outros, para dizer que está tudo ali. Precisamos lidar com todo esse acervo. Talvez você se lembre de que a epígrafe de Howards End é "only connect". É importante relacionar as coisas umas com as outras" (p. 74).
3) No que diz respeito ao uso do arquivo e ao exercício de ler nos textos aquilo que os textos recalcam (a Nigéria, Antígua), a postura de Said é análoga àquela de Derrida ou Paul de Man. Mas sua ambição geopolítica o faz ultrapassar o ambiente restrito da pura textualidade. Um precursor evidente é Montaigne, especialmente quando Said fala em "multiplicação de pontos de vista" e "experiência de histórias interdependentes" (pois Montaigne afirma que também os europeus podem parecer "bárbaros" aos olhos dos "primitivos"). Essa mobilidade do ponto de vista está também e sobretudo em Marx, com sua releitura da dialética de farsa e tragédia em Hegel (no 18 de brumário Marx corrige Hegel e afirma que a história se repete, sim, mas diferida, deformada, monstruosa). As histórias estabelecem suas próprias releituras a partir de uma revisão de suas premissas - de um gesto de resgate desse "arquivo cultural" -, mostrando que todo emblema do poder, por mais vigoroso que seja, sempre tem os pés de barro (Daniel, 2, 31-45 - Daniel, afinal de contas, como semita que interpreta sonhos e denuncia o vazio do poder, é precursor tanto de Marx quanto de Freud).  

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

A pena e a espada

Joseph Conrad, 1857-1924
David Barsamian: Você argumenta que a cultura tornou o imperialismo possível e cita William Blake: "As fundações de todo império são a arte e a ciência. Destrua qualquer uma das duas e o império sucumbirá. O império sucede à arte e não o contrário, como supõem os ingleses".

Edward Said: Acho que um dos principais defeitos da vasta literatura sobre o imperialismo na economia, na ciência política e na história é que se presta muito pouca atenção ao papel da cultura na manutenção dos impérios. Conrad foi uma das testemunhas mais extraordinárias disso. Ele compreende que o lucro não está exatamente no cerne da ideia de império, embora certamente seja um dos motivos. Mas o que distingue os impérios antigos - como o romano, o espanhol ou os árabes - dos impérios modernos, entre os quais se destacam o britânico e o francês do século XIX, é que estes são iniciativas sistemáticas, com um reinvestimento constante. Eles não chegam a um país, saqueiam-no e vão embora quando a pilhagem termina. E os impérios modernos requerem, como afirmou Conrad, uma ideia de colaboração, uma ideia de sacrifício, uma ideia de redenção. 

DB: Como você explica seu grande interesse por Joseph Conrad e sua obra? Você cita O coração das trevas com frequência.

ES: Não tenho interesse só em O coração das trevas. Nostromo, que considero um romance tão excelente quanto, publicado um pouco mais tarde, por volta de 1904, é sobre a América Latina. Conrad parece-me ser a testemunha mais interessante do imperialismo europeu. Ele era certamente um crítico ferrenho das espécies mais vorazes de império, como era o caso dos belgas no Congo. Porém, mais do que qualquer outro, ele compreendia o modo insidioso pelo qual o império contaminava não apenas os conquistados, como também os conquistadores. Ou seja, a ideia de serviço carregava uma ilusão capaz de seduzir e cativar as pessoas, uma forma de corrupção universal. Quando o assunto era o que chamamos hoje de libertação, independência, liberdade diante do colonialismo e do imperialismo, Conrad simplesmente não conseguia compreendê-lo. Essa era, na minha opinião, uma limitação quase trágica da sua pessoa.

(Edward Said. A pena e a espada. Diálogos com Edward Said por David Barsamian. Tradução de Matheus Corrêa. Editora Unesp, 2013, p. 69-72).

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Royaumont, 1964

De 4 a 8 de julho de 1964, Foucault participa do Colóquio de Royaumont, cujo tema era Nietzsche. Apresenta um breve texto intitulado "Nietzsche, Freud, Marx", que abre com as seguintes palavras:
Quando esse projeto de "mesa redonda" me foi proposto, pareceu-me muito interessante, mas, evidentemente, bem espinhoso. Sugiro um viés: alguns temas relativos às técnicas de interpretação em Marx, Nietzsche e Freud (Michel Foucault, Ditos e Escritos, II - Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Tradução Elisa Monteiro, Forense Universitária, 2008, p. 40.
Como é típico de Foucault, ele amplia, imediatamente após a resolução de um foco restrito, o horizonte de consideração histórica em um nível quase que impraticável. Ou seja, logo após a sugestão de um "viés", Foucault afirma que "na realidade", por trás desses temas (as técnicas de interpretação), "há um sonho", um sonho seu, um sonho de Foucault, "o de poder fazer, um dia, uma espécie de Corpus geral, de Enciclopédia de todas as técnicas de interpretação que pudemos conhecer dos gramáticos gregos aos nossos dias. Acredito que, até o presente, poucos capítulos desse grande corpus de todas as técnicas de interpretação foram redigidos". Tal Enciclopédia não foi levada adiante por Foucault nos vinte anos que ainda teve de vida - e de certa forma forma uma espécie de espelhamento do livro inacabado de Nietzsche, que aparentemente teria o título de Vontade de potência, comentado brevemente por Foucault e também por Vattimo em seu ensaio sobre a "escola da suspeita".
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Além de Foucault, o Colóquio de Royaumont de 1964 recebeu também Deleuze (na função de coordenador), Jean Wahl, Klossowski, Gabriel Marcel (cujo trabalho foi tão importante para Cortázar e para a criação da Rayuela) e o próprio Vattimo, que ao fim da exposição de Foucault lhe fez a seguinte pergunta:
Se eu o compreendi bem, Marx deveria ser classificado entre os pensadores que, como Nietzsche, descobrem o interminável da interpretação. Estou inteiramente de acordo com você no que se refere a Nietzsche. Mas, em relação a Marx, não há necessariamente um ponto de chegada? O que quer dizer a infraestrutura senão alguma coisa que deve ser considerada como base? (p. 51).
E Foucault responde:
Em relação a Marx, quase não desenvolvi minha ideia; temo mesmo não poder demonstrá-la ainda. Mas tomem o Dezoito brumário, por exemplo: Marx jamais apresenta sua interpretação como interpretação final. Ele sabe claramente, e o diz, que se poderia interpretar em um nível mais profundo, ou em um nível mais geral, e que não há explicação que seja rasteira (p. 52).
Foucault argumenta, ao longo de seu texto, que a partir das obras de Marx, Freud e Nietzsche um paradigma no campo da interpretação se solidifica, aquele que diz respeito à própria consciência ou reflexividade da interpretação. Nessas obras, continua Foucault, o operador da interpretação abandona (ou é forçado a abandonar) a ingenuidade positivista tanto do distanciamento quanto da progressividade - nas palavras de Foucault, "essas técnicas de interpretação nos implicam, visto que nós mesmos, intérpretes, somos levados a nos interpretar por essas técnicas" (p. 43).

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Escola da suspeita

1) Gianni Vattimo, ao repassar o pensamento filosófico a partir da perspectiva do início dos anos 1980, dá ênfase ao "problema do significado de Nietzsche na cultura contemporânea", afirmando que "esse significado dificilmente se deixa reduzir ao de uma pura profissão de ceticismo ou de relativismo historicista", mas que "a herança de Nietzsche é hoje recebida e desenvolvida naquela vasta orientação do pensamento que pode ser apontada como 'hermenêutica' e 'crítica da ideologia', e que se reconhece como escola da suspeita". 
2) Tal "escola da suspeita", argumenta Vattimo, ganha uma espécie de elaboração secundária - ou seja, escapa da esfera de ação imediata de Nietzsche e absorve elementos acessórios. "Essa escola", continua Vattimo, "tem entre suas bases a noção marxiana de ideologia, a freudiana de sublimação (e de todos os processos de simbolização das pulsões desviadas pela satisfação imediata), a nietzschiana da cultura como 'mentira'". A assimilação de Nietzsche a essa equação, no entanto, não é pacífica: a obra de Nietzsche atua no "pensamento contemporâneo" "destacando diferenças, evidenciando problemas e contradições", escapando de uma tendência "que ainda seja orientada pelo ideal de chegar, para além dos desmascaramentos e das desmistificações, a um fundo 'verdadeiro', seja ele a estrutura econômica, a estrutura pulsional ou o ser entendido como fonte inesgotável do dom-destino da história" (Vattimo, Diálogo com Nietzsche, ensaios 1961-2000, tradução de Silvana Leite, WMF Martins Fontes, 2010, p. 275).
3) Já em seu ramo freudiano que a escola da suspeita investia numa espécie de "fundo falso da verdade", algo que é sugerido desde os textos pré-psicanalíticos de Freud até culminar na Interpretação do sonho. Nesse conjunto teórico inicial, Freud desvia a percepção corrente no que diz respeito à memória - ou seja, de que há uma operacionalidade consciente no jogo da memória que é predominante -, argumentando que a memória que interessa à teoria não é aquela dos acontecimentos, e sim uma memória do inconsciente, ligada aos traços e imagens que persistem desses acontecimentos (em outros termos, aquilo que do acontecimento é narrativizado pelo inconsciente). Nesse sentido, é possível dizer que Freud antecipa Saussure em sua intuição de que é o ponto de vista que cria o objeto - a verdade não é portanto imposição do mundo exterior (um objeto a ser interiorizado), mas desdobramento de um traço discursivo que é resgatado pela análise.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Crítica e fracasso

Foto feita por Emile Zola de seus filhos, 1897
1) Comentando a lista de "dez bons livros" que Freud fez a pedido de um editor, Peter Gay escreve que "tendo a oportunidade de mencionar não apenas um, mas sim dois romances de Zola, ele escolheu os mais notórios fracassos literários do escritor". Ligado a isso, está o fato de Freud "jamais se afastar de seu consultório", e sempre que viajava ou comparecia a peças, concertos ou óperas, estava atento para qualquer coisa que pudesse "revelar-lhe algo sobre o funcionamento da mente". No caso da escolha dos livros de Zola para sua lista, parece valer mais para Freud uma espécie de exemplaridade psicológica do que um tênue sentimento de intervenção estética (o que geraria, consequentemente, um sistema diverso de valoração artística, comprometido com o arcabouço teórico da psicanálise - "Lendo Freud através das leituras de Freud", Lendo Freud, investigações e entretenimentos, tradução de André Cardoso, Imago, 1992, p. 156-157).
2) A ética de trabalho compulsiva de Freud o leva, portanto, a uma espécie de des-hierarquização dos elementos encontrados, uma percepção aguda de que não há valor prévio estabelecido para um artefato qualquer (um livro, um chiste, um trocadilho, uma imagem, uma civilização). Peter Gay dá como exemplo o caso do marido dedicado, muito citado por Freud, que se volta à esposa e diz: "Se um de nós morrer, eu me mudo para Paris". Esse método de atenção variada e constante foi compartilhado por Warburg na construção não apenas de seu Atlas, mas em todo o trabalho prévio de coleta e catalogação dos materiais - em A imagem sobrevivente, Didi-Huberman comenta a heterogeneidade desse material e a tendência de Warburg a buscar uma "pregnância antropológica da imagem", sua possibilidade de desvincular a leitura dos sentidos clássicos mais do que reforçá-los (cartões-postais se misturavam a recortes de jornais e revistas e reproduções fotográficas de afrescos, capelas, frisos e esculturas diminutas) (tradução de Vera Ribeiro, Contraponto, 2013, p. 386-387).
3) Outro contemporâneo que capturou de forma singular esse jogo da des-hierarquização das referências é Slavoj Zizek (como fica evidente, por exemplo, em sua mistura de Kung Fu Panda e Mozart). Mas a semelhança não é apenas de analogia, e sim de método - seu esforço de resgatar as premissas da investigação psicanalítica é deliberado, com uma ênfase na construção de uma "merdologia", uma "dreckologia" do contemporâneo, uma cartografia de seus detalhes negligenciados ou recalcados ("Deus está nos detalhes", dizia Warburg), desde Hollywood até as perversões da dialética hegeliana (e num nível ainda mais subterrâneo é possível observar que também com Zizek há aquela "impossibilidade de se afastar do consultório" que Peter Gay constatou em Freud: "Só me permito desfrutar das coisas quando consigo convencer-me de que esse gozo serve para alguma coisa, serve a uma teoria", escreve ele).   

sábado, 11 de janeiro de 2014

Uma espécie de amor

Abu Nazir e Nicholas Brody
1) Muito antes de Freud surgir com o conceito de transferência, a complexa relação entre aquele que fala e aquele que escuta (ou aquele que faz falar) já era incansavelmente explorada - o misto de perversão e espelhamento que ocorre em uma sessão de tortura, na Inquisição ou nos regimes totalitários do século XX. Boa parte da ficção e do ensaísmo de Herta Müller, por exemplo, busca a complexificação ficcional e discursiva desse momento que mistura sedução e violência, com o interrogador de O compromisso - com sua proximidade corporal, os fragmentos de saliva saltando de sua boca - sendo a imagem mais emblemática dessa mescla de invasão política e sexual (algo que se encontra também na ficção de Danilo Kis e Bolaño). 
2) Assim como Charcot diante das histéricas ou os inquisidores diante das bruxas, o interrogatório político no totalitarismo também passa por uma dimensão terapêutica - ou seja, um desejo de conversão, de intervenção, que vai para além do corpo físico daquele que sofre. Foucault leva à dimensão da sexualidade essa constatação óbvia na dinâmica da tortura: o que está em jogo não é a eliminação do discurso, mas sua multiplicação e o progressivo controle e manutenção desse excesso de discurso. Como aponta Carlo Ginzburg sobre os andarilhos do bem, há um breve e raro momento no qual o discurso dos capturados surge ainda cru, e é precisamente essa crueza o signo da ilegibilidade dessas "vidas infames" diante do poder.
3) Numa cena do décimo episódio da segunda temporada do seriado Homeland, Abu Nazir, o "terrorista" responsável pela tortura e conversão do soldado americano Nicholas Brody, revela uma descoberta: "às vezes, quando você está quebrando um homem, uma transferência emocional acontece; é uma espécie de amor". Abu Nazir parece seguir em parte a argumentação desenvolvida por Bataille ao longo de anos: a tortura tem uma espécie de eficácia ontológica, na medida em que desnuda o ser humano de suas camadas feitas de civilização e repressão - a tortura faz parte, portanto, da própria constituição do que é ser humano (em relação a si e em relação aos outros), costurada aos diversos projetos de sociedade e viver-junto desenvolvidos ao longo daquilo que se chama história (daí a emergência desconfortável desse ponto cego que reúne desejo, violência, morte, sexualidade e ficção).

sábado, 4 de janeiro de 2014

Olhar infalível

Ataque histérico fotografado por Albert Londe, La Salpêtrière, 1885
1) Se o "fantástico de biblioteca" de Foucault é uma das fórmulas que servem para indicar a disponibilidade histórica do paradigma do arquivo (que está no livro de Flaubert sobre Cartago, mas também no trato de Freud e Ginzburg com o discurso das bruxas), é no conjunto da História da sexualidade que o mesmo Foucault tentará reunir todos esses fios soltos, numa aproximação direta com Freud. Foucault escreve que "o sexo tornou-se o alvo central de um poder que se organiza em torno da gestão da vida, mais do que da ameaça de morte"; "saúde, progenitura, raça, futuro da espécie, vitalidade do corpo social, o poder fala da sexualidade e para a sexualidade" (História da sexualidade I, a vontade de saber, tradução de Maria Thereza Albuquerque e J.A. Albuquerque, Graal, 1988, p. 138).
2) Foucault argumenta que Freud foi fundamental para essa "colocação em discurso" da sexualidade, uma coerção dos afetos travestida de liberdade, uma tática de continuidade dos dispositivos clássicos de poder travestida de ruptura. Seguindo a trilha foucaultiana, Didi-Huberman retrocedeu alguns anos e mostrou que esse travestimento epistemológico já estava em funcionamento com Charcot e seu teatro das histéricas no Hospital da Salpêtrière (com o ganho adicional de mostrar que o "fantástico de biblioteca" não opera apenas nos textos - as memórias de Schreber ou os relatórios da Inquisição - mas também nas imagens). As fotografias das histéricas, argumenta Didi-Huberman, também capturam um momento de mescla entre o elemento passivo e o ativo, o médico que molda as poses e age sobre o corpo doente e a histérica que se dá à visão (o olhar infalível da câmera - a técnica, a máquina -, e o olhar neutro e interpretativo de Charcot, misto de "médico, detetive, curador e colecionador").
3) Semelhante ao orientalismo tal como diagnosticado por Edward Said, esse olhar sobre as histéricas não era tanto o relato do descobrimento de um novo mundo, e sim uma espécie de ficção, de reposicionamento e controle de aspectos que escapavam da razão instrumental (sem que isso indique um ocultamento ou deformação, muito pelo contrário, pois é a partir do excesso de exposição que a lógica de apreensão e catalogação pode funcionar de forma efetiva). Orientalismo, bruxaria e sexualidade formam planos de longo alcance que são, volta e meia, refinados por análises pontuais, como a que Didi-Huberman faz de Charcot, a que Freud faz de Schreber ou a que Carlo Ginzburg faz de Menocchio em O queijo e os vermes (no contexto do confronto entre "Velho" e "Novo" mundo, Serge Gruzinski apreende bem a dinâmica desses planos de longo alcance, primeiro com a ideia da "guerra das imagens" e, segundo, com a hipótese diacrônica: "de Cristóvão Colombo a Blade Runner, 1492-2019).   

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Fantástico de biblioteca

Hans Baldung, Bruxas, 1508, detalhe
1) O problema de Carlo Ginzburg com as bruxas e os inquisidores é um problema de arquivo e de leitura - daí a validade da lição de Auerbach de "ler lentamente" (e no caso das analogias feitas por Freud entre as bruxas e os paranoicos o problema também está posto da mesma forma, uma vez que tudo que resta das bruxas - ao menos daquelas bruxas medievais - é justamente o arquivo). Daí a produtividade da descoberta de Ginzburg, segundo ele próprio: nem a versão da bruxa, nem a versão do inquisidor, mas um processo progressivo de mescla desses registros, algo que se dá no tempo, no arquivo e no discurso. Para Freud, o caso Schreber funcionaria não apenas como uma ligação efetiva entre o discurso do paranoico e das bruxas (análogos na riqueza de detalhes e sobretudo na carga religiosa e sexual das imagens), mas também como a inauguração dessa cena hermenêutica feita de texto, discurso e arquivo (porque Freud faz questão de frisar que sua análise do caso Schreber foi pautada quase que exclusivamente pela leitura das Memórias).
2) Isso adquire importância na medida em que se pensa que os casos clínicos de Freud, que são e serão todos cenas de interpretação, de leitura, só existem hoje como arquivo, da mesma natureza daqueles casos de interrogatório investigados por Carlo Ginzburg. Talvez consciente dessa dinâmica temporal (como fica provado em vários trechos de sua obra, especialmente no que diz respeito às cartas enviadas a Fliess, por exemplo, ou nos vários prefácios para reedições, já no fim da vida), Freud intercalou a atividade clínica com a interpretação cultural, ou ainda, a interpretação distanciada do arquivo, forçosamente distanciada, dada a natureza textual desse acesso (assim como foi o caso com as Memórias de Schreber, também ocorreu com Dostoiévski, Leonardo da Vinci, Jensen ou Hoffmann).
3) Essa interpretação forçosamente distanciada do arquivo recebeu de Foucault, em texto sobre Flaubert, o nome de "fantástico de biblioteca" (mas ocupa posição central também na discussão sobre as "vidas infames", que são apreendidas de forma tênue na trama do arquivo). Foucault rastreia em Flaubert uma espécie de coleção de monstros e fantasmagorias resgatados dos interstícios do arquivo da história,  elementos que são transfigurados pela ficção e, a partir disso, ganham nova vida (uma vida que está entre o  imaginativo e o documentativo). "O quimérico", escreve Foucault, "nasce da superfície negra e branca dos signos impressos, do volume fechado e poeirento que se abre para um voo de palavras esquecidas" (Michel Foucault. "Posfácio a Flaubert (A Tentação de Santo Antão)" (1964). Estética: literatura e pintura, música e cinema, tradução de Inês Autran Dourado Barbosa, Forense Universitária, 2001, p. 79).