terça-feira, 30 de junho de 2020

Krise und Kritik


1)
Outro ponto decisivo no que diz respeito ao contato entre Benjamin e Kraus é a obra de Bertolt Brecht, que ambos admiravam abertamente. Wizisla, em seu livro sobre a amizade Benjamin/Brecht, cita o juízo positivo de Kraus, que via em Brecht "o único autor alemão que deveria ser considerado atualmente", porque se esforça em dar uma forma artística válida à "consciência de época" do mundo do pós-guerra, com o intento de "superar na linguagem a banalidade da vida reproduzida" (p. 207) (Wizisla não dá detalhes acerca da data e da proveniência do juízo de Kraus sobre Brecht - está citando um estudo de Krolop, Sprachsatire als Zeitsatire bei Karl Kraus -, mas de imediato salienta que Kraus, ao contrário de Benjamin, não aprovava nem as posições políticas, nem a teoria teatral de Brecht).

2) Kraus, contudo, pouco se mistura - fala do alto de Die Fackel e do alto dos palcos nos quais arma sua mesa, sua iluminação e oferece suas performances. Brecht e Benjamin, por outro lado, estão em contato intenso e debatem não só a "validade" das ideias de Kraus, mas os melhores procedimentos de utilização dessas ideias em seus próprios trabalhos. O "método da citação sem comentário" é o menos imitável de todos, escreveu Brecht sobre Kraus - é o que aponta Wizisla, e continua:

"Benjamin considerava a citação um 'procedimento polêmico básico de Kraus': uma citação 'chama a palavra por seu nome, arranca-a destrutivamente do contexto e, assim, retorna à sua origem'. Em uma variante da exposição 'Problemas de sociologia da linguagem' (1935), escrita no outono de 1934, diz: 'Nestes momentos é Karl Kraus quem está levando a cabo, em Fackel, com polêmica maestria, a crítica política da linguagem, a qual a ciência acadêmica ficou devendo por razões evidentes'. Na defesa de Brecht contra a acusação de plágio, Benjamin também adotou a posição de Kraus" (p. 280). 

3) Wizisla fala do Livro das Passagens, de Benjamin, precisamente o projeto máximo da citação (iniciado em fins da década de 1920), salientando, contudo, que já a tese de Benjamin - O drama barroco alemão - já tinha consistido "quase completamente de citações" (as palavras são de Benjamin em carta a Scholem de dezembro de 1924). Em seus respectivos trabalhos, tanto Brecht quanto Benjamin elaboraram conscientemente a influência de Kraus (a polêmica, a figura do intelectual, a pureza da linguagem, o uso crítico da citação), um elemento que inclusive fazia parte dos debates técnicos para o desenvolvimento da revista que nunca chegou a existir, Krise und Kritik

sexta-feira, 26 de junho de 2020

Kraus, Huysmans


1) Por alguma razão, o estilo de Kraus (ele próprio e também seu fantasma tal como evocado por Canetti e Benjamin) me faz pensar em Huysmans, o escritor francês Joris-Karl Huysmans. Penso também na incerta aproximação temporal - Huysmans morre em 1907, e até esse ponto Kraus já havia fundado Die Fackel e publicado dois livros (Die demolierte Literatur, 1897, e Eine Krone für Zion, 1898). Mas o que decide a questão é a insistência em uma dificuldade do estilo, algo que diz respeito tanto à ligação quase religiosa com a língua de ambos quanto ao desejo de construir uma comunidade de leitores devotos e dedicados.

2) Aprofundando, é possível encontrar em Kraus e Huysman um tom compartilhado de pessimismo, ironia e deboche, sem esquecer a dificuldade da linguagem e acrescentando, como terceiro elemento, uma erudição que não se apresenta apenas pelo acúmulo de referências, mas pelo jogo associativo que leva de uma a outra. Ambos são profundamente pessimistas e descrentes dos caminhos disponíveis para seus contemporâneos - Kraus e Huysman reconhecem a estupidez de seus pares e ambos escreveram centenas de páginas com o intuito de denunciar (e troçar) tal estupidez.

3) O aspecto religioso é também central: o judeu Kraus faz uma conversão secreta ao catolicismo, recebendo o batismo em 8 de abril de 1911; Huysman, nascido católico, abandona a igreja, abraça o "satanismo" (centro irradiador do romance Là-bas, de 1891) e volta à religião nas últimas obras. Ambos investiram também no autorretrato, na auto-representação do autor como personagem - Huysman com Durtal, protagonista de sua trilogia final de romances; Kraus com o personagem central de sua grande obra, Os últimos dias da humanidade, chamado de "o Eterno Descontente".

*

(em esforço análogo ao que tento aqui, mas de modo mais amplo e bem-sucedido, Francisco Álvez Francese aproxima Kraus de Oscar Wilde, aqui)

terça-feira, 23 de junho de 2020

Jameson, 1990


1)
Mantendo em mente aquilo que escreve Susan Buck-Morss sobre a tríade Kraus-Benjamin-Adorno, é instrutivo resgatar a abordagem posterior de Fredric Jameson, em seu livro de 1990, O marxismo tardio: Adorno, ou a persistência da dialética. A filosofia de Adorno é "dodecafônica", escreve Jameson, com "configurações e constelações que ela, ao mesmo tempo, descobre em seu caminho e inventa". O que há de "radicalmente original" em Adorno, continua Jameson, "como prática e como micropolítica filosófica" (que "já não tem muito em comum com Benjamin") é o seu "desenvolvimento da sentença dialética", cujo precursor "mais verossímil" não seria nem Marx, nem Nietzsche, nem Benjamin, "mas o extraordinário escritor retórico Karl Kraus".

2) Para Jameson, Adorno encontra em Kraus (e esse é um dos pontos principais que permite - como um condutor - a influência de Benjamin sobre ele) um "paradigma de sintaxe expressiva", uma linguagem filosófica que está em constante processo de auto-estranhamento (é preciso lembrar o livro de Jameson sobre Brecht, de 1998, e ter isso em mente quando ele recorre ao formalismo russo algumas páginas depois de trazer Kraus, nesse mesmo livro sobre Adorno que estou comentando). De Kraus, vem certa "maquinaria de estrutura de sentenças", continua Jameson, que é mobilizada "para transmitir significado bem além de seu conteúdo imediato como mera comunicação e denotação".

3) Jameson completa afirmando que a Kraus se aplica a ideia benjaminiana de uma "mimese não representacional", que será importante também para Adorno (e Jameson busca traçar as mudanças da importância de tal conceito na obra de Adorno até a Dialética negativa, de 1966, passando tanto pelos trabalhos com Horkheimer quanto por Minima moralia). Jameson defende ainda que tanto Benjamin quanto Adorno usam sistematicamente certos "termos mágicos", "evocados para explicar tudo, sem, por sua vez, serem explicados" - mas que, ao mesmo tempo, libertam "um pensamento e uma linguagem", "permitindo-lhes efetuar seu trabalho" (Jameson singulariza o termo "aura" para Benjamin e "mimese" para Adorno; é possível acrescentar que esse abandono à potência "mágica" da linguagem e da conceitualidade remete também a Kraus).


(Fredric Jameson, O marxismo tardio: Adorno, ou a persistência da dialética, trad. Luiz Paulo Rouanet, UNESP/Boitempo, 1997, p. 89-91)

segunda-feira, 22 de junho de 2020

Adorno, 1931


1)
Em seu livro Origin of Negative Dialectics, Susan Buck-Morss fala do decisivo ano de 1931, quando Horkheimer se torna diretor do Instituto de Pesquisa Social e oficializa sua leitura hegeliana de Marx (diretamente influenciada pelo Lukács de História e consciência de classe), atravessada por Freud. Adorno, por sua vez, continua Buck-Morss, apesar de próximo de Horkheimer, vai por outro lado: ao invés da "teoria social", Adorno mantém seu foco em "problemas de filosofia e estética", e "nisso a influência de Walter Benjamin foi decisiva". 

2) Adorno começa a encontrar Benjamin regularmente em Frankfurt a partir de 1928, uma "série de discussões teóricas" que foram "um ponto de virada para Adorno", escreve Buck-Morss, que afirma ainda que a partir de 1928 a terminologia de Adorno se modifica, absorvendo conceitos de Benjamin (o próprio Benjamin comenta essas reuniões de Frankfurt em uma carta para Adorno de 31 de maio de 1935). "Para alguém como Adorno", continua Buck-Morss, que, "na esteira de Kraus", via "a linguagem como 'representação' da verdade", "uma mudança de vocabulário tinha uma importância teórica de primeira grandeza" (o único exemplo dado por Buck-Morss é um ensaio de Adorno de 1928, publicado em Moments Musicaux, intitulado "Schubert").

3) Buck-Morss ainda cita um ensaio de Adorno dedicado a Kraus (ao seu livro Sittlichkeit und Kriminalität, de 1902), incluído no terceiro volume de suas Notas sobre literatura. Segundo Buck-Morss, as teses de Kraus sobre a necessidade de independência total do indivíduo diante da sociedade e do Estado (o livro de Kraus lida especialmente com a relação entre moralidade sexual e criminalização judicial) foram determinantes não apenas para Adorno, mas para a "Escola de Frankfurt" como um todo, com sua crítica abrangente das técnicas de domesticação e controle dos afetos, dos gestos e das condutas (em outras palavras, via Adorno se dá a ligação entre Kraus e a Escola de Frankfurt - algo que se amplia para o período pós-guerra, especialmente considerando a marca krausiana em um livro de Adorno como Minima moralia).    



Susan Buck-Morss, Origin of Negative Dialectics, The Free Press, 1979, p. 21, 198)

quinta-feira, 18 de junho de 2020

Benjamin, 1931


Um dos pontos mais fascinantes do ensaio de Walter Benjamin sobre Karl Kraus (publicado em 1931 e intitulado simplesmente "Karl Kraus") é sua capacidade de apontar uma série de caminhos e lidar com uma série de tópicos que não necessariamente estão ligados à poética de Kraus. São caminhos e tópicos que levam a diferentes autores/textos e a diferentes momentos da poética do próprio Benjamin - ao falar de Kraus, ele fala (e permite falar) da literatura e da arte como um todo (ou seja, a ideia de que um ponto específico da rede intertextual da tradição pode levar, potencialmente, em direção a todos os outros). Antes de ser sobre Kraus, o ensaio de Benjamin é uma reflexão sobre a crítica e o pensamento, sobre a insistência em uma vertente digressiva e associativa da crítica.

1) Em primeiro lugar, Kraus serve a Benjamin como símbolo do jornalismo (da esfera pública, do Iluminismo e da "prece matutina" de Hegel), meio de vida (e de arte) no qual o próprio Benjamin estava diretamente implicado (e como desdobramento, a reflexão sobre a posição do artista/escritor na sociedade, algo fundamental nos textos de Benjamin sobre Brecht ou Gide (entrevistado por ele em 1928), por exemplo);

2) em segundo lugar, a devoção de Kraus à linguagem ("não domino a língua, ela me domina completamente", diz um de seus aforismos), em seu lado tanto material quanto metafísico, se liga às preocupações antigas de Benjamin com o tema, como em seu ensaio "Sobre a linguagem em geral e a linguagem do homem", de 1916 (um desdobramento possível é a questão da tradução, inaceitável para Kraus, exercitada e teorizada por Benjamin - o primeiro volume de sua tradução (em parceria com Franz Hessel) de Proust sai em 1926, o segundo em 1930);

3) em terceiro lugar, a posição social de Kraus e sua preocupação com o estilo/linguagem formam uma sorte de imagem dialética diante da qual Benjamin pode exercitar seu procedimento crítico mais atacado por seus contemporâneos: o cruzamento da visão materialista com a visão teológica, marxismo e cabala (Brecht, Adorno e Scholem sempre se escandalizaram com essa peculiar mistura e sempre deixaram isso claro a Benjamin). 

quarta-feira, 17 de junho de 2020

O mal menor


Walter Benjamin publica seu ensaio sobre Karl Kraus em 1931 (quando sai a primeira adaptação cinematográfica de Berlin-Alexanderplatz, de Döblin), ano-chave em sua vida (está estabelecido em Berlim, com razoável conforto e razoável quantidade de trabalho pago - em carta a Scholem ele diz que conseguiu, durante essa temporada em Berlim, não só reunir todos seus pertences em um mesmo lugar - livros, coleções, móveis - mas também ampliar sua biblioteca de 1.200 para 2.000 itens). 

O ano de publicação do ensaio sobre Kraus é também um ano de inflexão na vida de ambos: o projeto de Hitler fica cada vez mais claro e o clima de intolerância se faz cada vez mais presente (em poucos meses Benjamin se dá conta que sua carreira como crítico estará ameaçada na Alemanha, já que os veículos da imprensa começam pouco a pouco a recusar seus textos; do lado de Kraus: ao observar a ascensão de Hitler, Kraus investe na perspectiva do "mal menor" (Politics of the Lesser Evil, como escreve Anton Pelinka) e passa a apoiar o político de extrema-direita Engelbert Dollfuss - esse apoio escandaliza não só Benjamin, mas vários outros intelectuais).

O ensaio de 1931, contudo, é apenas o efeito de superfície de uma relação que Benjamin estabelece com Kraus ao longo de muitos anos - Die Fackel, a revista de Kraus, começa a ser lançada em 1899, e Benjamin se transforma em seu leitor já muito cedo, incorporando em seus textos menções tanto a Kraus quanto a temas e polêmicas levantadas por ele em sua revista. É decisivo perceber que o ensaio de Benjamin sobre Kraus não é apenas sobre o objeto imediato declarado no título, tocando em uma série de pontos que Benjamin desenvolve antes e depois em sua obra: o messianismo, a relação entre materialismo e teologia, a filosofia da linguagem, o comprometimento político do escritor/artista e, por fim, a relação subterrânea da alegoria barroca com a linguagem crítica das primeiras décadas do século XX.

terça-feira, 16 de junho de 2020

A balança de precisão

Sabemos da insistência de Roberto Calasso em sua leitura de Karl Kraus, apresentada em vários pontos de sua obra. Dois dos ensaios de Os 49 degraus são quase que inteiramente dedicados a Kraus, "Da opinião" e "A guerra perpétua"; no primeiro, Calasso afirma que Kraus antecipa a "dialética do Iluminismo de Adorno" com o aforismo: O progresso faz porta-moedas com couro humano, acrescentando que "Kraus jamais se interessou por descrever essa dialética" e "se temos razão para ser gratos a Adorno por tê-lo feito, reconheçamos juntos que as implicações das metáforas de Kraus continuam a multiplicar-se bastante além do ponto em que a engenhosa explicitação de Adorno começa a rodar no vazio" (trad. Nilson Moulin, Cia das Letras, 1997, p. 59). Calasso parece dizer que, se Adorno peca pelo excesso, Kraus peca pela falta - e essa falta é o que garante a germinação de sua obra no futuro.

Embora a comparação entre Adorno e Kraus por parte de Calasso seja breve e se encerre no ponto apresentado acima, é possível ressaltar outra deriva: tanto em seus aforismos quanto em sua longeva revista Die Fackel, Kraus retornou inúmeras vezes à questão da tipografia, do signo marcado na página em branco, da materialidade mínima da escrita (revista "onde aparecem", escreve Calasso, "ensaios memoráveis sobre a vírgula, o apóstrofo, o sujeito e o predicado, a rima, os erros de imprensa", p. 70). Esse pano de fundo pode ser evocado para uma releitura de um dos ensaios mais "atípicos" de Notas de Literatura I, de Adorno, intitulado justamente "Sinais de pontuação" (de resto, o próprio Adorno cita Kraus no ensaio, ainda que rapidamente).

Existe uma "sensibilidade artística" em Kraus (e é ele quem usa a expressão várias vezes em seus aforismos) que atinge não só Calasso e Adorno, mas tantos outros, especialmente Canetti (que nomeia a partir de Kraus um dos volumes de suas memórias - Die Fackel im Ohr) e Kafka (a cantora Josefina é Karl Kraus). Em seus aforismos, Kraus fala da "balança de precisão" de sua "sensibilidade artística", que recusa toda palavra muito leve ou muito pesada, inadequada, sutilmente fora de esquadro: "devemos escrever sempre como se escrevêssemos pela primeira e pela última vez" (Ditos e contraditos, trad. Renato Zwick, Arquipélago, 2019, p. 78-79).  

sexta-feira, 5 de junho de 2020

Walser, Goethe

"Jakob von Gunten foi uma verdadeira decepção para o seu autor. Alienou-o dos amigos. O livro desapareceu das livrarias e nem o público nem os críticos literários lhe deram atenção. E quanta coisa aí se poderia descobrir! Marthe Robert, que traduziu o romance para o francês, observa a sua estrutura de conto de fadas. Jakob é o príncipe que, disfarçado, ou sob o efeito de um encantamento, tem que percorrer o mundo e passar por uma série de provas.

O Instituto Benjamenta descrito no livro torna-se o local das provas e assume um significado mítico. Pode-se também encontrar no romance motivos bíblicos, o do jovem rico que socorre o pobre. Esse romance-diário é também um romance de formação e educação, o Instituto Benjamenta é uma espécie de 'província pedagógica'. Robert Mächler reproduz um comentário de Albert Steffen, que se torna mais tarde escritor e que visitara Robert Walser quando ainda se encontrava no liceu, em 30 de outubro de 1907. 'Na mesa havia o Wilhelm Meister, de Goethe, enorme volume de aparência antiquada. Estava aberto e visivelmente era lido com frequência. Walser falou do estilo de Goethe e informou que estava estudando Wilhelm Meister Wanderjahre (Os anos de viagem de Wilhelm Meister) tanto na forma como no conteúdo. Era para ele um modelo ao qual voltava sem cessar'.

Esta referência a Wilhelm Meister é interessante. Como Goethe, Walser estava à frente do seu tempo ao deplorar a mecanização estéril, a comercialização e o declínio dos valores espirituais. Hoje compreendemos o que queria dizer Walser ao qualificar a instituição onde viveu de 'antecâmara da vida'".


Siegfried Unseld, O autor e seu editor, trad. Áurea Weissenberg, Rio de Janeiro, Ed. Guanabara, 1986, p. 249.

segunda-feira, 1 de junho de 2020

Crônicas italianas


1)
Sabemos que as Crônicas italianas de Stendhal foram escritas tendo como base uma série de manuscritos que o escritor francês comprou/copiou ao longo de suas várias temporadas na Itália. As Crônicas são textos híbridos, heterogêneos - contam com a voz do autor (que indica cortes e intervenções com frases como "me permito poupar ao leitor os detalhes mais enfadonhos de um trecho que se estende por 40 folhas") e também com muitos trechos citados literalmente (com aspas) e muitos outros parafraseados (Stendhal aprecia manter vários termos no original em italiano e utilizar os parênteses como um espaço de contextualização e explicação para o público francês do século XIX).

2) Leonardo Sciascia não perde oportunidade de citar Stendhal como um dos escritores favoritos e, no interior de sua obra, singularizar precisamente as Crônicas italianas. Não apenas o estilo de Sciascia se esforça para se aproximar daquele de Stendhal; no que diz respeito às Crônicas, todo o esforço de coleta, exposição, edição e narração de um material de difícil acesso por parte de Stendhal é deliberadamente resgatado por Sciascia: também ele pinça a história pitoresca e, no interior dela, um conjunto de detalhes reveladores; também Sciascia, seguindo Stendhal, faz referência com frequência ao preconceito dos historiadores a certos eventos "menores" (sobretudo histórias de tribunal, como em 1912+1 ou Portas abertas, de Sciascia, e boa parte das Crônicas de Stendhal - por essa perspectiva, a deriva que Carlo Ginzburg inaugura com Menocchio em 1976 é decisiva).

3) Sebald, como grande leitor que era, reconhecia essa afinidade decisiva entre Sciascia e Stendhal, fazendo uso desse conjunto complexo de elementos (arquivo, estilo, micro-história) em sua própria poética. Certamente não é por acaso que Sebald posicione no mesmo livro (Vertigem, de 1990) narrativas que incorporam tanto Sciascia quanto Stendhal - Sebald era diabolicamente atento às lições subterrâneas da montagem, ou seja, aquele lampejo de sentido que irrompe do atrito entre dois corpos estranhos. Sebald também une as duas narrativas (e os dois autores) a partir do recurso ao retrato feminino: em Stendhal, Sebald incorpora à narrativa o retrato de uma de suas amantes, Angela Pietragrua; para Sciascia, o narrador faz referência à capa da edição italiana de 1912+1, com uma pintura de Julio Romero de Torres.