Manuscrito de Stendhal: viagem à Itália, 1811 |
1) Há qualquer coisa do aleph de Borges no método da desconstrução: dissecar, pouco a pouco, todo um universo a partir de um pequeno resíduo, uma leve falha, uma breve lacuna surpreendida no tecido de uma argumentação. Como naquele fenomenal exercício de leitura que J. Hillis Miller realiza, desconstruindo a desconstrução de Paul de Man no aparentemente simples movimento de ler e reler e virar do avesso um único parágrafo.
2) Eis um parágrafo de Stendhal, citado no post anterior, que aponta para uma breve interrupção na narrativa, quase como uma nota de rodapé incorporada ao texto - uma história que Stendhal não podia deixar de fora, confiante na capacidade de proliferação desse pequeno enxerto. A qualidade estética desse fragmento, contudo, é imensa: é com ele que Stendhal articula um horizonte feito apenas de insinuações, contrapondo duas nações e suas contradições, seus impasses - essa coisa chamada de pilhéria ou caricatura não era conhecida nesse país de despotismo cauteloso, escreve Stendhal, e com essa frase resolve a definição da França (pela afirmação) e também a da Itália (pela negação, ou melhor, pela ausência).
3) A ideia de contrabando, a percepção da porosidade das fronteiras, da frágil arbitrariedade da marcação das fronteiras, os fluxos erráticos das influências recíprocas, tudo isso está no parágrafo de Stendhal. A caricatura, moeda corrente na rotina francesa, é absorvida como revolucionária pela rotina italiana - e não custa lembrar a reflexão de Derrida sobre Baudelaire, focando justamente a troca impura e o contrabando na imagem da moeda falsa (título de um poema em prosa de Baudelaire). Uma troca que ocorre a partir da imagem, da imagem perversa, a imagem como suplemento do real, transfiguração do real (o arquiduque que jorra trigo de um furo na barriga). Essa ênfase na imagem desfigurada da caricatura é um dos eixos da modernidade - Dolf Oehler se ocupou do contato entre Baudelaire e Daumier; Walter Benjamin escreveu tanto sobre um colecionador (Eduard Fuchs) quanto sobre artistas (George Grosz, Heartfield).