segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Vida dupla

1) É possível pensar que a fascinação de Georges Perec por Ellis Island - seu interesse, sua curiosidade - tenha relação com a infância, com sua infância (a infância como dimensão do desconhecido, do irrecuperável). Daí também a possibilidade de contato entre Perec e Meyer Schapiro por meio da Ellis Island, uma vez que para Schapiro a ligação entre infância e a ilha é direta. No caso de Perec, contudo, é preciso visitar sua autobiografia ficcional, W ou le souvenir d'enfance, publicada em 1975 (poucos anos antes da realização do documentário sobre a ilha, o que poderia levar à hipótese de W como trabalho prévio, como preparação do terreno para o documentário; ou ainda, considerar o documentário como uma continuação de W por outras vias, para além do autobiográfico).
2) A infância sempre parece um continente inexplorado para quem dela se aproxima. A infância é o momento de experimentação com a linguagem por excelência, uma etapa da vida na qual se toma liberdade diante das regras da língua – algo que pode ser tanto construtivo quanto destrutivo. A ideia está em Walter Benjamin, na junção de sua permanente preocupação com as origens da linguagem - e da vida, daí a infância - e aquilo que chamou "caráter destrutivo", uma espécie de pulsão que percorre todo trabalho criativo. O brinquedo, a tradução, a língua original, a alegoria, a imagem, a citação - aglutinações sensíveis temporárias de um mesmo fenômeno (é o que Giorgio Agamben retoma quando fala em infância e história).
3) O que é a infância de Jesus, segundo Coetzee? Um exercício em torno dessa constatação do duplo pertencimento infância x linguagem, decorrente de outro, destruição x construção. Não só A infância de Jesus, mas também A vida escolar de Jesus - reflexões de Coetzee, a partir tanto de Cervantes quanto de Dostoiévski, acerca da literatura como laboratório único na contemporaneidade de reflexão sobre a linguagem não-utilitária, a linguagem como jogo, como possibilidade de implosão do automatismo cotidiano (a infância como permanente emergência do caráter destrutivo). Por que Perec dá o nome W ao seu livro? Por causa do trocadilho, do jogo com a língua, double vé/vie, vida dupla, duplo registro, construir e destruir, seguir e retornar, simultaneamente. 

segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

Errância, esperança

1) Meyer Schapiro nasceu no que hoje é a Lituânia, em 1904. Seu pai foi para Nova York em 1906 para trabalhar. Uma vez estabelecido, chamou a família no ano seguinte. Na Ellis Island, essa fábrica de homogeneização e simplificação de significantes, seu nome foi mudado de Meir para Meyer. Schapiro morreu em 1996, com 91 anos. Ele morreu na casa em Greenwich Village na qual morava desde 1933. 
2) Em 1979, Georges Perec escreve o roteiro - ou talvez algo mais solto do que a palavra "roteiro" pode sugerir - do documentário que receberá o título Récits d'Ellis Island: histoires d'errance et d'espoir (transmitido pela televisão francesa pela primeira vez em novembro de 1980). Perec faz o comentário que se ouve na primeira parte e também conduz as entrevistas apresentadas na segunda parte. 
3) O filme é dirigido por Robert Bober, que foi assistente de Truffaut em seus três primeiros filmes. O documentário feito com Perec é dividido em duas partes: a primeira, chamada Traces, fala do controle migratório na ilha de 1892 a 1924. A segunda parte, Mémoire, é o registro de testemunhos e depoimentos dados por imigrantes judeus e italianos que entraram nos Estados Unidos por Ellis Island. Uma oportunidade perdida: ver Georges Perec entrevistando Meyer Schapiro em Nova York, em 1979.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

31 de maio de 1935

A fantástica carta que Walter Benjamin escreve a Adorno em 31 de maio de 1935. Escreve de Paris, de seu quarto no Hotel Floridor, que ainda existe, no número 28 da Place Denfert-Rochereau. Benjamin está falando do seu trabalho, como normalmente faz, mas agora fala especificamente do Livro das Passagens, fala das referências que o levaram até esse projeto (que o ocupa desde 1927). É digno de nota também o aparecimento de Brecht, sempre um ponto de controvérsia entre Benjamin e Adorno (você "veria como uma verdadeira desventura se Brecht passasse a exercer alguma influência sobre esse trabalho", escreve Benjamin). Da longa carta talvez o que mais me impressiona, hoje, relendo-a, é essa cena de leitura de Benjamin diante de Louis Aragon e de seu O camponês de Paris: "do qual nunca pude ler mais que duas ou três páginas na cama sem que meu coração começasse a bater tão forte que eu precisasse pôr o livro de lado. Que advertência! Que indício dos anos e anos que haveriam de escoar-se entre mim e tal leitura. E no entanto meus primeiros esboços para as Passagens datam dessa época". (Correspondência 1928-1940 Adorno-Benjamin, trad. José Marcos Mariani de Macedo, UNESP, 2012, p. 155). 

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Criaturas

1) Franco Rella - no livro Dall'esilio, de 2004 - fala de uma "pietas creaturale" em Lucien Freud, uma exposição do corpo e da carne que oscila entre o fascínio e a repulsa (algo que Rella também investiga na obra de Kafka e Proust, apontando momentos nos quais o corpo e a carne - especialmente feminina - são comparados a animais, vegetais, figuras intermediárias - em Proust, o exemplo mais paradigmático: À l’ombre des jeunes filles en fleurs). 
2) O capítulo no qual Rella fala da "pietas creaturale" chama-se La nuda vita, a "vida nua", e ainda que cite Agamben rapidamente em nota, no início, é um esforço de expansão de sua teoria em direção a alguns textos literários (Bataille, Kafka, Proust, Simenon, Louis Aragon). No uso de Rella, há uma diluição (ou expansão) dos sentidos possíveis da vida nua, que em Agamben indica casos específicos e extremos, como os refugiados e o Muselmann (a partir da leitura dos escritos de Primo Levi).
3) A junção entre a "vida nua" e a noção de "criatura", de "vida criatural", é proposta também por Eric Santner em livro de 2006, On Creaturely Life: Rilke, Benjamin, Sebald. Os pontos de contato entre os projetos de Rella e Santner são diversos, apesar dos estilos e métodos de investigação e referência bem diversos (mais ensaístico em Rella; mais acadêmico em Santner). Santner não recorre a Lucien Freud, mas recorre a Francis Bacon (um de seus retratos ilustra a capa da primeira edição). Santner estabelece Rilke - Elegias de Duíno - como ponto de partida, sua postulação do contato entre humano e animal a partir da categoria de "criatura", e daí em direção a Heidegger, Agamben, Foucault e, finalmente, Sebald (o uso dos corpos, a melancolia, a tentação do inorgânico).  

sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Faustianos, anti-faustianos

"O Goethe que, com uma coragem singular - como recorda Thomas Mann - acrescenta sua assinatura à condenação à morte de um infanticida, sabia bem qual sentido têm os sacrifícios humanos. E nesse sentido Thomas Mann tinha razão ao escrever sobre Goethe 'como representante da era burguesa'. Por acaso o Fausto não é obra de um poeta faustiano? No instante em que lhe contrapomos os anti-faustianos Os demônios ou Os irmãos Karamazov, acabamos nos dando conta que a noção de 'grandeza' se deforma em nossas mãos a ponto de nos tornar incapazes de estendê-la. É verdadeiramente um problema de desmitologização. Trata-se de encontrar uma saída do beco dos grandes sacrificadores ou das grandes vítimas: e, para encontrar saída, não bastam os grandes sábios, uma vez que a história nos ensina o quão breve é a passagem da gnose ao maniqueísmo"

(Furio Jesi, Spartakus: simbologia da revolta, trad. Vinicius Honesko, SP: n-1, 2018, p. 122-123)

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Morte do inquisidor

1) Li recentemente mais um dos tantos livrinhos de Leonardo Sciascia - Morte dell'Inquisitore, de 1964. Mais um dos livrinho híbridos de Sciascia, "saggio romanzato", entre a crônica, o conto e a historiografia. Em muitos desses seus livrinhos, Sciascia parece fazer sempre a mesma coisa, sempre do mesmo jeito, mas é algo que funciona sempre. O narrador tem um estilo conciso e ao mesmo tempo opinativo, busca mostrar uma série de perspectivas de um mesmo evento ou biografia, e ainda assim encontra espaço para se manifestar, para estabelecer sua posição.
2) Em Morte dell'Inquisitore, Sciascia usa a história de Diego La Matina para abordar a Inquisição em sua atuação na Sicília. La Matina matou seu inquisidor com um golpe na cabeça, desferido com o auxílio de seus próprios grilhões. Sciascia, em sua narração, entra e sai de arquivos, documentos, ofícios e diários de personagens os mais diversos, desde o século XVII até o XX (no primeiro caso, personagens históricos envolvidos na dominação espanhola da Sicília; no segundo caso, historiadores da Inquisição de variadas nacionalidades - na nota que encerra o livro, Sciascia escreve: "já devo ter lido tudo que há para ler sobre a Inquisição na Sicília").
3) A partir de um destino individual muito preciso, de um acontecimento mínimo na vida já mínima de uma das tantas vítimas da Inquisição - algo que Carlo Ginzburg começa a fazer mais ou menos nos mesmos anos (seu primeiro livro, I benandanti, é de 1966), Sciascia apresenta um ensaio sobre a intolerância humana e também sua capacidade de resistência; um ensaio sobre os limites tanto do fanatismo quanto do desejo de liberdade. Sciascia sempre cita os iluministas em seus livros - Voltaire, Rousseau, D'Alembert -, um exercício de resgate que Sciascia opera também no nível das ideias e dos temas que escolhe (uma postura que vem de Montaigne, outro que é citado com frequência por Sciascia, seu continuador tanto na esfera de influência imediata do ensaio, saggio romanzato, mas também por conta de seu fascínio pelos extremos do humano, as situações de exceção - tanto aqueles de brutalidade quanto de elevação espiritual).