terça-feira, 30 de novembro de 2010
Simulações romanescas
segunda-feira, 29 de novembro de 2010
México
2) Quando Canclini fala das pesquisas que fez, com sua equipe, sobre os hábitos culturais na cidade, lembro de Os detetives selvagens: a cidade como labirinto, como cartografia cifrada, como tabuleiro, no qual jovens poetas jogavam com a literatura, a vida e a aceitação. Canclini fala que, segundo os informantes, a cidade é hostil. Preferem ficar em casa, vendo televisão, do que se deslocar para usufruir das instalações públicas (cinemas, teatros, livrarias, salões de dança, museus), porque sentem que estão de fora, que estão distantes e que nada daquilo lhes diz respeito.
3) A perambulação em Detetives, aparentemente banal, é, na realidade, a emergência de um ruído social, uma insistência, uma penetração forçada nos espaços obsoletos da cidade. Mais do que vagabundagem, os jovens escritores latino-americanos de Detetives levam para o espaço geográfico o traçado poético que marca seus cadernos. Essa é a construção em camadas que Bolaño utiliza em seu romance: a dinâmica da cidade, que exclui e absorve em igual medida, transforma-se em produto da escritura, que sustenta e movimenta o corpo desses literatos anônimos.
quinta-feira, 25 de novembro de 2010
Uma palavra
sábado, 20 de novembro de 2010
A história e as máquinas
Vilém Flusser, no livro A escrita (publicado em 1987), comenta que a inteligência artificial disporá de uma consciência histórica que superará de longe a nossa. Ela fará uma história melhor, mais rápida e variada. A dinâmica da história, escreve Flusser, se intensificará em direção ao inimaginável: cada vez mais coisas acontecerão, os acontecimentos se precipitarão e serão mais diversificados. Poderemos deixar a história por conta das máquinas automáticas e tomar conta de outras coisas, escreve Flusser. As máquinas escrevem mais rápido que seres humanos.
O corpo humano está sob questionamento, atravessado por possibilidades cada vez mais possíveis de suplementação. O corpo humano é alterado, tornado impuro: para as navegações sociais e comunitárias, temos as próteses de silicone, as lipoesculturas, os enxertos, as aplicações subcutâneas; para a sobrevivência (ou a sobrevida), temos órgãos artificiais, membros remotos, manipulação genética e as múltiplas possibilidades de entrelaçamento entre as fibras musculares e os componentes feitos de silício.
Diante disso, parece não haver muito mais espaço para um “nós” isolado, separado, do tipo: as máquinas farão isso, nós faremos aquilo. Eu adoraria um chip cerebral que me livrasse da miopia, por exemplo. A distância entre desejo e ato ficará cada vez menor, justamente porque estarão integradas a velocidade de execução da máquina e a oscilação de interesses do humano. Que história é essa que Flusser afirma ser melhor e mais rápida nas “mãos” das máquinas? A história como encadeamento de fatos, simultaneidades (essa “dinâmica da história”, essas “coisas que acontecem”?)? Ou a história como escrita da história, como resgate e ordenação, resgate e montagem? Essa segunda acepção é o campo da ficção.
quinta-feira, 18 de novembro de 2010
Teatro
sábado, 13 de novembro de 2010
Dia de Sontag
sexta-feira, 12 de novembro de 2010
Esquizofrenia do gênero
Fui levado a pensar nesses atravessamentos jornalísticos que aparecem em alguns livros, essa movimentação jocosa entre o factual e o ficcional, essa pretensão de dividir de forma estanque a realidade e a ficção – uma pretensão que, penso eu, é tratada de forma irônica nos dois exemplos que levantei.
Pense, por exemplo, no início de Sobre heróis e tumbas, de Ernesto Sabato. Está ali a transcrição de uma notícia de jornal, que dá a informação do suicídio misterioso de Alejandra Vidal Olmos. Temos a data, o nome do jornal, e esse posicionamento marcado no início da narrativa. Esse despiste, essa cortina de fumaça, que pretende explicar o livro de antemão, justificá-lo em sua legitimidade automática (isso é verdade, está aqui), é a sombra antitética no desenvolvimento do romance. Todas as idas e vindas de Alejandra e do bobalhão que por ela se apaixona são confrontadas com essa partícula concisa de certeza que abre o livro. Porque em todo o resto de Sobre heróis e tumbas não há certezas e não há concisão.
Ian McEwan está nessa também, e mais de uma vez. Solar termina com o pronunciamento da academia sueca quando concedeu o Nobel a Michael Beard. Ao contrário de Sabato, que coloca a sombra performática da linguagem técnica do início do romance, como um bicho nos calcanhares, McEwan prefere colocar no final, como uma espécie de esquizofrenia do gênero – eu sou levado a questionar se esse autor realmente acha que vou acreditar que, depois de 300 páginas da mais burilada ficção, tudo pode ser questionado com 3 ou 4 páginas de alheamento teórico ou referencial (sim, tudo pode ser questionado). O procedimento está também em Amor para sempre, com os artigos acadêmicos sobre a erotomania (síndrome de Clérambault). Um pouco em Reparação, mas bem pouco, porque Brione não chega a mudar radicalmente o registro, o tom. É possível questionar, também, até que ponto as menções bibliográficas, que McEwan faz sempre questão de colocar nos agradecimentos finais, acabam entrando nesse jogo de suplementaridade ficcional (um modelo radical seria a parte bibliográfica de La literatura nazi en América, de Bolaño).
Educação pela pedra
Um laudo divulgado em Santa Catarina pelo Instituto Geral de Perícias concluiu que um bebê de dez meses que foi internado no início do mês no Hospital Infantil de Joinville se engasgou com uma pedra de crack. A criança, segundo conclusão da polícia, teria pego a pedra acidentalmente, quando os pais se distraíram. Segundo uma testemunha do caso, várias pessoas usaram a droga quando o bebê se engasgou. O caso aconteceu na cidade de Araquari. A criança já deixou a UTI e está fora de perigo.
terça-feira, 9 de novembro de 2010
O rastreador, o detetive
segunda-feira, 8 de novembro de 2010
Blanco nocturno
Estamos em Blanco nocturno, o último livro de Ricardo Piglia. Estamos em uma cidadezinha no interior da Argentina, na província de Buenos Aires. Mataram Tony Durán, um forasteiro, com uma facada no peito. O jornalista Emilio Renzi, que é o nome que Ricardo Piglia utiliza quando aparece em seus próprios livros, está conversando com Croce, o comissário de polícia. Croce oferece a Renzi uma teoria da leitura (que é, ao mesmo tempo, uma ficção da imagem). Tudo consiste em diferenciar aquilo que é daquilo que parece ser, diz Croce. Os imbecis, diz Croce, procuram mostrar que o que é diferente é, na realidade, sempre a mesma coisa. Descobrir é ver de outro modo aquilo que ninguém percebeu. Croce faz um desenho e mostra a Renzi: um pato. Croce vira o mesmo desenho: um coelho. Reconhecemos as coisas antes de vê-las – e esse movimento viciado deve ser desnaturalizado, desfeito, profanado, abandonado. Compreender não é descobrir fatos, nem extrair inferências lógicas, muito menos construir teorias; trata-se somente de adotar o ponto de vista adequado para perceber a imagem.
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Croce também diz a Renzi: um policial não vê a mesma imagem que um jornalista. Eu sei que vocês escrevem com o firme propósito de informar-se depois, diz Croce. Essa inversão é muito interessante, coloca o efeito antes da causa e lembra as investigações de Wittgenstein – o processo da linguagem como evento filosófico, a linguagem como matriz do homem. E Wittgenstein foi professor de Tardewski, o polonês perdido na Argentina em Respiração artificial; e Wittgenstein é, junto com Hitler e Borges, o filósofo mais citado em Respiração artificial, de modo que estamos em casa. Essa inversão lembra também uma frase de Osvaldo Lamborghini: primeiro publicar, depois escrever, uma postura que é retomada e desenvolvida por César Aira (quando fala no “dispositivo que permite à obra fazer-se por si só”, ou ainda, o investimento na literatura como um propósito falido). As conseqüências são mais importantes que as causas, afirma Croce, depois de descobrir o assassino e afirmar que as investigações iriam continuar.
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Croce é muito semelhante ao delegado Espinosa, de Luiz Alfredo Garcia-Roza, ao Adamsberg, de Fred Vargas, e ao comissário Morvan, de Saer (A pesquisa). Certamente existem outros, mas esses são realmente muito semelhantes: lentos, contemplativos, oscilando melancolicamente entre a resignação e a angústia, desajustados no tempo e no espaço – e isso é fundamental, porque tudo começa antes para eles (antes do cadáver, antes do crime), e termina antes também (a resolução é sempre para os outros, eles apenas comunicam algo que sempre souberam).
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O curioso é que Piglia insere um terceiro elemento em um cenário que há anos era formado por apenas dois: o detetive e o policial. Em 29 de abril de 1998, em um debate realizado em Princeton, Piglia distingue o detetive do policial, reforçando que este último é um representante do Estado nas ruas, é uma extensão do Estado, um dos avatares do Estado, o policial está institucionalizado. O detetive, por outro lado, é uma figura inventada, construída na ficção como um técnico da interpretação, um virtuose da interpretação. É claro que as coisas se complicam, porque o detetive existe tanto na literatura quanto no mundo, e o policial pode muito bem ser uma instância de contato entre a lei e o submundo, entre a lei e seu contrário. Emilio Renzi, essa figura que inaugura o relato para Piglia, que torna o relato possível, é uma mistura de jornalista e crítico literário: dois espaços discursivos que dependem da resolução do crime para sobreviver. Em Blanco nocturno surge a figura do comissário: eles são os verdadeiros pesos pesados, diz alguém; mais de quarenta anos, já engordaram, viram de tudo e tem muitas mortes nas costas – são os especialistas do mal, sempre circulando pela noite, entre putas e políticos, com acesso à grana fácil porque todos o querem agradar; estão entre a lei e o crime, voando a meia altura, metade-metade – se mudarem a dose, não sobrevivem; eles fazem política o tempo todo e nunca se metem com política, são heróis clandestinos, nunca estão totalmente visíveis; fazem o que tem que fazer e permanecem, acima das mudanças, são eternos, estão desde sempre.