quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Solar


1) Solar retoma um caminho que Ian McEwan havia deixado de lado nos últimos livros. Isso porque Solar não é carregado de melancolia e negatividade, como são Reparação e Na praia. Este último livro está muito mais próximo da carga irônica de Amsterdam, por exemplo. E nesses dois livros, Solar e Amsterdam, há o salutar procedimento de abordar a questão da criatividade e da criação (e de como é a vida de alguém que lida com esses referenciais) sem recorrer, necessariamente, à figura do escritor (sempre tão à mão: Bech no beco, Operação Shylock, Pierre Menard, Leviatã, Todas as almas, Verão em Baden-Baden, O mal de Montano, etc). Esse movimento aparentemente banal de renovação temática é fundamental na literatura contemporânea: para McEwan, são os músicos em Amsterdam e o cientista de Solar (e o médico em Sábado, e o jornalista de divulgação científica de Amor para sempre), e outros exemplos abundam: músicos em Bernhard e Jelinek (que estava na frente de uma partitura no vídeo que fez para a cerimônia do Nobel de Literatura), artistas plásticos para Alan Pauls (O passado), Don DeLillo (A artista do corpo) e Bernardo Carvalho (As iniciais, o conto “A valorização”). Sophie Calle para Paul Auster e Vila-Matas, Cindy Sherman para Mario Bellatin.
2) Solar, na realidade, é hilário. Como não lembrar da tira de bacon usada como marca-página, encontrada dentro do livro muitos meses depois? Ou do debate de Michael Beard com as feministas, com os pós-modernos? Ou a cena em que ele precisa urinar, no meio do gelo, quarenta graus negativos, com três trajes sobrepostos e a grande probabilidade de congelar sua preciosa extremidade? Solar é, também, uma bela desmistificação do Prêmio Nobel – a incompetência e a preguiça do protagonista mostram que as premiações são contingências atravessadas por critérios que estão muito aquém da relevância histórica ou da potência intelectual (como na conhecida discussão da Literatura nazi na América (ou nas reflexões de George Steiner (Extraterritorial) sobre as escolhas “políticas” de Céline ou Ezra Pound): ser um literato não salva ninguém de ser um monstro, muito pelo contrário: às vezes é um pré-requisito).
3) Ainda falta a McEwan um romance que seja, simultaneamente, irônico, trágico e “científico” (no sentido que Solar, A criança no tempo e Sábado são “científicos”, ou seja, preocupados com as técnicas de controle do tempo e do espaço (e do homem no meio disso), porque muitos são peças únicas (Reparação, O jardim de cimento), e outros são híbridos somente até certo ponto (A criança no tempo, trágico e científico; Na praia, trágico e irônico). 
4) McEwan usa o aparato discursivo das ciências de forma muito bem equilibrada em Solar – o que não é nenhuma novidade: o terreno já vem sendo preparado desde A criança no tempo, com suas intervenções sobre as dimensões desconhecidas e as possibilidades narrativas dessas estranhezas. Porque essa é a chave: McEwan é um grande curioso, lê as revistas especializadas, conversa com cientistas, participa de congressos e seminários, mas seu foco é sempre a literatura e a narrativa, ou ainda, de que forma essas inovações do pensamento abstrato podem renovar a linguagem e seu ritmo de trabalho dentro da ficção. Existem outros da mesma turma, igualmente competentes: Michel Houellebecq (A possibilidade de uma ilha, Partículas elementares), Kazuo Ishiguro (Não me abandone jamais) e, o maior de todos, Thomas Pynchon (O arco-íris da gravidade) – aproveito a oportunidade para deixar registrada minha admiração por um romance recente, e bem pouco falado, que desliza pelo mesmo campo: Um louco sonha a máquina universal, de Janna Levin. Um cruzamento do que poderíamos chamar de técnicas e artes do pós-humano.

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