terça-feira, 30 de outubro de 2012

O último shandy

André Kertész, André Lhote trabalhando, Paris, 1927
1) “O último shandy, que é um herói saturnino”, escreve Vila-Matas na História abreviada da literatura portátil, “com suas ruínas, miniaturas, visões desafiadoras e sua implacável penumbra, (…) decide concluir o livro que está escrevendo para terminá-lo ainda a tempo, antes de se autodestruir”, essa é “a decisão de quem sabe que o verdadeiro rosto da História passa veloz e que só se pode reter o passado como uma imagem, tal qual o relâmpago da insolência”, da anarquia, acrescento aqui, “que, no exato instante em que podemos vê-lo, emite um resplendor que nunca mais se voltará a ver”.
2) Trata-se, da parte de Vila-Matas, de um procedimento de invasão e saque da tese de Walter Benjamin sobre o conceito de história, a quinta, que fala da “imagem do passado” que passa “célere e furtiva”, “imagem que lampeja justamente no instante de sua recognoscibilidade, para nunca mais ser vista (…) Pois é uma imagem irrestituível do passado que ameaça desaparecer com cada presente que não se reconhece como nela visado”.
3) O que há de anárquico em Benjamin, segundo Michael Löwy (em seu comentário sobre as teses), é sua ideia de que “não há lugar para um aparelho ou um Estado que exerça uma hegemonia ideológica: o historiador é um indivíduo que corre sempre o risco de não ser compreendido em sua época”. Em paralelo: “Somente porque está morto é que podemos ler o passado”, escreve Vila-Matas no último parágrafo da História abreviada, “o último shandy sabe que só porque está fetichizada em objetos concretos se pode entender a história”.

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

A história analógica de Valéry

Degas, Intérieur, 1869
1) Paul Valéry, em Degas Dança Desenho, fala de uma "história única das coisas do espírito", que substituiria a autonomia das diversas histórias - história da filosofia, da arte, da literatura, das ciências.  Em outras palavras, a possibilidade de remontar peças heterogêneas a partir de um fio narrativo subjetivo (uma subjetividade, no entanto, que está em irremediável contato com a dimensão anônima do arquivo).
2) A partir daí, e tendo Degas em mente, Valéry dá apenas um exemplo disso que também chama de "história analógica", ou seja, uma historiografia digressiva, associativa, especulativa. Em tal contexto, escreve Valéry, "Degas estaria entre Stendhal e Mérimée", a palavra atravessada na imagem e a história da arte incorporada à história da literatura. Com essa aproximação, Valéry reforça aquilo que afirma em um texto sobre Stendhal, de 1929: Stendhal é infinito, e isso, para mim, é o maior elogio
3) Valéry fala também da vocação de "solitário sem remorso" de Degas - seu apego à cidade, em um momento em que os colegas pintores procuravam, cada vez mais, o contato com a "natureza" no interior da França. Degas procurava os bastidores, o ensaio, a preparação - e neste ponto a "história analógica" poderia aproximar Degas e Barthes, o Barthes da "preparação do romance", dos bastidores da escritura e da arte, daquilo que se acumula de forma prévia e que também é responsabilidade da crítica, da criação. 

domingo, 21 de outubro de 2012

Os enamoramentos

O curioso é que a própria narrativa é um pouco como essa foto: reflexos da rua, estratégias para observar sem ser visto, formas de participar da vida alheia, camadas do olhar, visibilidades limitadas, manifestação e encobrimento.
1) Javier Marías é um escritor diabolicamente habilidoso na construção de suas tramas, especialmente no que diz respeito às repetições, ecos e detalhes que formam a tessitura de base de seus romances. Para que esse trabalho minucioso seja ainda mais ressaltado, Marías costuma produzir obras de grande porte – Os enamoramentos, por exemplo, tem 400 páginas. Trata-se de um procedimento deliberado – Marías amplia suas frases ao máximo, encadeando reflexões, especulações e suposições, frequentemente sustentando suas histórias sobre o tênue terreno da dúvida e da suspeita. 
2) Sua ficção não é fragmentária ou lacunar, do tipo que oferece múltiplos pontos de vista sem completar qualquer um deles; pelo contrário, a narrativa de Marías é volumosa, persegue uma perspectiva até a exaustão, numa espécie de totalitarismo da observação – e isso decorre diretamente do cruzamento de duas de suas principais referências, Marcel Proust e Laurence Sterne.
3) Além do trabalho com a linguagem – os períodos longos, a tensão inerente às digressões da voz narrativa –, Marías investe fortemente no efeito estético das repetições: cenas que retornam, palavras idênticas em contextos variados, imagens recorrentes. Em Os enamoramentos, a cena de um homem sendo esfaqueado em plena rua é um exemplo desse esforço: retorna frequentemente durante a narrativa, resgatada a partir dos mais variados aspectos - a agonia da morte, a violência das estocadas, o que pensava o assassino, o que pensava a vítima, a natureza da faca, descrições e reflexões sobre o local da tragédia (a rua, o clima, a vizinhança).
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P.S: Essas ideias são desenvolvidas num longo texto que saiu na Revista ArtFliporto.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Um parágrafo de Joseph Roth

Velázquez, Los borrachos, c. 1629
1) A abertura de Confissão de um assassino, o "romance russo" de Joseph Roth, publicado em 1936: "Eu morava já há alguns anos na rue des Quatre-Vents. Diante das minhas janelas estava o restaurante russo Tari-Bari. Com frequencia comia ali". O romance de Roth é sobre o tempo, ou melhor, sobre o uso que a ficção pode fazer da percepção do tempo - um uso que, no caso de Roth, é magistral (como em Joyce e Faulkner, mas com um estilo mais próximo da fluidez de Stendhal ou Leskov).
2) Já o primeiro parágrafo anuncia, numa série de detalhes, que o manejo do tempo ocupa o centro das atenções: no Tari-Bari, escreve Roth, "a qualquer hora do dia se podia comer uma sopa, um peixe frito ou um cozido de carne". Ali não havia o respeito restrito pelo tempo que havia nos restaurantes franceses: "no restaurante russo o tempo não tinha importância". O relógio, preso na parede, "às vezes parado, às vezes marcando errado".
3) É claro que as figuras reunidas no Tari-Bari acompanham esse descompasso: vagabundos, exilados, desterrados e desempregados em geral, marcando posição contrária ao ritmo de vida que corre do lado de fora. O narrador de Roth não é russo - mas entende a língua  (assim como Franz Tunda, de Fuga sem fim, passou alguns anos no interior da Rússia depois da I Guerra Mundial). A confissão dura uma noite inteira, tanto e tão pouco, e Joseph Roth dilata e comprime o tempo da narrativa como se fosse de argila, como se fosse fácil.   

domingo, 7 de outubro de 2012

A vida dos homens infames


1) Deleuze, em sua monografia sobre Foucault, faz referência ao ensaio “A vida dos homens infames”, escrito por Foucault em 1977 para Les cahiers du chemin e, em 1982, reeditado como introdução ao livro Le désordre des familles, que trazia reproduções das ordens imperiais - lettres de cachet - de prisão contra os loucos e proscritos na França dos séculos XVII e XVIII. 

2) Lettres de cachet: documento pelo qual o rei mandava prender alguém, sem processo e sem prazo determinado. É mais conhecida a sua aplicação política - contra Voltaire, por exemplo. Mas o seu uso mais frequente era feito a pedido da família - contra o jovem Sade, por exemplo.

3) Em seu comentário, Deleuze recorda um possível contato com a ficção de Borges. “Devemos ressaltar que Foucault se opõe a outras duas concepções de infâmia”, escreve Deleuze; a primeira concepção, “próxima de Bataille”, trata de “vidas que entram para a lenda ou a história por seus próprios excessos”.

4) A segunda concepção, “mais próxima de Borges”, “uma vida se torna legendária porque a complexidade de sua trama, seus desvios e suas descontinuidades só podem alcançar inteligibilidade mediante um relato capaz de esgotar o possível, de cobrir eventualidades até mesmo contraditórias”. 

5) “Mas Foucault”, continua Deleuze, “concebe uma terceira infâmia; na verdade, uma infâmia de raridade ou escassez, a de homens insignificantes, obscuros e simples, que devem apenas a processos, a relatórios policiais, o fato de aparecerem por um instante à luz”. "É uma concepção próxima de Tchékhov", finaliza Deleuze.
 

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Sob o signo de Wittgenstein

De resto, dos animais mantidos no Nocturama só me ficou na lembrança que alguns deles tinham olhos admiravelmente grandes e aquele olhar fixo e inquisitivo encontrado em certos pintores e filósofos que, por meio da pura intuição e do pensamento puro, tentam penetrar a escuridão que nos cerca.
Sebald. Austerlitz. Companhia das Letras. Tradução de José Marcos Macedo, p. 9.

1) Kaspar (1968), de Peter Handke.
2) Malina (1971), de Ingeborg Bachmann.
3) Wittgensteins Neffe (1982) e Ritter, Dene, Voss (1984), de Thomas Bernhard.
4) The World as I Found It (1987), uma falsa biografia escrita por Bruce Duffy .
5) Wittgenstein's Mistress (1988), de David Markson.
6) The Sophist e Dark City, de Charles Bernstein.
7) Signage, de Allen Davies.
8) Evoba: The Investigation Meditations, de Steve McCaffery (1976-1978).
9) Realism, de Tom Mandel.
10) Notes for Echo Lake, de Michael Palmer.
11) Circumstancial Evidence, de Joan Retallack.
12) The Age of Huts, de Ron Silliman.
13) Reproduction of Profiles e A Key into the Language of America, de Rosmarie Waldrop.
14) The Wittgenstein's Elegies, de Jan Zwicky.
15) “The Poetry of Ideas and the Idea of Poetry”, de David Antin.
16) I-VI (The Charles Eliot Norton Lectures), de John Cage.
17) The Wittgenstein Variations, uma instalação de Johanna Drucker.
18) Fluxus.
19) Gruppo 93.
20) Em 1992, Joseph Kosuth, cujas séries de “Art Investigations” tiveram como modelo direto os escritos de Wittgenstein, publicou um livro chamado Letters from Wittgenstein, Abridged in Ghent - uma intervenção por meio de enigmáticas fotografias em preto e branco das paisagens urbanas de Ghent inseridas sobre os textos.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Colégio, 2

1) Haveria algo em todo grupo que tenderia, inexoravelmente, ao fascismo? Ou melhor: levar as premissas de formação de um grupo aos extremos levará, de forma incontornável, ao radicalismo? Giorgio Agamben já registrou que Walter Benjamin teria dito a Pierre Klossowski, na década de 1930, que Bataille e a equipe da revista Acéphale trabalhavam para o fascismo - o que faz Agamben ampliar a questão: “em que sentido se poderia dizer hoje que também nós trabalhamos, sem saber, para o fascismo?”
2) É curioso notar que, por trás desse juízo de Benjamin, está toda sua trajetória de não-aceitações: a universidade, o Instituto Warburg, o partido comunista e também o Collège de Sociologie, que Benjamin frequenta brevemente (para assistir as falas de Alexandre Kojève). Será que a tendência de Benjamin ao não-pertencimento funcionou como uma partícula de intolerância, como uma espécie de barreira de ordem subjetiva e não histórica? 
3) Como escreve Wittgenstein: imaginar uma linguagem é imaginar uma forma de vida - talvez a forma de vida imaginada por Benjamin para si redunde na visão de um fascismo que é, também ele, imaginário (isso porque o fascismo que Benjamin encontrava em Bataille e no grupo Acéphale era, muito provavelmente, captado naquilo que ele lia e escutava - na linguagem, portanto).

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Colégio, 1

1) Ginzburg ressalta o posicionamento de Dumézil, em um livro publicado originalmente em 1939 (Mythes e dieux des Germains), de encontrar raízes mitológicas para as polícias secretas de Hitler – de forma um pouco obscura, Dumézil ligaria a formação das SA aos “grupos de homens guerreiros” da mitologia germânica, os berserkir (homens criados para a guerra e para o combate, cultivados na selvageria, na proximidade mais estreita com os instintos e a animalidade).
2) “A continuidade entre a mitologia germânica e as orientações políticas, militares e culturais do Terceiro Reich”, escreve Ginzburg, “era sabidamente um dos eixos da propaganda nazista”. Ginzburg não se prende a uma releitura cerrada de Dumézil visando a emergência de seu pano de fundo fascista (como Herta Müller sobre Cioran). O ponto principal de Ginzburg está em salientar o difícil relacionamento existente entre as ideologias fascistas e os materiais mitológicos e os dados históricos que ele chama, com Marc Bloch, de “longa ou longuíssima duração”. 
3) A ligação entre o arcaico e o contemporâneo se daria na recorrência da formação dessas comunidades de guerreiros, surgidas para dar novo rumo à nação. A intensidade do contato entre arcaico e contemporâneo está não apenas na mente e nos projetos de Caillois ou Bataille - e o Collège de Sociologie (também ele um "grupo de homens guerreiros", uma sociedade mística de prospecção do sagrado) foi pensado como espaço de reflexão sobre esses cruzamentos - está também, curiosamente, nas orientações teóricas do Reich e do próprio Hitler.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Colégio

1) Em ensaio sobre Georges Dumézil (reunido em Mitos, emblemas, sinais), Carlo Ginzburg menciona o intenso contato entre Dumézil e Roger Caillois na década de 1930 - especialmente no que diz respeito às pesquisas de ambos sobre as raízes arcaicas do pensamento e da política que se desenvolvia à época. 
2) Com esse paralelo, Ginzburg chega ao Collège de Sociologie, o esforço comunitário intelectual que, entre 1937 e 1939, reuniu, em Paris, nomes como Georges Bataille, Caillois, Michel Leiris e Hans Mayer. Na confusão da época, procuravam de forma um pouco caótica desenvolver uma cartografia possível do tempo que viviam.
3) “O programa do Collège reunia homens muito diferentes entre si”, escreve Ginzburg, “alinhados em posições incompatíveis”: “tanto o antissemita Pierre Libra, depois desaparecido de cena, quanto Michel Leiris, que antes manteve-se de lado e depois comunicou a Bataille sua divergência científica quanto à postura do grupo. Entre os conferencistas”, continua Ginzburg, “Anatole Lewitzky, aluno de Mauss, depois fuzilado pelos nazistas em 1942, juntamente com dois colegas, por ter instalado no Musée de l'Homme um centro de atividades clandestinas”.