segunda-feira, 30 de outubro de 2023

Chismografía


No penúltimo capítulo de A traição de Rita Hayworth, de número 15 (intitulado "Caderno de Pensamentos de Herminia, 1948"), a mulher que toma a frente da narração, Herminia, em determinado momento recusa a própria escritura e os temas que vem abordando: ¿Pero qué estoy escribiendo hoy? Esto es pura chismografía. Basta, no tengo nada edificante que decir así que mejor será callarme. São três frases absolutamente centrais para a poética de Puig, toda ela uma "chismografía" - palavra, aliás, excelente (na tradução brasileira de Glória Rodríguez - na Biblioteca do Leitor Moderno da Civilização Brasileira, edição de 1973 - está "mexericografia", uma solução sonora e vistosa). Sobre a última frase, é possível perguntar: caso tenha sido esse o caso, qual foi o percurso que levou Puig a Wittgenstein?

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O chisme, para Edgardo Cozarinsky (escrevi sobre seu livro Museo del chisme), é uma prática universal. Uma "forma plebeia e incipiente da literatura", fruto da conversação, da mobilidade social, do viver-junto posto em discurso. O chisme diz respeito à imaginação e à transmissão oral - está ligado à literatura, mas é transitório, é reelaboração permanente, possibilidade pura. Não surpreende, portanto, que Cozarinsky cite o ensaio de Walter Benjamin sobre Leskov e o narrador, falando (com Barthes) da narração como tecido, trama interminável e renovável que articula obra e vida (daí decorre também a principal referência ficcional do ensaio de Cozarinsky, Marcel Proust). 

sábado, 28 de outubro de 2023

May Goulding


Na Antologia da Literatura Fantástica, Borges, Bioy Casares e Silvina Ocampo colocam duas passagens do Ulisses, de James Joyce: a primeira entrada é intitulada "Definição de fantasma":

O que é um fantasma?, perguntou Stephen. Um homem que se desvaneceu até se tornar impalpável, por morte, por ausência, por mudança de hábitos.

A segunda entrada é intitulada "May Goulding" e tem relação direta com a mãe de Stephen, presença fantasmática desde o início do romance (quando é postulada a "inelutável modalidade do visível" diante da mãe morta):

A mãe de Stephen, extenuada, surge rigidamente do chão, leprosa e turva, com uma coroa de flores de laranjeira murchas e um véu de noiva rasgado, o rosto gasto e sem nariz, verde de mofo sepulcral. O cabelo é liso, ralo. Fixa em Stephen as órbitas vazias aneladas de azul e abre a boca desdentada, dizendo uma silenciosa palavra.

A MÃE

(com o sorriso sutil da demência da morte)

Eu fui a bela May Goulding. Estou morta.

(Antologia da literatura fantástica: Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares, Silvina Ocampo [org.]. Tradução de Josely Vianna Baptista. São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 218-219)

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Duas estratégias de justaposição de elementos convergem aqui: em primeiro lugar, a estratégia dos compiladores da Antologia de posicionar Joyce em contato com outros textos, não aqueles "habituais" quando se trata do Ulisses, afastando o romance da cena modernista, digamos, em direção ao reino do fantástico, do estranho, do sobrenatural (um deslocamento atípico como aquele que Borges faz em "Kafka e seus precursores"); em segundo lugar, está embutido nos trechos escolhidos o projeto de filiação de Joyce com textos do passado pelo viés do fantasma e da aparição, um encadeamento intertextual cujo desenho aponta saltos com uma extensão de 200 anos: a Comédia de Dante (1321), o Hamlet de Shakespeare (1599), o Tristram Shandy de Sterne (1759), o Ulisses de Joyce (1922).  

terça-feira, 24 de outubro de 2023

Lugar estranho


"Todos estamos dispostos a delirar, seja pelo lado histérico, seja pelo lado obsessivo; mas chega o momento decisivo de sair do delírio. Para alguns, o problema é como entrar e não conseguem isso nunca. Se acompanhamos trajetórias como a de Walter Benjamin, ou a de Freud, vemos que sua imaginação teórica se dá em momentos em que conseguem fantasiar, em que se desprendem do real. Constroem algo que não está nos 'fatos' - a aura, o inconsciente - e, com isso, chega a olhar melhor o que talvez esteja na realidade.

Se fazem isso, é porque, de alguma maneira, além de alçarem voo, houve um momento em que aterrissaram e puseram isso em uma escrita que é possível ler, que tem uma organização comunicável, ou várias ao mesmo tempo. Muitos cientistas e poetas constroem conhecimento com humor, esse outro incômodo ao real, e evitam se valentear fazendo metafísica ou misticismo. A poesia não é azar, escreveu Italo Calvino, mas 'uma tensão rumo à exatidão que fez ele próprio circular, várias vezes, por teorias e livros científicos"

(Néstor García Canclini, O mundo inteiro como lugar estranho, trad. Larissa Locoselli, Edusp, 2016, p. 141)

quarta-feira, 18 de outubro de 2023

Carson / Bardot



1) Em um de seus ensaios ("Desprezos", sobre Homero, Moravia e Godard), Anne Carson fala de Brigitte Bardot, de sua aparição na tela do cinema, do modo como usava o próprio corpo em cena: na abertura do filme de Godard baseado no romance de Moravia, escrever Carson, Bardot está nua sobre a cama e a câmera "zanza pelo seu corpo e se demora nas suas costas". "Bardot atua sem despreza nessa cena", escreve Carson, e continua: "Seus gestos são simples, transparentes; o tom de voz é serenamente banal. Sua conduta é inocente como a água. Mas, de alguma forma, bem no meio dessa exposição total e totalmente forçada de si, ela desaparece" (Sobre aquilo em que eu mais penso, ed. 34, 2023, trad. Sofia Nestrovski, p. 150-151).

2) No momento de maior exposição, Bardot faz o próprio corpo desaparecer, faz o próprio corpo recusar qualquer tipo de aproximação precisamente porque se faz exposto - uma sorte de surpreendente aplicação imagética do procedimento narrativo inventado por Edgar Allan Poe em "A carta roubada". Georges Didi-Huberman, em seu livro sobre Godard (Passés cités par JLG), escreve: 

Tout simplement parce qu'il permet de revoir quelque chose qui a été vu un jour - un visage, un corps, un geste, un paysage, un édifice, une ville, un acte collectif -, le cinéma apparaît comme une éminente façon de citer le passé: ce qui a été tourné un jour retourne sous nos yeux dans le temps, répétable à loisir, de la projection (p. 67)

3) Aí está a potência do cinema, tal como capturada por Carson e Didi-Huberman, por trás desse "simplesmente": parece simples, mas não é, já que o cinema permite "citar o passado" (um corpo, um gesto, um edifício), devolvendo-o ao presente, "diante nossos olhos", "sob nosso olhar". Não se trata de um retorno neutro do mesmo, como um documento "fidedigno" do que passou/aconteceu; trata-se de uma "projeção", como escreve Didi-Huberman, uma imagem no presente que guarda uma ressonância com o passado (justamente por o passado, na imagem, é "citado": vale a pena retomar o que Compagnon tem a dizer sobre a citação; ou, no que diz respeito à citação do passado pela "projeção", vale a pena retomar o que faz Billy Wilder em Five Graves to Cairo).  

domingo, 8 de outubro de 2023

O amigo de Florio



1) No segundo ensaio de seu livro Nenhuma ilha é uma ilha (intitulado "Identidade como alteridade: um debate sobre a rima na era elisabetana"), Carlo Ginzburg fala de Montaigne e da tradução dos Ensaios na Inglaterra, realizada por John Florio: "o Montaigne de Florio era o Montaigne de Shakespeare", escreve Ginzburg, indicando com isso que Shakespeare leu Montaigne em tradução e, mais do que isso, seus Ensaios foram importantes para a escrita de uma peça como A tempestade (e a partir disso, uma informação específica: foi importante para Shakespeare a leitura do ensaio de Montaigne sobre o "Novo Mundo", sobre os canibais).

2) Ginzburg, contudo, acrescenta uma nova informação, para além da leitura de Shakespeare - uma informação que diz respeito ao tradutor, Florio, que deixou a Itália, com seu pai, por motivos religiosos. Ginzburg cita o prefácio que Florio escreveu à tradução: Florio diz, aí, que na Itália alguns viam a tradução como uma subversão das universidades, citando, a esse propósito, seu "velho amigo, o Nolano", uma referência a Giordano Bruno, natural de Nola, queimado em Roma como herege em 1600 (a tradução de Florio é publicada na Inglaterra três anos depois, em 1603). 

3) Junto à menção a Giordano Bruno, incrível por si só, Florio também faz em seu prefácio um elogio da tradução: segundo ele (escreve Ginzburg), todas as ciências se originaram da tradução, uma vez que os gregos haviam aprendido todas as suas ciências dos egípcios, e os egípcios, por sua vez, tinham aprendido dos hebreus ou dos caldeus. A ideia de Ginzburg é que Montaigne caiu como uma luva na postura "aberta" que Florio compartilhava não só com o amigo Giordano Bruno, mas com outros companheiros de ofício como Samuel Daniel, autor de Defesa da rima, de 1603 (Daniel era cunhado e amigo de Florio, a quem dedicou um longo poema, no qual aparece, em determinado momento, um elogio a Montaigne).

segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Pallaksch


1) Uma questão central para Anne Carson é analisar as "relações profundas" de certos artistas com outros artistas. Quando fala de Francis Bacon, por exemplo, aponta que ele tem uma relação profunda com Rembrandt: Bacon fala em várias entrevistas como ama um de seus autorretratos (estamos no ensaio "Variações sobre o direito de permanecer calado", de 2013, no qual Carson explora vários momentos do livro de entrevistas com Bacon feito por David Sylvester - o ensaio pode ser lido no livro Sobre aquilo em que eu mais penso, tradução de Sofia Nestrovski, Editora 34, 2023).

2) Aquilo que Francis Bacon mais gosta no autorretrato de Rembrandt é o fato de perceber que os olhos não têm órbitas: um trabalho tardio de Rembrandt, contornos difusos, muito escuro. Carson diz que o olhar, aí, não está organizado do jeito habitual, a visão parecer emanar "silêncio"; e é nesse ponto do ensaio que ela alcança o problema geral, o cerne de sua argumentação (as variações sobre o direito de permanecer calado, e como essa "falta de voz" repercute na arte ao longo dos séculos).

3) Dando um salto inesperado - tão típico do ensaio, mais ainda do ensaio tal como praticado por Carson -, ela vai do silêncio de Rembrandt em direção ao silêncio de Paul Celan: um poema em louvor a Hölderlin, que termina com uma palavra intraduzível, repetida: "Pallaksch, Pallaksch". O silêncio, então, se articula com a tradução e com o intraduzível, se articula com a homenagem que Celan faz ao Hölderlin não apenas poeta, mas, sobretudo, tradutor (segundo as pessoas que o visitaram em sua torre, Hölderlin tinha inventado o termo Pallaksch e às vezes o usava para dizer Sim, às vezes para dizer Não).