E era sem dúvida o único campo em que a sensibilidade deles tinha aprendido tudo. Aí, nada deviam a modelos. Por sua idade e formação, pertenciam a essa primeira geração para a qual o cinema foi, mais que uma arte, uma evidência: sempre o haviam conhecido, e não como forma balbuciante, mas já de saída com suas obras-primas, sua mitologia.
Às vezes achavam que tinham crescido junto com ele, e que o compreendiam melhor do que ninguém antes deles soubera compreender. Eram cinéfilos. Era sua primeira paixão: a ela se dedicavam toda noite, ou quase. Gostavam de imagens, por pouco que fossem belas, que os arrastassem, que os encantassem, que os fascinassem. Gostavam da conquista do espaço, do tempo, do movimento, gostavam do turbilhão das ruas de Nova York, do torpor dos trópicos, da violência dos saloons.
Não eram muito sectários, como esses espíritos obtusos que só juram por um único Eisenstein, Buñuel ou Antonioni, ou ainda — precisa-se de tudo para fazer um mundo — por Carné, Vidor, Aldrich ou Hitchcock, nem muito ecléticos, como essas criaturas infantis que perdem todo senso crítico e gritam “gênio” por pouco que um céu azul seja azul-céu, ou que o vermelho esmaecido do vestido de Cyd Charisse se destaque contra o vermelho-vivo do sofá de Robert Taylor.
Bom gosto não lhes faltava.
Tinham um forte preconceito contra o chamado cinema sério, que os levava a achar ainda mais bonitas as obras que esse qualificativo não era suficiente para tornar vãs (mas, mesmo assim, diziam, e tinham razão, Marienbad, que merda!), uma simpatia quase exagerada pelos westerns, os thrillers, as comédias americanas, e por essas aventuras espantosas, repletas de arroubos líricos, imagens suntuosas, belezas fulgurantes e quase inexplicáveis, que eram, por exemplo — sempre se lembravam delas —, Lola, Encruzilhada de destinos, Assim estava escrito, Palavras ao vento.
Raramente iam ao concerto, menos ainda ao teatro. Mas se encontravam, sem ter combinado, na Cinemateca, no Passy, no Napoléon, ou nesses cineminhas de bairro, o Kursaal, em Gobelins, o Texas, em Montparnasse, o Bikini, o Mexico, na praça Clichy, o Alcazar, em Belleville, outros mais, perto da Bastilha ou no Quinzième, essas salas sem graça, mal equipadas, que pareciam ser frequentadas apenas por uma clientela heterogênea de desempregados, argelinos, velhos solteirões, cinéfilos, e que programavam, em infames versões dubladas, essas obras-primas desconhecidas das quais eles se lembravam desde os quinze anos, ou esses filmes com fama de geniais, cuja lista sabiam de cor e que, fazia anos, tentavam ver, sem conseguir.
Guardavam uma lembrança maravilhosa das noites abençoadas em que tinham descoberto, ou redescoberto, quase por acaso, O pirata sangrento, ou O mundo em seus braços, ou Sombras do mal, ou Jejum de amor, ou Os cinco mil dedos do doutor T.
Infelizmente, com muita frequência, é verdade, ficavam tremendamente decepcionados. Esses filmes pelos quais tinham esperado tanto tempo, folheando quase febris, toda quarta-feira, na primeira hora, o Officiel des Spectacles, esses filmes que todo mundo garantira que eram admiráveis, às vezes entravam em cartaz. Todos se encontravam na sala, na primeira noite. A tela se iluminava e eles estremeciam de contentamento. Mas as cores datavam, as imagens pulavam, as mulheres tinham envelhecido terrivelmente; saíam, ficavam tristes. Não era o filme com que tinham sonhado. Não era esse filme total que cada um deles trazia dentro de si, esse filme perfeito que não conseguiriam esgotar. Esse filme que gostariam de ter feito. Ou, mais secretamente, talvez, que gostariam de ter vivido.
Às vezes achavam que tinham crescido junto com ele, e que o compreendiam melhor do que ninguém antes deles soubera compreender. Eram cinéfilos. Era sua primeira paixão: a ela se dedicavam toda noite, ou quase. Gostavam de imagens, por pouco que fossem belas, que os arrastassem, que os encantassem, que os fascinassem. Gostavam da conquista do espaço, do tempo, do movimento, gostavam do turbilhão das ruas de Nova York, do torpor dos trópicos, da violência dos saloons.
Não eram muito sectários, como esses espíritos obtusos que só juram por um único Eisenstein, Buñuel ou Antonioni, ou ainda — precisa-se de tudo para fazer um mundo — por Carné, Vidor, Aldrich ou Hitchcock, nem muito ecléticos, como essas criaturas infantis que perdem todo senso crítico e gritam “gênio” por pouco que um céu azul seja azul-céu, ou que o vermelho esmaecido do vestido de Cyd Charisse se destaque contra o vermelho-vivo do sofá de Robert Taylor.
Bom gosto não lhes faltava.
Tinham um forte preconceito contra o chamado cinema sério, que os levava a achar ainda mais bonitas as obras que esse qualificativo não era suficiente para tornar vãs (mas, mesmo assim, diziam, e tinham razão, Marienbad, que merda!), uma simpatia quase exagerada pelos westerns, os thrillers, as comédias americanas, e por essas aventuras espantosas, repletas de arroubos líricos, imagens suntuosas, belezas fulgurantes e quase inexplicáveis, que eram, por exemplo — sempre se lembravam delas —, Lola, Encruzilhada de destinos, Assim estava escrito, Palavras ao vento.
Raramente iam ao concerto, menos ainda ao teatro. Mas se encontravam, sem ter combinado, na Cinemateca, no Passy, no Napoléon, ou nesses cineminhas de bairro, o Kursaal, em Gobelins, o Texas, em Montparnasse, o Bikini, o Mexico, na praça Clichy, o Alcazar, em Belleville, outros mais, perto da Bastilha ou no Quinzième, essas salas sem graça, mal equipadas, que pareciam ser frequentadas apenas por uma clientela heterogênea de desempregados, argelinos, velhos solteirões, cinéfilos, e que programavam, em infames versões dubladas, essas obras-primas desconhecidas das quais eles se lembravam desde os quinze anos, ou esses filmes com fama de geniais, cuja lista sabiam de cor e que, fazia anos, tentavam ver, sem conseguir.
Guardavam uma lembrança maravilhosa das noites abençoadas em que tinham descoberto, ou redescoberto, quase por acaso, O pirata sangrento, ou O mundo em seus braços, ou Sombras do mal, ou Jejum de amor, ou Os cinco mil dedos do doutor T.
Infelizmente, com muita frequência, é verdade, ficavam tremendamente decepcionados. Esses filmes pelos quais tinham esperado tanto tempo, folheando quase febris, toda quarta-feira, na primeira hora, o Officiel des Spectacles, esses filmes que todo mundo garantira que eram admiráveis, às vezes entravam em cartaz. Todos se encontravam na sala, na primeira noite. A tela se iluminava e eles estremeciam de contentamento. Mas as cores datavam, as imagens pulavam, as mulheres tinham envelhecido terrivelmente; saíam, ficavam tristes. Não era o filme com que tinham sonhado. Não era esse filme total que cada um deles trazia dentro de si, esse filme perfeito que não conseguiriam esgotar. Esse filme que gostariam de ter feito. Ou, mais secretamente, talvez, que gostariam de ter vivido.
Georges Perec. As coisas: uma história dos anos sessenta.
Tradução Rosa Freire d'Aguiar. Companhia das Letras, 2012, p. 43-45.
Tradução Rosa Freire d'Aguiar. Companhia das Letras, 2012, p. 43-45.