sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

A ética da referência

*

Muitos autores e pensadores citam muitos outros autores e pensadores. Contudo, dentro desse cenário, é possível esboçar uma gradação de cuidado com a completude da referência. Trata-se, sobretudo, de uma questão de respeito com o leitor, de honestidade intelectual, de espírito de equipe, talvez. De nada me adianta escrever que Fulano disse tal coisa sem me dizer onde e em qual página. Seguir as pistas é uma das partes mais legal do trabalho crítico, e às vezes encontra um beco sem saída por conta dessas omissões. Harold Bloom, por exemplo, a despeito de ser um grande crítico – criativo, corajoso e profundamente comprometido com aquilo que lê – talvez seja o campeão de citar passagens sem dar qualquer indício de referência. E geralmente são coisas completamente obscuras e/ou suplementares, como cartas, prefácios de primeiras edições que ninguém mais tem acesso, coisas nessa linha. Maurice Blanchot também era bastante relapso nesse sentido. Michel Foucault, em alguns ensaios. O campeão da referência é Carlo Ginzburg: tudo escrupulosamente indicado, as páginas, as edições, os textos de apoio, tudo. Cada nota é uma pesquisa à parte.

*

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

O pé descalço

*
Em seu livro “História noturna”, Carlo Ginzburg revela uma série iconográfica que percorre épocas e culturas as mais diversas tendo como ponto recorrente o pé descalço, ou ainda, um único pé descalço. A perda do sapato (da sandália, da meia) indica não só uma caminhada extensa como uma permuta com o mundo dos mortos – ou, pelo menos, uma viagem ao desconhecido que deixa como marca esse vazio. O pé descalço também se desdobra, simbolicamente, no manquejar, no coxear, na perda de um dos membros, nas deformações e nos ferimentos. Exemplos são inúmeros, que são interligados por uma argumentação e uma documentação absurdamente complexas: do calcanhar de Aquiles passando pela luta que Jacó, no Gênesis, teve com o anjo na beira do rio (da qual saiu coxo e com novo nome: Israel); Édipo e seus “pés inchados”, perfurados quando bebê para que não fugisse – Édipo que andava com bengala quando velho, manco exatamente como Tirésias, o adivinho (contato com o mundo dos mortos...); os guerreiros citas que calçavam um único pé (aquele que correspondia ao braço sem o escudo) na preparação para a batalha; a escapulomancia, adivinhação baseada na espádua do animal sacrificado, que, depois de ressuscitar, passa a coxear; Perseu, antes de combater a Górgona, recebe uma das sandálias de Hermes – e o mesmo acontece com Jasão; e, por último, Cinderela, que perde um sapato ao retornar do mundo superior do príncipe.
*
Minha contribuição à série é a personagem Boo, do desenho “Monstros S.A”, que, ao entrar no mundo dos monstros, perde uma das meias.
*

*

sábado, 23 de janeiro de 2010

Leituras de férias

  1. As benevolentes, Jonathan Littell: Li “As benevolentes” entre meu aniversário e o Natal, mesmo período no qual li “2666”, um ano antes, em 2008. Os melhores livros nesse espaço de tempo, junto com “Summertime”, “Austerlitz” e “O ano do pensamento mágico”.

  2. Um louco sonha a máquina universal, Janna Levin: Curiosa e criativa ficcionalização da história, feita por uma professora de astrofísica. Mistura Wittgenstein e Kurt Godel, II Guerra, teorias matemáticas – uma linha Literatura & Ciência, como em “A criança no tempo” e “Não me abandone jamais”.

  3. Valfierno, Martín Caparrós: Excelente livro, fala da Monalisa em chave duchampiana: conta a história (“real”) do argentino que, em 1912, roubou a Gioconda do Louvre e vendeu seis cópias para ricaços otários nos EUA.

  4. Contra o Brasil, Diogo Mainardi: Livro hilário de uma das figuras mais relevantes de nosso tempo. Nada mais é que uma compilação das melhores frases ditas sobre o Brasil por uma infinidade de pessoas que passaram por aqui, de estudiosos holandeses do Seiscentos até escritores modernos, tais como: Elizabeth Bishop, John dos Passos, Albert Camus, Giuseppe Ungaretti, Evelyn Waugh (!). Só faltou o Faulkner. Sério, esse livro é imperdível. Vença seus preconceitos! Não seja tão brasileiro!

  5. A literatura vista de longe, Franco Moretti: Uma percepção bem diferente (da minha, por exemplo) da literatura. Interessante, claro, amplia a cabeça da gente. Bastante funcionalista e esquemático. Quantitativo, também. Usa gráficos e tabelas, dados brutos. Vale a pena conferir.

  6. Las conversaciones, César Aira: Show de bola e gol de placa, para usar termos de um tio meu. Um sujeito com insônia narra a conversa que teve durante o dia com um amigo. Falaram de um filme que ambos haviam visto na noite anterior, cada um em sua casa. Só que cada um deles viu pedaços que o outro não viu, o que deflagra um jogo pitoresco de atribuições errôneas e teorias midiáticas. Tony Gilroy deveria ler este livro.

  7. História, arte, cultura: de Aby Warburg a Carlo Ginzburg, José Emilio Burucúa: Esse é teórico. Bem bacana, faz um percurso que abarca as principais realizações críticas no campo da história da arte, partindo de Warburg, o alemão que passou um tempinho com os índios Hopi nos EUA em 1890 e poucos, juntou muitos livros ao longo da vida, passou uns anos no sanatório (1920, 21, por aí) e gerou o Instituto Warburg, agora em Londres, que já abrigou vários grandes nomes do pensamento contemporâneo, entre eles Agamben e Ginzburg (e Panofsky, Gombrich, etc).