sábado, 28 de setembro de 2024

O horror de Marte

Virgílio entre Clio, musa da História,
e Melpomene, musa da Tragédia (séc. III d.C.)


1) Se é possível reconhecer em Guerra, de Céline, a trajetória de um soldado que se sente jogado para lá e para cá, em um encadeamento de cenas que diz respeito mais àquilo que veio depois da guerra, é possível reconhecer também um ponto de contato com Virgílio e com a Eneida, que, afinal de contas, é a história de um guerreiro que foge de sua cidade (Troia) destruída, encontrando pelo caminho os mais variados personagens (um paralelo com outro livro de Céline, De Castelo em Castelo, é possível). 

2) Iniciada em 29 a. C. e publicada dez anos depois, logo após a morte de Virgílio, a Eneida é não apenas uma sorte de arquivo de mitos e personagens, mas é também uma obra que funciona dentro de uma constelação (assim como Joyce só pode pensar o Finnegans Wake depois do Ulysses): depois das Bucólicas, canções da flauta suave, e depois das Geórgicas, canções dos trabalhos da terra, Virgílio está pronto para a Eneida, que é um pouco de tudo, mas é, sobretudo, a canção da fundação de Roma pelas mãos um guerreiro em fuga que leva, para sempre, a guerra consigo.

3) Uma coisa interessante da Eneida é que ela começa com quatro versos que, a princípio, não fazem parte do poema em si - são versos introdutórios nos quais o próprio Virgílio, de certa forma, aparece: Ille ego qui, ou seja, "Eu sou aquele que..."; a partir dessa introdução, Virgílio fala de suas canções anteriores (precisamente as Bucólicas e as Geórgicas), afirmando que chegou a hora de falar da guerra: at nunc horrentia Martis, "mas agora o horror de Marte" (os quatro versos foram conservados pelos gramáticos Donato e Sérvio, do século IV, mas foram eliminados de alguns códices).

terça-feira, 24 de setembro de 2024

Guerra



1) Toda a história ao redor da publicação de Guerra, de Céline, é impressionante: décadas depois da escrita, décadas depois das guerras (tanto a Primeira, na qual Céline se feriu, quanto a Segunda, na qual atuou como colaborador/simpatizante nazista), décadas depois do roubo dos manuscritos, o livro ressurge, os manuscritos são decifrados e uma edição é feita, primeiro na França e, agora, no Brasil (tradução excelente de Rosa Freire d'Aguiar). Apesar da brevidade, Guerra mostra o mesmo Céline dos grandes livros - Morte a crédito, De castelo em castelo e assim por diante: a intensidade do estilo, a força escatológica e desencantada das imagens.

2) O ponto central do romance é a cabeça do seu protagonista, Ferdinand - o que não deixa de ser relevante e representativo da poética de Céline como um todo, muito dependente da fabulação maníaca dessa "cabeça", dessa mente, dessa imaginação tão singular. Existe um fato concreto que condiciona essa elaboração a partir da cabeça, da mente e da imaginação: Ferdinand é ferido na guerra (exatamente como o foi Céline, no dia 27 de outubro de 1914, em Poelkapelle, Bélgica), no braço e na cabeça, por conta de uma explosão. "Peguei a guerra na minha cabeça", ele escreve; "Ela está trancada na minha cabeça" (o que faz pensar nas Memórias de um doente dos nervos, de Daniel Paul Schreber, e na gravura que faz Jan Peter Tripp - como conta Sebald - da cabeça de Schreber povoada por "monstros"). 

3) Já no final do romance, por exemplo, Ferdinand reitera os efeitos do ferimento sobre sua vida pós-guerra: "Era preciso fazer o enorme esforço de não ceder à angústia de não poder dormir, nunca mais, por causa dos zumbidos que nunca terminarão, nunca a não ser junto com a vida. Peço desculpas. Insisto mas é a minha melodia. Azar, não fiquemos tristes" (Cia das Letras, 2024, p. 123). A falta de sono, de certa forma, gera o estilo peculiar do narrador (como a asma em Proust, segundo Walter Benjamin); o "zumbido" é projetado em direção ao futuro - o narrador tem certeza que o acompanhará para sempre, já que a vida, a partir do ferimento, está indissociavelmente ligada ao trauma (só a morte pode fazer algo a respeito); por fim, a "melodia": eu "insisto", diz o narrador, mas essa ladainha é "minha melodia", ou seja, sua poética, seu estilo, seu "canto" (pela via de Homero (a guerra!), "Canta para mim, ó Musa"...).

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Adorável Stendhal



1) Frequentemente, em seus escritos sobre Stendhal, Leonardo Sciascia utiliza uma frase de Paul Valéry: "on n'en finirait plus avec Stendhal", ou seja, Stendhal é inesgotável e dele nos ocuparemos para sempre. Essa frase de Valéry é a penúltima de um ensaio publicado como prefácio à edição de Lucien Leuwen (romance inacabado escrito por Stendhal em 1834, publicado postumamente em 1894), contido em um dos volumes das Obras Completas de Stendhal publicadas em 1926 (o texto de Valéry foi republicado em 1937 na Nouvelle Revue française, revista fundada em 1908).

2) Em 2003, a editora Adelphi lança na Itália o livro L'adorabile Stendhal, que reúne vários textos de Sciascia sobre Stendhal, espalhados por diversos livros (trabalho de pesquisa e compilação de Maria Andronico Sciascia, viúva do escritor). Em um dos textos do volume, intitulado "Stendhal e a Sicília", Sciascia apresenta um movimento de leitura que, nas suas mãos, é sempre produtivo: rastreia os romances de escritores sicilianos realizados sob o signo de Stendhal.

3) O primeiro autor citado por Sciascia é Giovanni Verga: sua novela Camerati, de 1883, é uma "explícita homenagem a Stendhal": a batalha de Custoza (24 de junho de 1866, Terceira Guerra de Independência Italiana) é apresentada por Verga pelo ponto de vista de um soldado, muito nos moldes da batalha de Waterloo na Cartuxa de Parma. Sciascia fala ainda de Lampedusa, que mostra seu amor por Stendhal de forma explícita nas suas Lezioni su Stendhal e, de forma implícita, em seu grande romance Il gattopardo (de 1958).

sábado, 14 de setembro de 2024

Arqueologia do descontentamento



1) Existe um sentimento de descontentamento diante da própria época, diante da própria contemporaneidade, que funciona como um fio que une e articula uma série de obras e poéticas: é possível começar com Leonardo Sciascia que, apesar de ligado à política (portanto, aos debates e às burocracias de sua época), exaltava outros tempos, outros gestos, outros interesses e sentimentos (aqueles de Voltaire, por exemplo), sempre manifestando descontentamento com o embrutecimento que diagnosticava na sociedade ao seu redor (o caso Aldo Moro é paradigmático dessa situação).

2) A partir de Sciascia, é possível prosseguir em direção àquela que é sua principal referência, Stendhal, também ele marcado pelo cultivo de um desajuste com sua própria época (e, assim como Sciascia, um descompasso que é ambivalente: Stendhal exaltou seu contemporâneo Napoleão e todas as mudanças que o Imperador desencadeou), buscando nos arquivos italianos os traços luminosos de um passado que ele reconhecia como mais condizente com sua sensibilidade (Crônicas italianas); assim como Sciascia leu Stendhal com devoção, o mesmo fez Stendhal com Montaigne: é do inventor do ensaio que fez a potência do "eu", a capacidade virtualmente infinita de dar voltas ao redor dos próprios medos e ambições, capacidade essa que é o centro da invenção ficcional do próprio Stendhal (Souvenirs d'égotisme).

3) Montaigne também é um bom exemplo da tensão entre o pertencimento do artista à própria época e seu desejo de ser sozinho, de estar isolado - Montaigne que foi prefeito de Bordeaux entre 1580 e 1581 e que também mandou construir uma torre para melhor trabalhar em solidão. E, a partir de Montaigne, é possível pensar em Plutarco, uma de suas referências constantes: vive no Império Romano (nasce por volta de 46, morre por volta de 120), mas escreve em grego; foi sacerdote, magistrado e uma espécie de diplomata; sempre atento aos meandros políticos do presente imediato, mas permanentemente ligado às camadas metafísicas da experiência (falava em Alma e em Providência).

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Richepin


"No mais das vezes, Léon Marcia permanece silencioso e imóvel, mergulhado nas lembranças: uma delas, que emerge do mais profundo de sua prodigiosa memória, há vários dias o obceca: uma conferência que, pouco antes de morrer, Jean Richepin viera fazer no sanatório; o tema era a Legenda de Napoleão. Richepin contou que, quando era pequeno, costumava-se abrir uma vez por ano o túmulo de Napoleão, diante do qual desfilavam os inválidos para ver a face do imperador embalsamado, espetáculo mais propício ao terror que à admiração, pois o rosto estava inchado e verde; daí talvez a razão de a abertura do túmulo haver sido suprimida logo após. Mas Richepin teve a oportunidade excepcional de vê-lo, empoleirado no braço do tio-avô que servira na África e para quem o comandante dos Inválidos mandara abrir especialmente o túmulo" (Georges Perec, A vida: modo de usar, trad. Ivo Barroso, Cia das Letras, 1991, p. 188-189).

"Tome agora o tempo e o espaço. Suponhamos que uma criança lhe diga: 'Eu quero ser Napoleão na Batalha de Wagram', o senhor lhe diz: 'É impossível, ele está morto'. 'Que diferença isto faz?', insiste ela. Então o senhor diz: 'Ora, você sabe, isso foi há muito tempo. O corpo de Napoleão se decompôs. Você não poderá encontrá-lo'. Se a criança é esperta, dirá: 'Suponha que reunamos de novo todos os átomos de seu corpo e seu sistema mental; então poderíamos ver Napoleão em Wagram? Por que não?'. 'Sim, isso é possível de modo empírico'. A criança diz a seguir: 'Quero ver Wagram no passado: poderíamos em princípio fazê-lo reviver? Através de uma nova invenção associar de novo os átomos e moléculas dispersos?'. O senhor fala então: 'Você não pode viajar no passado'. 'Por que não?', pergunta ela. Um positivista diria que 'viajar' é uma péssima metáfora. Tudo o que entendemos por tempo é 'antes', 'depois', 'ao mesmo tempo'. Uma entidade tal que o 'tempo' no qual você poderia viajar não existe. O senhor utiliza incorretamente a linguagem. A criança pergunta agora: 'Se é um problema de linguagem, por que não mudá-la? Então eu poderia ver Napoleão em Wagram?'" (Isaiah Berlin: com toda liberdade - entrevistas com R. Jahanbegloo, trad. Fany Kon, Perspectiva, 1996, p. 171-172)

"O mito napoleônico tem realmente dado origem às mais espantosas histórias, sempre reputadas como baseadas em fatos irrefutáveis. Kafka, por exemplo, conta que a 11 de novembro de 1911 assistiu a uma conferência sobre o tema 'La légende de Napoléon', no Rudolphinum, em que um tal Richepin, cinquentão encorpado de bela figura, cabelo ondulado largo no estilo Daudet, bem colado à cabeça, dissera, entre outras coisas, que antigamente costumavam abrir o túmulo de Napoleão uma vez por ano para que os Invalides pudessem desfilar contemplando o imperador embalsamado. Mas depois o rosto foi ficando esverdeado e manchado e interromperam o costume da abertura anual do túmulo. Segundo Kafka, o próprio Richepin vira o imperador morto, quando criança, no colo de seu tio-avô que fora militar na África e para o qual o comandante mandara abrir propositadamente o túmulo. A entrada do diário de Kafka prossegue dizendo que, a concluir a conférence, o orador jurou que mesmo dali a mil anos cada partícula de pó do seu cadáver, se tivesse consciência, estaria pronta a responder à chamada de Napoleão" (W. G. Sebald, "Pequena excursão a Ajácio", Campo santo, trad. Telma Costa, Lisboa: Quetzal, 2014, p. 12).


quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Kafka e os oradores


Um dos problemas principais enfrentados por Kafka em seus Diários (e também em sua obra narrativa de uma forma geral) é aquele da exposição do corpo individual diante do olho social e seu julgamento (seus ritos, suas interdições). Daí surge a ênfase de Kafka, no diário, na vida dos atores e seu interesse no relato das performances de profissionais bem sucedidos e, principalmente, de palestrantes (ele vai, com muita frequência, ver apresentações de trupes itinerantes - de teatro judaico, por exemplo -; vai também frequentemente assistir conferências em centros culturais - também alguns deles judaicos). Muitas das partes mais elaboradas do diário envolvem o registro do contato com oradores carismáticos – Rudolf Steiner, Karl Kraus, o militar francês Richepin, que viu o cadáver de Napoleão quando criança. Kafka mede a si mesmo e a seus personagens a partir do exemplo – vocal, corporal, aurático – desses indivíduos sedutores e estranhos (é já canônica a cena de Kafka lendo seus manuscritos para os amigos).

(o título desta entrada é uma referência ao excelente livro de Michael Baxandall, Giotto e os oradores)